Prólogo: amor rejeitado

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O céu lamentava com seus pesados trovões rugindo como feras no horizonte. As gotas famintas caíam violentas no chão, engolindo tudo ao redor. A casa parecia ter sido coberta pelo mato verde alto, dois quartos já destruídos pela corrosão do tempo e da instabilidade. O que sobrava, tinha metade do telhado desabado. Dentro do pedaço que restava em pé, apenas a quina minúscula da parede parecia ser o último refúgio da jovem sentada, agarrando as pernas enquanto se apertava numa bola. Encharcada da cabeça aos pés, a lama e a sujeira haviam transformado sua calça em algo irreconhecível.

A imagem do chão imundo que ela observava estava borrada pelas suas lágrimas e seus soluços eram gentilmente misturados à chuva ensurdecedora. Seu coração tão corroído quanto a casa, dando-lhe o pensamento de que poderia morrer enquanto mastigava os pensamentos ruins. Algo ainda dizia que não havia sido tão ruim… Mas a memória ainda estava vívida, gravada a ferro em seu coração.

Havia um vento que pinicava sua pele, pois o dia acordou em um modo preguiçoso e melancólico, com as nuvens cinza-escuro carregadas cobrindo todas as cores. A jovem respirou fundo pela milésima vez, alguns curiosos estendiam os pescoços para as janelas de vidro, a observando e se questionando o que fazia a essa hora. Aquilo em seus dedos foi apertado um pouco mais forte conforme via quem antecipava surgir no horizonte com passos apressados e saltitantes.

Algumas pessoas a seguiam, mas não era problema, já havia se decidido sobre esse assunto enquanto esperneava lendo uma revista nos dias anteriores.

Kássia é amiga de Myllena desde que se conhece por gente. Porém, conforme cresceram e a adolescência chegou, Kássia percebeu que os sentimentos e a admiração que sentia eram maiores que a amizade. Ela não compreendeu de primeira, mas conforme pesquisava escondida sobre isso no computador do seu quarto, foi descobrindo mais e mais sobre o mundo e seus próprios sentimentos.

Observando-a com mais cautela e carinho a partir de certo ponto, ela sentia que precisava fazer algo sobre isso. Então, com o resto da mesada, encomendou os volumes de uma revista e esperou ansiosamente que chegasse, ficando responsável pela correspondência com medo de que mais alguém visse o que estava planejando. A ideia toda era estranha e talvez um absurdo, como dizia uma das senhoras da igreja, mas ela ainda acreditava que se fosse por Myllena, gostaria de tentar de tudo e mais um pouco.

Só que, enquanto planejava esse momento de se declarar, se arrependeu de criticar os filmes de romance que assistiu com sua amiga, enquanto ela defendia o romantismo barato. O mundo estava dando voltas, não é mesmo? Agora ela estava ali tentando imitar todos eles.

"Malditos corajosos!", pensou, sem conseguir achar conforto ao seu coração ansioso, enquanto trocava a perna de apoio e abria um grande sorriso para a jovem que chegava à sua frente. As palmas da sua mão suaram, o que acentuou um pouco do frio quando o vento passava para secá-las.

Ela ouviu Myllena rir empolgada enquanto olhava para os lados, sendo acompanhada por outras amigas dela, que se mantiveram mais longe.

— Ele desistiu e te deixou aqui para cobrir? — ela perguntou.

Kássia franziu as sobrancelhas enquanto seu sorriso vacilou. Ela olhou para além do ombro de Myllena, trocando olhares com a prima dela, que possuía um sorriso quase malicioso no rosto. Kássia balançou levemente a cabeça, confusa, pois sua mensagem a convidando para encontrá-la havia sido clara.

— Ele quem? — Kássia perguntou, confusa, mas buscando ainda estar radiante e relaxada.

Myllena balançou a cabeça em descrença, acredito que a amiga ainda estava acobertando alguém.

— O garoto que ia se declarar, ué! — ela respondeu.

