O começo do fim

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-John?
O barulho da dobradiça rangendo se fazia ouvir dentro do silencioso e escuro quarto. Meia-Noite não sabia quanto tempo havia demorado para se curar, mas já imaginava que durante esse tempo, John Constantine havia de algum modo, se afogado em ódio e culpa.
-Precisamos conversar - anunciou Meia-Noite, abrindo a porta vagarosamente.
-Sai daqui porra! - gritou uma voz gutural, embargada por lágrimas e cigarro, jogando algo de vidro na direção da porta.
Meia-Noite fechou a porta rapidamente, evitando por pouco os cacos que estouravam com violência. Depois, abriu novamente a porta com violência, iluminando o quarto enquanto caminhava na direção do homem-quebrado.
Agarrando John pelo colarinho, ele o levantou facilmente contra a parede, lutando contra sua vontade de machuca-lo de todos os modos possíveis.
-Não imagino o que aconteceu para quebrar você, nem por que fez aquela loucura na banheira. Mas deve deixar isso pra trás agora. O solstício é daqui a três dias, precisamos de você inteiro. Diabos, eu preciso de você!
John o olhou com desdém.
-Você? Você é um bastardo filho de uma puta, com coração negro que não liga e nem precisa de ninguém.
Meia-Noite o soltou, caminhando em direção a janela, a abriu para que a luz entrasse no recinto, mas continuou de costas para John.
-Fui forçado a fazer algo insesato, por puro desespero. Antes eu não ligava se o mundo acabaria, mas agora, algo pior me espera e não tenho vontade de adiantar esse encontro.
-Fez o que por desespero parceiro? Dormiu com a Rainha por acaso?
-Quando acordou, nem se incomodou em perguntar o que aconteceu por aqui, ou com o sumiço de seu senhorio, se incomodou, Mago?
-Percebi traços de magia demoníaca, entao imaginei que Nergal pintou por aqui e você deu cabo dele. Meu senhorio que se foda. Se morreu e você deu sumiço do corpo, ótimo. Não me interessa os meios, apenas os fins. Já to com um saco cheio de merda própria pra me preocupar com os outros - retrucou John, sombriamente.
-O bom e velho John Constantine. O Diabo Branco.
O Feiticeiro então contou a John, tudo que o velho havia profetizado sobre eles. Desde a ascensão e queda de Meia-Noite, até a luta que havia ocorrido ali.
-Nem vem me acusar de merda nenhuma chapa. Cê já é bem grande pra acreditar nessas bobagens de profecias. E eu, mais do que ninguém, sei como é uma jogada idiota vender a alma pra alguém. Ainda mais pra um Deus Negro de Kandar.
-Não tive opção. Até minha imortalidade tem limites, você conhece as regras. Se fosse morto pelo demônio, minha alma seria mandada automaticamente para o inferno.
-Saiu da frigideira pra cair no fogo hein campeão? - zombou John, tentando afastar a imagem de Claire, ao qual havia acontecido a mesma coisa, mas não pode afastar a idéia do que poderia ter acontecido com sua mãe, para ir parar no inferno.
Poderia...ser isso que aconteceu com ela? O velho bastardo sempre me jogou na cara que ela havia morrido no parto por minha culpa...se tudo aconteceu diferente, preciso saber o que aconteceu.
-Mas pelo menos tenho uma chance de escapar. Se você me ajudar.
John sorriu maliciosamente, vendo ali uma oportunidade.
-Lógico que te ajudarei, cê é meu chapa. Mas por um preço.
-Desgraçado egoísta. Salvei teu rabo..
-Por que queria a lança. Agora precisa de mim. É pegar ou largar chapa.
-E qual é seu preço?
-Depois que resolvermos toda essa merda, preciso de ajuda pra salvar uma alma do Inferno.
Meia-Noite sabia que não tinha opção. Mais uma vez, estava a mercê daquele maldito homem, que de homem quebrado, parecia se deliciar com sua miséria.
-Eu aceito.
Renovado com a ideia de poder tirar sua mãe daquele lugar, John começou a se barbear quando sua atenção fora atraída por um barulho vindo de baixo do assoalho.
Sem nem ter tempo de reagir, o chão do apartamento começou a rachar, liberando espaço para que vinhas e musgos começaram a crescer descontrolados, se entrelaçando até formar algo que lembrava vagamente um ser humano.
Não importa o quanto veja isso, nunca deixo de me impressionar e achar nojento ao mesmo tempo.
-Olá Alec. Tá atrasado parceiro. Pegou cupim pelo caminho?
A criatura conhecida como Monstro do Pântano apenas o ignorou. A muito havia aprendido que as piadas eram um modo de Constantine esconder sua raiva e desespero contra a própria vida que levava.
-A vida não cresce facilmente nessa selva de concreto. Tive que estimular o crescimento de algumas ervas-daninhas e outras coisas para poder me manifestar aqui. Fui preso por uma mágica poderosa enquanto mergulhava no Verde. Impedido tanto de avançar quanto de retroceder.
