O vento soprou os cabelos loiros da jovem parada junto ao lago e os fez flutuarem ao seu redor. Não era sempre que os usava assim, livres e sem qualquer impedimento; em verdade, nada em sua vida tinha muita liberdade, exceto quando estava na floresta.
Ella inclinou a vara de pesca para trás e em um movimento rápido jogou a linha com o anzol o mais longe possível, estava tão silencioso a sua volta que até mesmo o pequeno “ploc” pareceu barulhento. As folhas das árvores já assumiam o tom alaranjado tão característico do outono e logo ficariam vermelhas e cairiam aos montes, o clima já favorecia o crescimento de musgos e Ella precisou tomar cuidado dobrado para se equilibrar sobre a rocha em que estava, a última coisa que precisava era cair no lago gelado.
- Chegou cedo!
A voz masculina a fez saltar levemente, Ella cambaleou e precisou de alguns segundos para manter o equilíbrio.
- Desculpe – Klaus murmurou ao se aproximar – Serei mais cuidadoso.
Em silêncio dessa vez, Klaus ajeitou sua vara de pesca e lançou a linha do lado oposto ao de Ella.
- Como foi a caçada? – ele manteve a voz baixa para não assustar os peixes, pescar no outono já era difícil o bastante.
- Não muito bem.
Ella indicou a sacola caída no chão, o arco que usava para caçar estava posicionado ao lado da aljava que continha algumas flechas, mas apenas três coelhos minguados jaziam abatidos por ela.y
- Papai não vai ficar feliz.
- É outono, vai ficar cada vez mais difícil caçar e não é culpa sua.
Não importava, Ella pensou, essas desculpas não funcionavam em sua casa. Se não conseguisse mais comida, estaria em grandes apuros em breve.
- E a floresta perto da sua aldeia...
- Não – Klaus a interrompeu imediatamente – De jeito nenhum.
Ella bufou levemente e fechou os olhos.
- Vamos morrer de fome.
- E se entrarmos lá, vamos ser comidos.
Algo fisgou a linha de Ella e ela puxou com alguma dificuldade, não era grande coisa mas já era algo a mais para o jantar. Soltou o peixe com cuidado e o jogou em uma bolsa feita de rede, assim sua mochila de caça não seria tomada pelo cheiro do pescado.
- Ouvi dizer que seu vilarejo está bem, alguns caçadores tem visitado a floresta ao leste e disseram ter visto cervos e outros animais grandes – Ella tentou argumentar – E você tem medo de histórias contadas para assustar criancinhas.
Klaus morava em um vilarejo que, assim como o dela, parecia ser isolado e cercado por florestas, rios e lagos; e Ella não entendia o motivo de seu amigo ir tão longe atrás de um pouco de caça enquanto em sua casa as coisas estavam tão difíceis. Eles se conheceram dois anos antes, quando Klaus se perdeu e estava prestes a entrar em um pântano quando Ella o salvou de cair de cara na lama; os dois buscavam uma forma de alimentar suas famílias, Klaus era bom pescando e subindo em árvores para colher frutos, Ella era boa com o arco e conseguia acertar coelhos e pássaros a uma distância considerável.
- Não são para assustar criancinhas – Klaus por fim respondeu – É perigoso, principalmente o castelo.
Novamente Ella precisou sufocar uma risada, a reticência de Klaus em relação ao castelo que erguia-se majestosamente sobre seu vilarejo sempre lhe causava um ataque de risos. Certa vez Ella resolveu encontrar o amigo perto do seu vilarejo e ficou alguns minutos observando a construção gigantesca, imaginando como seria por dentro, até que Klaus apareceu e praticamente e arrastou pelo braço.
- Ele é habitado por vampiras – falou em tom de deboche – Tudo bem, não insisto mais.
A pesca resultou em mais dois peixes não muito maiores do que um palmo, ambos pescados por Klaus; a busca pela floresta resultou em um punhado de amoras selvagens que estavam meio azedas, algumas nozes e só. O vilarejo de Klaus era tão ruim assim? E se era, por que a família dele não se mudava?
Os dois voltaram para a beira do lago e se sentaram em um local em que a grama estava relativamente seca, quebraram algumas nozes com uma pedra e as comeram em silêncio e Ella tentou se convencer a não se sentir culpada por isso, eram poucas para fazer a diferença em casa.
