Prólogo: amor rejeitado

42 4 1
                                    

O barulho produzido pela água ao encontrar o chão, tanto do lado de fora, quanto no lado de dentro, passava-lhe uma sensação de calma. Aquele som fazia seu choro persistente ir se extinguindo aos poucos. Sua mente viajava em tudo e, ao mesmo tempo, em nada enquanto encolhia-se perto da parede esburacada da propriedade abandonada e engolida no meio de plantas.

A casa tinha enormes furos no telhado, possuía apenas uma pequena parte de telha sólida na qual se refugiou. A chuva passava pelos buracos e inundava tudo de modo que sua calça se encontrava encharcada, mas isso não mudava o seu foco. Com os olhos fixos em um entulho aleatório estava lembrando dos momentos que aconteceram naquela manhã, tão dolorosos quanto uma faca afiada que perfura vagarosamente seu coração.

2

Respirou fundo pela milésima vez. Observava nervosamente a sua paixão aparecer nos fundos do colégio para declarar-se para ela. Estava insegura, mas conhecia bem seu anjinho.

Myllena e Kássia eram amigas há muito tempo, amigas desde a infância, porém conforme o tempo foi passando Kássia sentia algo a mais. Aos poucos a vontade de poder beijar, abraçar, e tomar sua amiga apenas para si ia crescendo, todavia, Myllena nunca notava. Com o pensamento de "Talvez ela precise de um empurrãozinho", Kássia resolveu planejar sua declaração, mas agora queria voltar atrás devido ao fato de que estava nervosa. Nunca passou pela cabeça da mesma que poderia ser tão difícil declarar-se para alguém, até arrependeu-se de rir das pessoas que o faziam.

"Malditos corajosos!"

O amor da vida dela apareceu em seu campo de visão. Ela tentou relaxar e organizar os pensamentos enquanto observava Myllena aproximar-se, suas mãos involuntariamente apertavam a caixa de chocolate que segurava atrás das costas.

Uma estava de frente para a outra agora, mas Myllena, a menor de ambas, começou a olhar ao redor com uma expressão confusa.

— Me disseram que um menino ia se declarar para mim aqui, você o viu, Ká? — Perguntou a baixinha.

— Um menino...? — Murmurou Kassia a si mesma já perdendo a coragem que demorou para reunir — Não, Mynnie, eu vim me declarar para você... — Com essa frase a menor já a encarava, o que fez Kássia abaixar o olhar para os pés — Eu gosto de você já faz um tempo e...

O rosto da maior ardeu ao receber um tapa estalado na bochecha, surpresa pelo golpe fez a mão passear em torno da região que estava vermelha. O golpe fora forte, seus olhos encontravam-se marejados pela dor.

— Está brincando, não é? Isso não tem graça, Ká.

O silêncio de Kássia abalou e remexeu com a mente de todos que assistiam, incluindo a de Myllena.

— Isso é palhaçada! Sempre fui sua melhor amiga e você me retribui com isso? — Falou a outra enfurecida já dando mais um tapa no rosto da maior, essa que estava em choque, imóvel — Você é doente! O que está me dizendo!? — Gritou. Alguns curiosos apareceram, Kássia recuou dois passos enquanto olhava sua amiga de longa data. — O que as pessoas vão pensar de mim por andar com você? Você precisa falar com seus pais, fazer um tratamento. Alguma coisa.

As lágrimas ficaram presas, um bolo se formou na garganta de Kássia enquanto ela encarava Myllena. Depois de longos minutos em um completo silêncio odioso, sem aguentar mais aquele olhar raivoso, ela finalmente soltou a caixa de chocolates, deixando-os cair no chão, e correu em direção à saída da escola.

3

Encontrava-se com a mente vazia depois de tudo. Como pudera​ esquecer um detalhe tão importante? Amava sua amiga, amava a baixinha Myllena e esse sentimento a tornou cega contra o perigo da rejeição.

A chuva ficou mais forte escondendo-a e a confortando naquele momento, estava quebrada por ter sido burra e deixado passar todos os momentos em que Myllena demonstrava ser homofóbica exatamente como todos os adultos da cidade. Sempre que pensava na menor o seu amor pela mesma sobressaía, fantasiando-a como outro alguém, e isso a fazia esquecer tudo, fazia proteger aquela pestinha. Esse mesmo amor a fez ficar abandonada em um lugar esquecido pelo tempo e banhando-se pelas gotas grossas e brutais da chuva.

Os soluços foram escondidos junto com os gritos. Ninguém nunca saberia sobre como havia se sentido naquele dia, mas, também, ninguém se importava.

Retalhos de NósOnde histórias criam vida. Descubra agora