1 - Sem despidas, sem lágrimas

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Era um dia de sol, um daqueles que queima a pele e deixa todos vermelhos com facilidade, porém a menina não parecia senti-lo. Toda vez que precisava sair, parecia inverno. A sua visão sobre as coisas já não era a mesma depois de algumas semanas vividas após a pequena bola de neve que se voltou contra si, estando em um ponto que não poderia reverter. Kássia havia enfrentado os próprios pais, contudo, só havia perda nessa guerra. No fim das contas a cidade era pequena demais, a maldade grande demais e a jovem era, decerto, menor que ambos.

Caminhar para a escola com o sobretudo era uma nova rotina, passar do lado oposto à calçada da igreja também. Já haviam passado duas semanas e agora as marcas pintavam sua pele, ainda assim, ela não queria se importar com isso. Afinal, família é família. Eles podem fazer o que acham melhor e era sua obrigação tentar ao máximo compreendê-los... mesmo que isso fosse apenas fachada, pois era sua última opção. Em contrapartida, ir à escola tornou-se um grande problema. Se a cidadezinha de merda já reprovava homossexuais, o que faria com a família deles caso soubessem de assuntos mal resolvidos internos, como agressões familiares? Seria um vexame e a pequena bola de neve cresceria para uma grande bola de neve. Portanto, no intuito de preservar as aparências, era melhor usar um sobretudo em uma manhã fervente para frequentar a escola do que se expôr seus familiares, coisa que ocasionaria fazer mais alguém sofrer devido a algum efeito colateral.

Mesmo que quisesse que eles sofressem. Mesmo que rezasse para todos eles queimarem no inferno.

Kássia passou pelo portão da escola de ombros encolhidos e cabeça baixa. Estando com os ombros abaixados e demonstrando submissão, ela esperava que as pessoas ficassem satisfeitas e não mexessem com ela. Porém, não deu certo nos dias anteriores também. Eles ficaram curiosos pela sua declaração que trouxe discussões: alguns achavam que ela era homem, outros cuspiram o quanto era um ser humano errado, outros acreditavam que ela tinha perdido a cabeça. Seguindo a ideia de imitar os papéis de seus pais, as crianças que estudavam ali, junto ao filho do pastor, reuniam-se toda manhã antes das aulas para observar o filho do pastor tentar expurgar o demônio dentro de Kássia. Não diferente dos outros dias, o grupo reuniu-se à sua volta mais uma vez e na tentativa de se esconder, Kássia inclinou o tronco para se encolher o máximo que pôde. Sabia que as outras crianças estavam olhando o que estava acontecendo, incluindo Myllena, e não queria vê-las atônitas apenas observando o espetáculo. Não queria saber de nada disso, dos outros olharem-na com pena e estranheza por algo que já disse que não se esforça para remediar. Ela já reconhecia o erro, então por que a continuação do massacre por todos os lados?

Após vinte minutos cercada de crianças entre risadas, frases maldosas falando sobre a fé em Deus e a errônea percepção de Kássia do mundo, ela conseguiu se refugiar num dos mictórios feminino. Havia mais supervisores no corredor do que havia no pátio, o que significa que as crianças mais velhas iriam expulsar o tumulto e isso era algo que daria espaço para ela sair do banheiro depois. Logo, restava só esperar, exatamente como fez nos dias anteriores. Nesse meio tempo, Kássia levantou de onde estava sentada, retirou o sobretudo do corpo para respirar melhor e olhou para os braços, vendo as marcas, para logo em seguida tocá-las e espremê-las. Havia nisso uma sensação de conforto, a diminuição da dor persistente.

Contudo, o momento foi interrompido por passos no banheiro. Rapidamente, ela puxou a mochila do chão e o sobretudo para recolher os pés para cima da privada no intuito de se esconder. Ela queria evitar essas pessoas o máximo que pudesse. Porém, ao contrário do que esperava, ela ouviu a voz suave e lisa de Myllena em uma conversa.

- Eles fazem muito pouco. Os pais dela deveriam enviar ela logo à reabilitação. - Alguém disse, Kássia reconhecia a voz, mas nunca foi próxima a essa menina.

- Talvez ela esteja em algum tipo de tratamento caseiro, vê que ela não fez mais nada? - Myllena disse com uma voz de quem estava distante e pensando em algo diferente.

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