- Quer dividir as amoras também? – Klaus perguntou – Não vale a pena levá-las para casa, e de qualquer forma tenho uma coisa pra você.
Klaus tirou um pedaço de pão da bolsa que trazia a tira colo, não era grande e nem havia confeitos, a massa estava simplesmente polvilhada com alguns salpicos de açúcar e ainda assim parecia ótimo.
- Tome, pode comer – Klaus lhe deu a maior parte do pão – Coloque as amoras dentro e vai parecer melhor ainda.
- Obrigada – Ella agradeceu com sinceridade e mordeu o pão, o sabor a fez gemer baixinho – É uma delícia mesmo sem as amoras.
Partiram o pão com uma pequena faca que Klaus sempre carregava consigo, e espremeram as amoras contra a massa macia.
- Um dia vou fazer geleia de uvas para você.
Ella riu.
- Nos seus sonhos.
- Você vai ver...
Às vezes Ella se sentia desconfortável com a possibilidade de Klaus ter sentimentos por ela, sentimentos que ela não poderia devolver jamais, não quando as jovens do seu vilarejo lhe saltavam aos olhos ao passar; Klaus era um bom amigo, um ótimo companheiro de caça, e ela não sabia como revelar suas verdadeiras atrações a ele.
- Te trouxe mais uma coisa.
Klaus tirou um livro de aparência surrada e um tanto quanto sujo, estendeu-o a ela com um sorriso.
- Ia ser usado em uma fogueira, mas consegui roubar.
Ella tirou os óculos de dentro da bolsa e o colocou.
- A Divina Comédia – Ella leu o título que era vagamente visível – Esse eu nunca ouvi falar.
- Tomara que goste, de nós dois você é a leitora.
- Quando consigo um – respondeu ao guardar o livro e os óculos com muito cuidado – Muito obrigada, eu gostei muito.
- Você precisa de algo pra te fazer esquecer a floresta e o castelo mal assombrado – Klaus provocou – Falando nisso, preciso chegar em casa antes que a noite venha.
- É melhor ir mesmo.
Olhando para suas parcas provisões, que no total totalizavam três esquilos e três peixes, Ella estendeu um dos seus esquilos para somar aos dois peixes pescados por Klaus; a família dele era grande, havia cinco irmãos mais novos para jantar aquela noite, e ela poderia se virar com o que tinha mesmo.
- Não posso aceitar.
- Pode sim – Ella insistiu – E vai. Estou insistindo.
Klaus suspirou e aceitou o presente, murmurou um agradecimento envergonhado e a abraçou rapidamente. Ele era um bom amigo, leal, e por isso mesmo Ella não se importava em dividir a caça com ele.
- Te vejo em breve – Klaus lhe acenou – Volte em segurança.
- Você também.
Seu amigo se foi e Ella permaneceu parada por alguns minutos. Decidiu, por fim, que não havia alternativa senão voltar para casa, então trançou o cabelo como sempre usava e pegou suas coisas para enfrentar a caminhada de volta.
Seu vilarejo não ficava longe e ela chegou antes do pôr do sol, ainda havia muitas pessoas andando pelas ruas e vielas, alguns poucos tentando vender vários tipos de coisas diferentes; Ella passou por um velho vendendo algumas maçãs minúsculas, o senhor tinha o rosto enrugado e expressão desolada, olhava para o chão como se a lama pudesse desvendar os segredos do universo.
- Com licença – Ella se aproximou e tirou as quatro últimas castanhas do bolso – Quer trocar?
O velho sequer olhou em sua direção ao acenar positivamente, Ella deixou as castanhas sobre o tablado de madeira e pegou duas maçãs, escondeu-as no fundo da bolsa e se despediu. Não parou para mais nada até chegar no chalé decrépito em que morava, a porta de madeira rangeu quando ela a empurrou e entrou na cozinha.
- Aí está você – Dolores resmungou e apontou a colher de pau em sua direção – O que trouxe?
Sua madrasta era uma mulher pequena, mas de aparência atarracada, e parecia sempre estar chateada com algo e normalmente era a presença de Ella em casa.
- Não muita coisa.
