Kássia estava pesquisando no celular vídeo-aulas do assunto ao qual estudava no momento, o lápis em sua mão direita ia de um lado para o outro enquanto ela olhava de modo concentrado para a tela. Myllena a observou de canto enquanto segurava a vassoura, parada por um momento. A Barroso não sabia o que estava na cabeça da Muller para expulsá-la como um gato magoado um dia e no outro dizer que queria sua ajuda, mas uma certa lucidez a abateu, já que era tratada como um cachorrinho que faria qualquer coisa na hora que ela pedisse. Apesar de ter que ajudá-la a carregar coisas ou pegar coisas pesadas, a obrigação estudantil de Myllena não se estendia para fazer compras e limpar a casa da de cabelos azuis, mas cá estava ela fazendo isso de forma obediente.
O que dizer? Ela estava querendo se aproximar de Kássia desde que chegou na cidade e a viu. Os tempos na cidade anterior foram difíceis assim que a Muller implantou a pulga da dúvida na orelha dos mais velhos, e as coisas ficaram confusas e desagradáveis com a poeira dos seus feitos para trás enterrada nas cinzas. Myllena nunca comentou sobre o assunto e sentia uma coceira no coração toda vez que pensava naquele tempo, porém, ela também queria esquecê-lo eventualmente e tentar imitar a de cabelos azuis. Esquecer o passado e mudar esse tanto parecia uma boa ideia.
Kássia havia mudado, a Barroso podia dizer sem nem mesmo olhá-la. Na primeira vez que se viram, ela ouvira uma voz contra o vento noturno que foi tão familiar que a assustou, mas também estava diferente do que costumava ser e isso sempre a deixava com um desconforto no peito. Aquele tempo passou, afinal, não deveria querê-lo de volta, ainda mais quando houve tantas dores. A Muller agora tem um penteado de cachos rebeldes pintados, roupas despojadas e estilosas, um sorriso desenhado malicioso e olhos cruéis intensos. Há coisas que remontam os tempos passados, como sua preocupação com os estudos, como aliviar as responsabilidades para as pessoas que cuidavam dela e analisar as pessoas como se pudesse ler suas almas, além de não reclamar de dor. A Barroso estava prestes a suspirar enquanto olhava a outra, perdendo-se nos pensamentos que ela tentava esmurrar no cérebro, quando uma voz mandona surgiu.
- Ei, ei, se tem tempo para ficar viajando, pegue água pra mim - Kássia disse, chamando-a com a mão, mas sem tirar os olhos do caderno. - Faça algo gostoso, também.
Como se tivesse uma poeira presa em seus olhos, Myllena os revirou e sentiu vontade de esmurrar a si mesma. Essa Kássia tem boas virtudes? Só se viesse do esgoto. Ela caminhou com pés pesados até a cozinha, indo até a pia lavar as mãos e verificando a localização dos copos, para puxar um junto a uma garrafa da geladeira. Pouco depois, ela deu a água para Kássia e virou de costas. Fazia alguns dias que ela estava fazendo esses "favores" para a Muller, então ela já sabia onde arranjar a comida e como fazê-la sem botar fogo na cozinha. Infelizmente, cozinhar não era uma das especialidades de Myllena. Como diria Luís, "boa em ser gente boa, ruim em ser útil." O rapaz conheceu-a por pouco tempo, mas já conseguia dizer isso em sua frente sem medo de ser repreendido por ela. No entanto, como ela se defenderia disso? Ela não os conhecia e apenas aceitou a fala, pois em sua maior parte era verdade. Apesar de fazer as ajudas extracurriculares, Myllena não era boa com direções, nem em correr, jogar ou até mesmo em estudar. Tudo que ela sabia fazer até então era se maquiar, tocar flauta e pintar, o resto sempre foram seus pais que fizeram para ela ou... Ela deslizou os olhos em direção a de cabelos azuis mais um vez, logo em seguida, balançando a cabeça fortemente em estado de negação.
- Cuidado para não cair cabelo na comida, idiota - Kássia murmurou virando a página do livro.
Myllena apertou a colher em sua mão, mas não a rebateu.
Depois da refeição, Kássia, como nos dias anteriores, brincou com a Barroso como se ela fosse uma mascote. Mandou-a ir ao mercado três vezes para comprar um salgado que ela não queria comer, depois pediu uma vitamina e disse que ficou horrível, mandando-a jogar no lixo antes que alguém tivesse intoxicação alimentar. Ainda, fez ela limpar a poeira dos móveis altos e das paredes, como também polir e organizar os livros em seu armário. Nessa tarefa em específico, enquanto Kássia ainda estava vendo vídeo-aulas, Myllena esbarrou a mão em um tipo de revista que ela não estava acostumada a ver. Com o espanto, ela quase soltou e saiu correndo, porém para se salvar da piada cruel que rolaria entre Diogo e Kássia, ela apenas segurou silenciosamente, abriu, deu uma olhada curiosa e devolveu ao lugar embaixo do armário.
