16 - Estudos: isso é difícil

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Era domingo muito cedo, o sol subia aos céus de modo vagaroso e Kássia mexia seus cabelos completamente despenteados e selvagens pela milésima vez. Ela estava sentada de frente para as costas da cadeira, as pernas cobertas por uma calça moletom, impacientes, subiam e desciam em assincronia.

— Mais uma vez: — Kássia inspirou profundamente, continuando com um tom cansado e irritado: — cidades verticais crescem para cima, horizontais crescem para os lados — disse. Sua mão esquerda, por vezes, passeava em seu rosto com urgência para espantar o cansaço, enquanto a direita segurava uma pilha de papéis com tópicos a serem revisados — Agora, entendeu?

Myllena pensava seriamente.

— Okay, acho que sim. A lógica é que se você não tem espaço para expandir, a única coisa que sobra fazer é criar estabelecimentos mais altos, para que os cômodos e os espaços desejados existam. Horizontalmente é só expandir, pois, existe espaço para as construções e todo o resto — Myllena disse. A jovem estava segurando um lápis e as olheiras estavam completamente visíveis. Devido a só mais uma semana até as provas, e ao pouco conhecimento e confiança da Barroso, era o segundo dia que Kássia, sem batê-la, xingá-la ou ser sarcástica, a deixava estudar até amanhecer e, às vezes, mais que isso. O esforço da Muller para que a jovem aprendesse estava além do que qualquer pessoa esperou. — Também, para calcular trajetórias e uma porrada de outras informações, os caras inventaram os meridianos e paralelos, linhas imaginárias, ou seja, que não são físicas na estrutura da terra, dividem o globo com base em graus. Paralelos, horizontais, meridianos, verticais.

Kássia passou a mão no rosto mais uma vez e fechou os olhos, segurando a cabeça com a ponta dos dedos.

— Sobre as contas?

Myllena piscou muda e levantou os olhos, as sobrancelhas franzidas. Ela estava cansada e sabia que a outra também estava, mas toda vez que evoluíam em algum assunto, Kássia sempre voltava a falar dos cálculos que poderiam acabar sendo associados.

— Foda-se as contas, Kas! — disse em um rompante de raiva.

Nas primeiras semanas as contas foram tudo que praticaram e agora a Barroso sentia que sabia manipulá-las bem o suficiente. Sua preocupação eram os conceitos complicados de outras matérias. Quando recobrou um pouco de consciência, a morena percebeu como havia falado e mordeu a parte interna da bochecha, apreensiva. Kássia não reagiu a sua fala, como fez há dias, e deixou de discutir pelo mesmo tempo, também.

Myllena pensou em abrir a boca mais uma vez, porém se deixou observar a expressão deprimida e exausta de Kássia Muller. Além de ajudá-la nas matérias, o projeto de delinquente também tinha que estudar, fazer as compras caseiras, ajudar Diogo e treinar para as apresentações de dança. Desde que a perna da jovem melhorou, e ela pôde voltar, suas horas eram completamente gastas em atividades. Diminuindo de todo esse processo o horário quase perfeito de sono de Kássia, a jovem andava por aí como um zumbi raivoso. Durante a semana ela entrou em, pelo menos, duas discussões com professores e uma briga com um aluno que reclamou por ela ter esbarrado nele. A Barroso, observando a jovem do outro lado na mesa com aquela postura tensa e com o rosto contorcido em dor com os olhos fechados, percebeu que ela precisava muito de sono e espaço pessoal. Principalmente, é claro, porque ela não mandou uma frase do tipo: "que se foda você, saia da minha casa". O silêncio que reinou disso parecia... desconfortável e penoso, com culpa e sofrimento no ar.

Claro, Myllena Barroso fez várias atividades extras durante esse tempo, mas sem amigos para ocupar nenhuma hora extra e com sua avó, uma ativista de atividades comuns para idosos — em outras palavras, uma idosa que gosta de preencher seu dia fazendo coisas caseiras e curtir a aposentadoria —, não havia nada que a estivesse consumindo esse tanto. Seu coração se remexeu, inquieto, por culpa. Culpa de tudo. O tempo que passaram juntas deixou mais escancarado o quanto, antes, na antiga cidade, Kássia sempre precisou de uma mão amiga para não exagerar e extrapolar seus próprios limites ao tentar agradar as expectativas dos outros e Myllena nunca fez o seu trabalho de amiga nesse aspecto. Atualmente, ela pôde ver claramente o quão esforçada Kássia sempre é, mesmo que sua personalidade tenha assumido algo mais relaxado, basta a ideia de que o tempo está acabando para essa jovem delinquente de dezessete anos acreditar que o mundo precisa ser carregado em seus ombros.

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