Ella tirou os dois esquilos e o peixe da bolsa e os colocou sobre a mesa, não era muita coisa, mas ela esperava que servisse como um jantar. Dolores encarou a comida, sua boca tremeu e a mãozorra apertou o cabo da colher de pau; apesar de baixa, era uma mulher forte e rápida, Ella não teve tempo de se esquivar do golpe que acertou sua bochecha esquerda.
- Sua inútil! Isso não dá pra nada! – Dolores vociferou – O que eu faço com essa miséria?! É melhor sair daqui antes que seu pai chegue.
Não precisou ouvir duas vezes, Ella correu para o quarto dos fundos enquanto cobria o rosto com a mão. Sua bochecha queimava após o golpe com a colher e quase certamente teria um hematoma na manhã seguinte, a dor no ego e na alma era muito pior, não aguentava mais aquela vida.
- Você tá sangrando.
A vozinha saiu baixa, quase um sussurro, e Domenico saiu do esconderijo atrás da porta. Ella levou a mão aos lábios e notou que havia um corte, provavelmente proveniente do golpe contra seus dentes.
- Não foi nada – disse ao pendurar o arco e a aljava em um prego na parede.
A menina magricela se aproximou e sentou-se no chão sujo, sua irmãzinha tinha sete anos e uma vida tão infeliz como a dela, Dolores não era boa nem para os próprios filhos.
- Onde está o Frederick? – Ella sussurrou – Alguma notícia?
- Não voltou ainda e mãe não me deixou procurar. Você viu ele quando tava caçando lá fora?
Judith parecia preocupada e não era para menos, Frederick era seu irmão mais velho, o do meio, e enquanto Ella precisava caçar e pescar quase diariamente, pós dois raramente eram vistos separados por muito tempo. Quando Ella saiu de manhã, Frederick já não estava em casa e seu pai se resignou a explicar que encontrou um trabalho de um dia para o menino, por isso ele estaria fora por algumas horas.
Ella tirou as maçãs da bolsa e estendeu a irmã.
- Come rápido antes que ela tire de você – disse ao limpar o sangue do lábio – Vamos procurar o Frederick depois do anoitecer.
As maçãs desapareceram rapidamente, só quando o último pedaço foi mastigado com semente e tudo é que Judith voltou a falar.
- Ouvi uma coisa ruim - ela sussurrou.
- Me conta.
- Mãe contou para a vizinha que o pai deixou o Frederick na floresta porque a comida acabou, sem comida não dava pra ficar com nós três.
O estômago de Ella se contorceu de forma desagradável. Não era incomum que em tempos de fome crianças fossem abandonadas na floresta, pior ainda é que quase sempre acabavam sendo caçadas por pessoas famintas, e o destino do seu irmãozinho podia ser pior do que simplesmente estar com frio e fome em um local ermo.
- Vamos procurar por ele.
- Tem mais – Judith continuou sussurrando – Ouvi que vão me levar essa noite e um homem vem te buscar.
- Um homem?
- Ele vai pagar.
A cabeça de Ella correu a mil por hora, precisava decidir o que fazer e bem rápido.
- Me escuta, pega o que puder e coloca na sua bolsa de trabalho – Ella sussurrou – Eles levaram o Frederick durante a madrugada, então vamos sair assim que ficarem em silêncio lá fora.
- Vamos encontrar o Fred, não é?
- Vamos sim, e então vamos embora daqui e eles não vão nos encontrar. Vamos encontrar meu amigo Klaus, ele mora em outro vilarejo e vai nos ajudar; se lembra que falei sobre ele, não é?
Judith assentiu furiosamente e Ella levou o dedo aos lábios para indicar que fizesse silêncio. Deixou-a no quarto e se esgueirou até a cozinha onde Dolores se ocupava em limpar o peixe e o esquilo, a mulher sequer notou sua presença mas uma mão ossuda pousou em seu ombro e apertou.
- Aí está você.
Seu pai a virou e a encostou na parede.
- Não conseguiu trazer um simples jantar, não é? Para o que você serve além de ser uma boca para comer?
Ella queria gritar que teriam mais o que comer se ele parasse de beber e voltasse a trabalhar, mas isso lhe renderia outra surra e uma torrente de insultos.
- Sinto muito, pai. Vou tentar melhorar amanhã...