Depois de correr para cima e para baixo como um cachorro, Myllena sentou impaciente na mesa de jantar de frente para Kássia e se recusou a levantar para fazer qualquer coisa a mais. A Muller olhou para ela com uma pitada de raiva, mas esquivou a atenção rapidamente, não se preocupou o suficiente e estava em sessão de foco. Com esse tempo, a Barroso abriu os próprios cadernos e não pode evitar tentar espiar as respostas de Kássia dos deveres, já que eram da mesma turma. A de cabelos azuis pareceu não se importar com sua atitude, continuando o que estava fazendo e isso fez com que elas tivessem um momento agradável de silêncio, sem a perseguição de gato e rato.
Horas depois, Kássia esticou os braços, retirando os fones do ouvido. Ela pareceu um gato manhoso se espreguiçando, quando Myllena percebeu de relance um sorriso, seu coração apertou de medo no peito.
Lá vamos nós...!
Kássia rapidamente pegou o caderno de folhas recicláveis da frente de Myllena que, em desespero, tentou pegá-lo de volta. A de cabelos azuis passou duas das páginas, o sorriso no rosto aumentando.
- Tsc, Tsc - ela ergueu os olhos sorridentes. - O que devo fazer sobre isso? Você nem sabe colar um dever de casa.
Myllena explodiu em rubor pelo rosto todo, ela não sabia se chorava ou gritava para pegar o caderno de volta, já que ela estava errada dessa vez. O problema é que os deveres eram complicados e ela nunca pensou muito em tentar respondê-los ou estudar eles, tendo Kássia à sua frente com a maior parte resolvida, era mais fácil tentar replicar suas respostas. Porém, ser pega também era o cúmulo do absurdo. A Barroso abriu a boca tentando dar alguma resposta, mas estava envergonhada até a morte e tudo que ela conseguiu fazer foi levantar da cadeira em um rompante de emoções.
Kássia ergueu as sobrancelhas e abriu a boca em um perfeito "o".
- Oh! Vai tentar me agredir? - Ela disse, sua expressão fingindo surpresa e medo. A Barroso bufou de raiva. - Estava copiando o trabalho desta pobre - As sobrancelhas de Kássia contraíram terrivelmente, expressando sua leve irritação, mas a borda do sorriso maroto ainda estava lá - Eu quem deveria estar brava aqui.
Myllena bateu o pé, indignada, mas tratou de respirar fundo pensando em negociar isso.
- Olhe, eu apenas não entendi bem, estava apenas verificando as respostas, só isso... - tentou, buscando alguma forma da outra deixar isso de lado - Me devolva, eu vou apagar.
Kássia ergueu uma sobrancelha transformando sua aura em uma malícia perigosa.
- Você pode copiar, se quiser - ela estendeu o caderno em direção a uma Myllena que o agarrou como se estivesse com fome - Mas! - O sorriso pequeno da de cabelos castanhos sumiu, dando espaço para o desespero - Você vai ter que gritar na frente da escola que concordou em me ajudar para me espiar secretamente, ou então eu conto a professora que você fez isso no intuito de abusar da minha dificuldade para subir suas notas.
Porra.
Myllena pode ouvir o k.o na tela irreal desse jogo. Seus olhos miraram no caderno em suas mãos, valia a pena? Afinal, qual seria o mal de contar uma mentirinha? Na frente da escola... Suas mãos começaram a tremer só de pensar. Essa garota ingrata e imunda na sua frente não tinha nada a ver com a guerreira em armadura de prata do passado.
- Tudo bem - respondeu, trêmula. Kássia riu, mas o riso congelou em seu rosto. Myllena pensou que tinha que salvar um pouco do orgulho que restava, então ergueu o queixo - Mas! Como é na frente de muitas pessoas, não é equivalente, já que não é como se fosse uma prova. Terá que me dar mais coisas - A que estava sendo predada saiu da boca do lobo com cautela, então ergueu um dos dedos para a de cabelos azuis - Você vai ter que me ajudar até às provas.
Porra, em que merda estou me metendo?
Kássia pensou, sentindo um pânico súbito de ter que conviver com essa pessoa por mais tempo do que era esperado. Sua perna já estava tão boa, valia a pena receber esse mimo de vingança, enquanto teria que se manter em cárcere com essa pessoa por mais tempo? Vendo a expressão vitoriosa da outra, no entanto, ela não quis mais saber de nada e imediatamente pensou derrubá-la. Um sorriso perverso possuiu seu rosto, enquanto as mãos se juntaram por cima da mesa.
- Oh, isso vai ser divertido.
Estando no inferno, tire uma dança com o diabo.
Se Myllena acha que pode ganhar com esse jogo, oh, ela está mortalmente errada.
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Retalhos de Nós
Teen FictionKássia Muller já foi uma criança inocente e pura. No entanto, ao demonstrar sua forma tímida e pura de amor, seu mundo desabou e a pessoa a quem entregou seu coração tornou-se apenas uma névoa branca longe de seu alcance. Não foi difícil entender co...