Kássia estava tentando ignorar, ela bem sabia. Descobrir que Myllena estava fodendo com sua vida pelas beiradas era inacreditável, a dita cuja, agora, até morava perto da sua casa e ficava rindo e atrapalhando as aulas. A garota estava se voluntariando para trabalhos, ajudando aos professores, ajudando os outros alunos. Às vezes, ela até tentava falar consigo de novo.
Nessas ocasiões, Myllena escolhia, de repente, parar no meio do corredor, da atividade, ou numa social e dirigia os olhos tímidos em sua direção com um sorriso pomposo. Falando sério, Kássia achava ela inacreditável. Pior, não sabia lidar com ela. Diogo lançava-a um "oi" amigável e retribuía o olhar vazio da amiga com um desagradável, mas Kássia não se importava. Por que logo ela deveria? Só esperava que ele não perdesse as estribeiras se um dia soubesse a história toda de porque estava ali para ser amiga dele em primeiro lugar.
A Muller pensa sobre o caso às vezes. Rejeição é um prato bem-vindo após uma tentativa, mas um tapa na cara, nos dias atuais, Kássia retribui de volta com um belo de um soco. Ou algo menor, claro, depende da ousadia que a própria fizesse no ponto de partida da investida. Ainda, olhando para Myllena por mais de dois segundos, no fundo - bem lá no fundo, o sentimento que Kássia socava para debaixo do estômago - fazia com que a jovem quisesse... apagar-se vagarosamente. Fazia ela temer sobre o futuro dos minutos seguintes esperando o pai atravessar qualquer porta e sorrir, fingindo que estava tudo bem e surpreendê-la de modo agressivo. Fazia Kássia se sentir fora do mundo, mesmo que não tivesse nada demais em ser o que se é.
Um dia desses, ainda, iria acabar correndo da dita cuja. No entanto, Kássia não queria admitir que existia algo de errado com ela própria, e por que ela deveria? Havia algo de errado? Não. Não havia. Se Myllena fizesse questão de ficar indo atrás dela... Kássia só precisava andar mais rápido.
Ela não podia negar, porém, que a presença da outra no mesmo espaço a incomodava. Myllena estava lá, junto com os novos amigos, murmurando conversas rasas, falando uma média de decibéis maior do que as outras conversas da sala e retirando todo o senso de concentração de Kássia - que já estava custoso de manter. Essa que, controlando-se, bateu o lápis na folha sobre a mesa no mesmo ritmo da sua respiração funda para ver se conseguia ler as questões que precisava. E no meio do "quantos predadores existem na floresta", havia um: "será que esse pessoal não tem nada melhor do que fazer? Nunca calam a boca?"
- Ei, você pode me ajudar nesse aqui? É uma simplificação, não entendi - Diogo pediu, baixo e próximo ao ouvido de Kássia.
Ela usou o chamamento do amigo para direcionar os olhos irritados para a trupe de modo casual. Seus olhos passaram pela "turma do fundo à direita". Lá, havia o "líder" deles, Luís, um garoto cínico e conhecido há anos. Kássia e ele viviam em um tratado de que não se gostavam - desde detalhes como conduta, até a roupa mais ridícula que usaram aleatoriamente num dia -, a irmã desse também, mas só por extensão de sentimento do que algum conflito real. Kássia nunca conversou com a irmã de Luís, Luana. Fora eles dois, mais três garotos gamers¹ que costumavam fazer desafios de RPG² à noite na escola, não se importando em manter a integridade do colégio ou segurança própria. Como não tinha nada a ver com ela, ela não se importava. No meio deles, como já havia visto antes, estava Myllena, jogando mini dados na mesa de Luís e rindo de algo que envolvia o resultado.
- Kas? - Diogo a chamou, virando o rosto para a direção que ela olhava.
- Eles são tão idiotas... - ela murmurou.
- Nem todo mundo é interessado em ter uma competição contra si mesmo o tempo todo para continuar na média dez - ele rebateu, alheio aos sentimentos da amiga, voltando a atenção dispersa para o caderno.
- Quero dizer, a professora está bem ali. Isso não é desrespeitoso? - Indagou ela, indignada, ainda olhando para lá.
Luís fez o mesmo. Ele retribuiu o olhar de Kássia com uma expressão desafiadora e mal humorada.
- Ela está ajudando quem quer algo, você sabe como é. Qualé, Kas. Passamos da fase de mexer com os gêmeos - ele respondeu, levemente decepcionado.