- Seu futuro marido vem te buscar amanhã, ele pagou um bom dinheiro por você... - Seu pai coçou a barba e voltou a apertar seu braço – Vai se limpar e colocar um vestido, vive por aí usando calças como um homem, as pessoas estão comentando.
- Sim, pai.
- Judith vai ajudar em casa e com o dote que seu marido vai pagar, vamos ficar bem.
- Sim, pai.
- Agora vá se deitar, por sua culpa você e sua irmã vão ficar sem jantar.
Ella assentiu sem responder, mesmo que seu rosto estivesse queimando de raiva mal contida; como sempre eles comeriam a pouca comida que tinham, e Judith dormiria ainda com mais fome se ela não tivesse conseguido as maçãs.
- Sai da minha frente, você não serve pra nada mesmo...
Depois de tanto tempo ela já devia ter se acostumado ao tratamento, era assim desde que sua mãe morreu quando a peste se espalhou e não mudaria nunca, mas ela sempre esperava que seu antigo pai voltasse a ser quem era; uma batalha perdida e inútil, então Ella apenas acenou e voltou para o quarto onde Judith esperava por ela.
- Vamos partir em algumas horas. Pegou suas coisas? – sussurrou para a irmã que acenou em resposta – Tá bom, então finge que tá dormindo.
Ella juntou algumas peças de roupa na bolsa que usava para caçar, deixou o arco ao alcance da mão e se deitou no chão duro e frio; eles não tinham camas, somente um travesseiro fino e um cobertor surrado, então quase sempre dormiam completamente vestidos e calçados para manter o calor. Judith se deitou encostado a ela e meteu o polegar na boca, sugando-o avidamente ao cair no sono; pelo menos ela estava dormindo e descansando, além de não sentir o cheiro de comida enquanto estava com fome, mas Ella não conseguiu fechar os olhos por um segundo sequer, permanecendo em alerta para cada estalo e movimento na casa.
A primeira vista ninguém diria que eram irmãs. Enquanto Ella herdara os olhos azuis e cabelos da cor do trigo de sua mãe, Frederick se parecia com o pai, alto e moreno, já Judith não se parecia com nenhum deles; desde o primeiro momento Ella era completamente apaixonada pela irmãzinha, Judith era linda com seus cabelos e olhos castanhos, sardas espalhadas sobre o nariz arrebitado e bochechas rosadas. Verdade que sua irmãzinha podia ser uma pestinha quando queria, mas Ella sempre seria louca por Judith.
Assim que tudo ficou silencioso, quando tudo o que podia ouvir eram os estalos naturais do casebre, Ella empurrou levemente a irmã para que despertasse e acenou para que a seguisse; a pobre menina estava caindo de sono, parecendo grogue, e piscou algumas vezes para tentar se situar no ambiente.
- Vamos – Ella chamou em um sussurro – Fique quietinha, Judy.
- Tá bom.
Judy imitou seu gesto e jogou a bolsa sobre o ombro, Ella pegou o arco e a aljava tomando muito cuidado para não fazer qualquer barulho desnecessário. A porta do quarto rangeu levemente ao ser empurrada e as duas ficaram parados no corredor tentando ouvir se o pai ou a madrasta haviam despertado, mas tudo continuou silencioso e elas seguiram em frente; através das fretas da janela da cozinha Ella pode ver que a lua estava cheia e por isso eles conseguiriam se mover com rapidez e segurança pela floresta.
- Vem, Judy – chamou baixinho – Vamos precisar correr.
Ella agarrou a mão da irmã mais nova e a levou para fora, assim que alcançaram a rua lamacenta ouviram um grito de despertar os mortos.
- Eles estão fugindo, Otto! Estão fugindo!
- Corre! – Ella gritou – Corre, Judy!
Praticamente arrastou a irmã através das vielas que conhecia como a palma da sua mão, Judith estava assustada e trocava os pés mal conseguindo correr direito; seus instintos de caçadora estavam ligados no máximo, então Ella sabia que estavam sendo perseguidas pelo pai e que ele não tardaria a alcançá-las. Mal o pensamento passou por sua cabeça e os passos desajeitados do homem se aproximaram rapidamente, o que não era nada bom.
- Volta aqui, sua vadiazinha!