Kássia arqueou as sobrancelhas, sem conseguir conter muito sua surpresa. Ela podia perceber que o plano estava indo por água abaixo. Devido a isso, suas mãos trouxeram para frente de seu corpo aquilo que tanto apertava: uma caixa de chocolates que possuíam formatos fofos. A caixa era rosa claro, com um laço roxo robusto e bonito que a adornava, acima disso, seu dedo segurava a carta em papel rosa sulfite que havia passado dias escrevendo.

Myllena e Kássia trocaram olhares quando o presente foi exposto, o sorriso de Myllena desapareceu lentamente, dando espaço para uma confusão genuína carregada de suspeitas. Parecia haver muitas perguntas em seus olhos, então Kássia só levantou os braços mais um pouco e tentou sorrir de novo.

— Ta-dã! — disse, mas sua voz não passava de um sussurro envergonhado e medroso.

Antes que o cérebro de Kássia pudesse entender, porém, os murmúrios ao redor cresceram, soando como um enxame de abelhas e Myllena havia puxado o que estava em suas mãos de modo bruto. Contudo, tudo caiu no chão logo em seguida, depois que ela leu as primeiras palavras da carta, como se suas mãos estivessem queimando por chegar perto daquilo.

— Não tem graça, Ká! — Myllena berrou.

Estando surpresa, com uma pitada de nojo e confusão, sua voz era quase uma súplica chorosa. Parecia que queria rir para dissapar o clima, mas que era incapaz de chacoalhar a dúvida. O silêncio, no entanto, a respondeu de volta. Quando os olhos subiram e encontraram os de Kássia, sob os olhos de todos, a jovem possuía uma expressão solene.

— É brincadeira, né? — Myllena insistiu.

Kássia lentamente percebeu que o ambiente parecia estar em câmera lenta. Todas as impressões estavam erradas, e essa expressão no rosto de Myllena era nova para si. Sua cabeça balançou suavemente, lenta.

— Eu queria dizer para você que…

E, antes que terminasse, um ardor preencheu sua bochecha, acompanhado do som agudo da palma batendo contra seu rosto. Myllena a estapeou com força, fazendo com que os ombros de Kássia se encolhessem e ela recuasse um passo, confusa.

— Você sabe que… Isso..! Ká! — A outra se esforçava para encontrar palavras, mas parecia não achar nenhuma. Ao final, ela abraçou o próprio corpo e deu um passo para trás. — Todo esse tempo… — Sua voz carregava uma certeza estranha, embora suas sobrancelhas estivessem franzidas. — Que nojo… você é doente!

Kássia sentiu sua garganta apertar, os olhos marejados encarando o rosto bonito e redondo de Myllena. Ela parecia realmente enojada, muito mais que confusa, além de estar irritada. Os olhos dela não voltaram para o seu rosto, e sempre que chegavam próximos, pareciam arder em labaredas.

Kássia observou Myllena descer o olhar para a caixa de chocolate, agora caída na lama. Então, chutá-la para longe e correr pela direção que tinha vindo. Nenhum dos outros olhares importava, conforme seu coração se apertava e as lágrimas começavam a descer.

Era como se fosse impossível pensar em qualquer outra coisa, e o que passou já não possui mais forma. Havia pensando, talvez, de forma muito otimista, que sua baixinha estivesse na mesma página; que, independente do quanto fosse diferente, tudo desse certo. Mas estava cega. Foi burra. Mesmo que a amasse, só causaria nojo nela.

Ela não entendeu como aquele momento chegou naquele ponto, talvez nem se importasse sobre isso. Não importa o quanto chorasse, a chuva se misturava com suas lágrimas. Achava que poderiam fazer isso, seguir essa vida, elas indo contra o mundo… Num sonho bonito, que se manchou, rasgado, e compartilhado pelo choro faminto e angustiado dos céus turbulentos — assim como o seu coração em frangalhos.

Os soluços foram escondidos. Ninguém nunca saberia sobre como havia se sentido nesse dia, mas, também, ninguém se importava.

O céu, ainda, manteve-se sombrio. Numa promessa íntima de que os piores dias estavam por vir.

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