-Uma histórinha muito triste imagino, mas que não me interessa. Descobriu o esconderijo da Brujeria?
-Sim. Foi só uma questão de seguir o fedor da morte. Eles estão em uma pequena ilha, ao sul da Escócia.
-Beleza. Agora...
Foi então que seus sentidos explodiram com violência.
John se jogou ao chão, urrando. Uma onda psíquica o atingira com força, o fazendo enxergar o mundo através de uma cortina vermelha de dor e ódio, entorpecendo tudo mais ao seu redor.
A agonia chegou a um ponto quase insuportável, mas de repente, tão rápido quanto viera, simplesmente passou.
Meia-Noite apareceu cambaleando na porta do banheiro, com seu nariz e orelhas sangrando.
Parecia tão atônito quanto ele.
-Que porra foi essa?
-Senti o Verde gritar pelo mundo inteiro, sentindo uma ira desconhecida se espalhar e queimar como fogo através de todas as plantas - respondeu a criatura do pântano, com um leve medo em sua voz.
-Um ataque psíquico? - perguntou Meia-Noite.
-Muito rápido pra ser. Tá mais pra uma explosão do que um ataque. Preciso saber se isso tem a ver com a Brujeria, se não, não vai ser nossa prioridade, já é muito ter o fim do mundo no nosso rabo.
-Como vai descobrir a fonte disso tudo?
-Fácil. Uma explosão desse porte deixa rastros. Só tenho que seguir enquanto tá fresco.
-Uma projeção astral direcionada?
-Cê leu minha mente chapa. Então você e esse Pau-velho que não vacilem com meu corpo, ou volto pra assombrar vocês.
-Como isso funciona?
-Depois de sair de seu corpo, como um Mago, ele pode se concentrar na energia, sendo levado diretamente até aonde ela fora direcionada. Como seguir o rastro de um projétil - explicou Meia-Noite.
Ignorando a conversa, John se concentrou, lembrando das técnicas que havia aprendido em uma viagem ao Tibete, enquanto murmurava antigos mantras.
Trabalhando sua respiração, ele começou a se concentrar, limpando sua mente. Logo, sentiu sua essência começar a desprender-se de seu corpo, parecendo ser arremessado nas aurora do tempo e do universo, acabando por se fundir ao infinito.
Vagando por uma sinfonia de sons e luzes, todo o tempo do universo pareceu o trespassar e iniciar novamente.
O tempo é como um rio, correndo apenas em uma direção, enquanto estamos todos presos em uma prisão de carne, impossibilitados de escaparmos. Mas como Zatanna me disse certa vez, a magia é um modo de trapacear o universo. Se souber como, seu espírito pode desprender-se de seu corpo, podendo vagar livremente e acessar até alguns planos inferiores.
Claro que isso tinha seus perigos. Um espírito desgarrado podia aproveitar seu corpo vazio e o invadir, ou alguém poderia matar seu corpo, o deixando preso pela eternidade desse modo.
Magia sempre tinha um preço.
Mas isso não preocupava John.
Se havia um custo, sempre haveria um modo de trapacear.
Então tudo acabou subitamente. Assustado, ele se percebeu que vagava em órbita da Terra, engolfado pela escuridão opressora do espaço exterior. Ainda tentava se orientar quando seu olhar fora pego por algo a sua frente, percebendo que algo, parecia chacoalhar as estrelas enquanto tentava rasgar as trevas.
Que merda é essa agora porra!?
Desfocado, como se estivesse sobreposto sobre essa realidade, um enorme olho começou a se abrir, fazendo a mente de John se fragmentar, o fazendo gargalhar como uma maníaco.
Desesperado para se afastar daquele Titã, Constantine forçou a quebra de sua projeção, sendo puxado novamente a toda velocidade para seu corpo.
Ele ainda gritava quando percebeu que estava novamente em seu apartamento.
O Monstro do Pântano o observava Meia-Noite, que murmurava orações, projetando uma aura de cura.
-Merda. Quanto...quanto tempo?
-Você voltou a quase cinco horas, gritando coisas incompreensíveis. O que quer que tenha visto lá, quase quebrou sua mente a um ponto sem volta.
-Bastardos. Malditos bastardos. Eles começaram o ritual antes da hora. Aquele merda deve ter aprimorado o ritual de algum jeito. O que sentimos, o que todo maldito sensitivo, mago, bruxo ou feiticeiro sentiu, foi o começo da quebra da realidade, onde toda a loucura do Anti-Deus vazou por alguns momentos.
Os três ficaram em silêncio, absortos no que havia sido dito, até que o Monstro perguntou:
-E como vamos parar uma coisa dessas?
John Constantine o encarou com um olhar alucinado, ainda meio louco por tudo que presenciara.
-Essa é uma excelente pergunta chapa.

John Constantine: Legado MalditoOnde histórias criam vida. Descubra agora