- Vem, Judy..
Judith tropeçou e caiu arrastando Ella junto, as duas bateram no chão com um baque surdo e todo o oxigênio pareceu ter sido expelido dos seus pulmões. Uma mão que se assemelhava com uma garra de um monstro agarrou os cabelos de Ella por trás e puxou sua cabeça de forma dolorosa.
- Foge, Judy! – Ella gemeu de dor – Foge!
Sua irmã conseguiu se soltar e correr em direção à floresta, mas Ella foi virada com violência e jogada de volta ao chão. Sua cabeça girou com o impacto, seu mundo virou de cabeça para baixo e por alguns segundos Ella não soube o que era céu ou terra; seu pai se arrastou sobre ela e a pressionou contra o chão frio.
- Fica quieta – seu pai mandou – Não quero ter que machucar você, mas eu vou se for preciso.
Com alguma dificuldade Ella ergueu a perna direita e desceu o pé com toda sua força contra a coxa do pai, fazendo Otto gritar em agonia; ao seu redor o burburinho crescia, as pessoas começavam a se mover dento de suas casas para assistir o que estava acontecendo do lado de fora, embora nenhuma delas se desse ao trabalho de interferir, por aqueles lados um pai corrigia os filhos como bem entendesse.
- Vadia!
O punho pesado de seu pai desceu impiedosamente sobre seu olho e Ella viu estrelas, a dor se irradiou pelo nariz e então por todo seu rosto como veneno.
- Eu vou matar você, sua vagabunda inútil!
Um novo golpe a acertou, dessa vez passou de raspão pela sua bochecha, mas ainda doeu como o inferno.
O peso foi tirado de cima dela e Ella pode respirar fundo, apenas por um breve momento mas foi o bastante para se recuperar e levantar-se com dificuldade. Um rapaz do vilarejo, Ella achava que ele se chamava Will, segurava seu pai pelos braços e o impedia de se aproximar dela novamente.
- Corre, menina! Foge daqui!
Ella resgatou o arco, a aljava de flechas e correu sem olhar para trás. Seu pai gritava impropérios e ofensas como um louco, usando as palavras mais chulas para descrevê-la e mesmo naquela situação doeu muito.
Sacudiu os pensamentos para longe e se forçou a seguir em frente, Ella alcançou a linha das árvores e se sentiu mais segura ao adentrar a floresta, ela só precisava encontrar Judy e as duas poderiam fugir juntas; o único problema é que não havia sinal de sua irmã em lugar algum, e seria praticamente impossível rastreá-la na escuridão da noite, mesmo que a lua cheia ajudasse em alguma coisa.
- Judy? – Ella chamou o mais alto que arriscou falar – Judy, você está aí?
Não houve resposta e Ella decidiu seguir em frente.
Seguiu os fachos de luz que aqui e ali se infiltravam através dos galhos das árvores, o frio parecia se infiltrar em seus ossos a respeito do casaco que usava e Ella estava se deixando levar pelo desespero que se abatia sobre si. Por mais que o pai tenha se transformado em uma figura irreconhecível, ainda custava acreditar que fora capaz de abandonar um filho na floresta, tentara matar outra e estava disposto a vendê-la por algumas moedas de ouro para um qualquer.
Ella pisou em falso e perdeu o equilíbrio novamente, não encontrou um lugar firme para apoiar o pé direito e acabou rolando morro abaixo até parar a centímetros de uma árvore, por pouco não sofreu um traumatismo craniano.
Estava exausta, com fome, frio, seu rosto devia estar desfigurado e tudo em seu corpo doía, a vontade de se sentar e chorar quase a dominou por completo, mas Ella forçou esses pensamentos para o fundo da sua mente e tentou manter a calma.
Não adiantaria de nada procurar por Judy aquela noite, talvez a encontrasse bem e viva no dia seguinte, talvez até Fred se tivesse sorte, ela só precisava tentar rastreá-los.
Ella se levantou e conferiu se o arco estava inteiro, felizmente não havia avarias sérias na arma e o cordão foi puxado facilmente quando ela testou; com a arma em mãos, ajeitou a bolsa sobre o ombro e se pôs a caminhar em busca de um abrigo para passar a noite. Semanas antes, Klaus e ela haviam encontrado uma saliência de tamanho mediano em uma rocha, não chegava a ser uma caverna mas serviu muito bem para protegê-los da chuva, se Ella conseguisse encontrar o lugar poderia se proteger ali até o sol nascer.