Kássia voltou os olhos para o caderno colorido de Diogo, ignorando a fala por alguns segundos. Ela odiava lettering³, mas parecia ser a única coisa que mantinha o amigo pregado durante as aulas e ele estava ficando extremamente bom nisso.
- Passamos mesmo, 'tô dizendo, isso pode trazer... incômodo - ela disse em defesa própria, puxando o caderno e o virando na direção contrária para que pudesse lê-lo. - Por exemplo, de repente eles ficam rindo alto pra caralho.
- E é? - Ele murmurou, apoiando o rosto na mão esquerda e encostando-se na parede. Kássia não olhou para ele, mas ele observou por alguns segundos a novata rir de algum comentário. - Às vezes, é difícil se controlar! - praticamente gritou ele.
A professora pediu-lhe silêncio de imediato. Ele sorriu, fingindo estar sem graça, depois voltou os olhos sonsos para a amiga. Em seguida, debruçou-se sobre a mesa.
- Todos podemos perder o controle, Kássia. É normal - ele disse, abrindo um sorriso de cheshire⁴, para, só depois, franzir as sobrancelhas demonstrando seu sentimento de confusão. - Qual o seu problema com a novata?
Kássia o olhou por dois segundos, depois meteu os dedos nas linhas do caderno dele.
- O fator em comum é 3 e y. Você vai dividir a expressão toda por esses dois.
Então, ela deu as costas a ele e aos da turma lá no fundo. Kássia encolheu os ombros quando o fez, prendendo um suspiro, sendo preenchida por uma sensação incômoda de que estava encurralada por algo e ela sabia que era só coisa da própria cabeça. De que, como a terapeuta disse, às vezes ela ia perder o controle das emoções e isso iria dar a impressão de que estava sendo esmagada por elas. No entanto, era só uma sensação. Não havia ocorrido nada para ela estar aparecendo agora, nem nos dias anteriores, e isso a fazia implorar mentalmente pela nova sessão do mês. Ela já havia superado a merda daquela garota.
- Eu vou ter que perguntar a Janice?
- Vá fazer sua atividade, Diogo. O horário está quase acabando e a atividade é só até o final da aula.
Diogo suspirou, sussurrando um "então eu descubro por mal". Kássia se importava em como ele ouvisse a história, a possibilidade de ser rejeitada por algo que já era aceita dava-lhe medo. A deu tanto medo e receio ao entrar na conversa, no tópico específico, ainda de ter sido repreendida, que ao invés de esperar Diogo para irem à loja de conveniência comprar coisas no intuito de passar a tarde, correu para casa. Juntando todas as coisas quando o último horário veio, dispensou o amigo com a frase típica de "a gente faz outro dia, hoje eu mudei de ideia" e saiu pelos portões do colégio com passos apressados.
Ela ainda tinha coisas para fazer antes, claro, exemplos eram: ir ao clube de dança que gostava de participar, ou participar de algum dos esportes que invadia durante a tarde, ou até fazer a tarde clássica com doces exóticos e comidas diferentes com Diogo. No entanto, estava fugindo. Dele, de Myllena (que iria na mesma direção, mas dentro de um carro com a avó) e de si mesma. Das responsabilidades, de pensar em como falar com os outros e de como se comportar em público. Cada passo que deu de volta para Janice parecia uma regressão da personalidade que trabalhou duro para conseguir nesses anos, mas não podia evitar fazer isso.
Estava apavorada. A verdade era que não conseguia encarar o passado tendo insistido tanto para esquecê-lo e Myllena trazia-o de volta de uma forma terrível. Não podia confiar nela, naquele sorriso.
Era mentira.
Sempre foi uma mentira.
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1. Gamers - nome dado àqueles que jogam muitos jogos, advém de videogame;
2. RPG - Role play game, um gênero de jogo no qual os jogadores assumem o papel de personagens imaginários, em um mundo fictício (significados);
3. Lettering - é um termo abrangente que abrange a arte de desenhar letras, em vez de simplesmente escrevê-las (Wikipédia);
4. Cheshire - Cheshire cat, ou gato risonho, é um personagem fictício extremamente famoso da obra Alice no país das maravilhas de Lewis Carrol.
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Retalhos de Nós
Teen FictionKássia Muller já foi uma criança inocente e pura. No entanto, ao demonstrar sua forma tímida e pura de amor, seu mundo desabou e a pessoa a quem entregou seu coração tornou-se apenas uma névoa branca longe de seu alcance. Não foi difícil entender co...