Vagou por horas na escuridão, ou assim pensava, poderia ter se passado apenas alguns minutos desde que se embrenhara na floresta e cada sombra fazia vezes de inimigo pronto para saltar sobre ela. Era como caminhar por um labirinto cheio de passagens secretas e inimigos esperando para dar o bote, tal qual em livros de fantasia aquele era um obstáculo a ser superado em busca de algo maior.
O que viria para ela, não tinha ideia mas precisava ser melhor do que a vida que vinha levando.
Quando Ella finalmente encontrou o local ficou feliz em notar que estava bem seco, assim reuniu alguns galhos e improvisou uma fogueira; foi difícil trabalhar com os dedos gelados e duros, levou tempo até conseguir produzia uma faísca com a pederneira que sempre levava consigo, mas o fogo finalmente pegou e aumentou aos poucos, o que pareceu afastar o frio.
Sabia que estava correndo o risco de atrair atenção indesejada, mas era isso ou morrer congelada.
Apesar da sua pequena vitória e do cansaço, Ella não teve coragem de fechar os olhos por mais do que alguns segundos. Apagar o fogo significava congelar até a morte, dormir com ele acesso queria dizer que alguém poderia se aproximar sem que ela viesse e, também, Ella queria ficar de olho caso algum dos seus irmãos aparecesse.
Apesar de suas expectativas, a noite transcorreu sem aparições desejadas ou indesejadas.
Ao nascer do sol, Ella tomou água de uma nascente que sabia ser pura e conseguiu encontrar mais alguns arbustos de amora selvagem, do qual se forçou a comer as frutinhas azedas para ao menos silenciar seu estômago. Depois de cuidar disso, Ella andou pela floresta tentando rastrear algum sinal dos irmãos, mas menos de duas horas depois sentiu que não conseguia mais.
Tomando um antigo conselho de Klaus, Ella subiu em uma árvore e, usando um pedaço de corda que sempre carregava na mochila, se amarrou ao tronco após escolher um galho seguro para se sentar; segura no alto, recostada ao tronco da árvore, permitiu-se dormir e descansar no sono dos justos.
Acordou de um sono profundo, exausto, e sem sonhos, ao que ela agradeceu a qualquer deidade que estivesse de plantão. Notou que o sol começava sua descida no horizonte, mas que ainda teria algum tempo de luminosidade par seguir em frente; contudo, não podia continuar naquele ritmo de vigiar a noite e dormir durante o dia, precisava cobrir terreno e encontrar seus irmãos.
Ella andou calmamente a procura de rastros, qualquer coisa que indicava que outra pessoa havia passado por ali. A floresta mudou conforme caminhava por entre suas árvores, ficou mais silenciosa como se algo poderoso o bastante para afastar os outros animais residisse ali; Ella não deu atenção aos seus instintos até que foi tarde demais, tudo dentro dela parecia gritar e ordenar que corresse o mais rápido possível, mas ela não o fez.
- Aí está você.
A voz familiar fez os cabelos da nuca de Ella se arrepiarem de forma desagradável. Mal teve tempo de se virar para ver o pai saltando sobre ela, os dois rolaram um barranco, passando um por cima do outro, até que chegaram ao fim do declive e cada um foi lançado em uma direção diferente.
- Fique longe de mim!
Ella ofegou com dificuldade, foi como se a queda tivesse exaurido seus pulmões.
Há uns dois metros de distância seu pai tentava se levantar, mas dessa vez ela foi mais rápida e se levantou com uma flecha posicionada no arco.
- Não quero fazer isso, pai.
- Você não teria coragem – o homem que um dia havia sido seu pai a provocou com uma risada cruel – Já devia estar morta como sua mãe, ela morreu de desgosto por ter uma filha como você! Sempre olhado para as outras garotas...
Seu pai deu um passo em frente e Ella ergueu ainda mais o arco.
- Mandei não se aproximar de mim, porra!
- Seus irmãos já estão mortos, Fred eu sei que está – ele parou de andar, mas sua mão agarrou o cabo de uma faca que saía de um bolso lateral – Você só não está morta porque deve valer algum dinheiro!
- Pai...
- Agradeça a Dolores, ela me convenceu a casar com você em troca de algumas moedas – seu pai abriu um sorriso repugnante – Eu queria cobrar por vez que se deitassem com você.
Ella baixou o arco e soltou a flecha que se enfiou na coxa esquerda de seu pai. O homem urrou como um animal ferido, mas a agonia estampada em seu rosto não era nada comparado à sensação de traição de quem devia cuidar dela, a dor era quase insuportável.
Sem perder tempo ou olhar para trás, Ella correu por entre as árvores, desviou de cada obstáculo por puro instinto. Seu rosto doía e o cheiro de cobre a envolvia de forma persistente, havia algo molhado e quente escorrendo da sua testa até a bochecha e àquela altura Ella mal podia enxergar do olho direito e adivinhou que devia estar inchado graças ao soco da noite anterior.
O céu já estava escuro quando Ella alcançou a estrada que levava ao castelo que Klaus tanto temia e, do lado oposto, seu vilarejo.
Sem pensar duas vezes correu o mais rápido que podia, meio calambeando e perdendo o rumo, em direção ao vilarejo. As casas estavam em situação um pouco melhor do que as do seu próprio vilarejo, mas todas se encontravam fechadas e era como se não houvesse qualquer vivalma naquele lugar.
Tarde demais, Ella se deu conta de que não sabia onde Klaus morava.
- Klaus! Klaus Constantin! – Ella gritou com a voz rouca e já fraca, o gosto ferroso atingiu seus lábios a fazendo sentir o sabor do próprio sangue – Por que não tem ninguém aqui?! Onde estão todos?
Ella chorou e cambaleou pela rua deserta, era a face completa da dor e do desespero; estava ferida e assustada, e ninguém parecia se importar o bastante para abrir uma janela. Ella mal podia ver por onde ia, apenas seguia porque seu corpo era teimoso e se negou a desistir por completo; sua garganta ardia de tanto gritar e ainda assim continuou:
- Klaus Constantin! Klaus!
A escuridão e o olho inchado tornavam tudo pior, mais difícil e assustador.
Ella trombou com algo e perdeu o equilíbrio, mas um par de braços conhecidos a amparam bem a tempo de evitar a nova queda.
- Ella, o que aconteceu com você?! – Klaus perguntou ao ampará-la, mas Ella não conseguiu levantar a cabeça ou responder, sentia-se como uma boneca de trapos surrada – Nos perdoe, Lady Dimitrescu, Ella não teve a intenção de perturbá-la. Minha amiga não é daqui e está muito mal...
Ella teve a vaga sensação de que Klaus se desculpava com alguém enquanto tentava arrastá-la pela rua.
- Meu pai... – Ella conseguiu balbuciar – Atirei uma flecha nele...
- Seu pai? – Klaus perguntou bobamente.
- Não sei se está vivo...
Tomando aquilo como uma deixa, Klaus tentou tirá-la dali rapidamente, mas Ella não estava em condições de andar rapidamente.
- Sentimos muito, Lady Dimitrescu, vamos sair do seu caminho em alguns segundos... Foi apenas um mal entendido.
Klaus suplicava e Ella não tinha ideia de com quem ele estava falando, uma mão forte segurou seu braço e os impediu de continuar em frente. Por um momento não houve qualquer palavra, nenhum som, até que a voz feminina soou interessada, talvez com uma pitada de preocupação.
- Seu pai fez isso com você, criança?
Ella ergueu a cabeça e achou que estava delirando, não tinha como aquela mulher ser tão alta daquele jeito.
- Sim e eu atirei nele... Ele queria...
- O que? – a mulher insistiu.
- Nos matar.
- Hum.
Havia um certo tom de aprovação da mulher. Se Ella estivesse em pleno funcionando das suas capacidades mentais, teria percebido o terror no rosto do amigo ou o sorriso quase predatório da mulher.
Lady Dimitrescu, como Klaus a chamou, estendeu a mão, tocou o lábio inchado de Ella e seguiu até sua bochecha encharcada de sangue.
- Doce e forte ao mesmo tempo... – a voz profunda analisou – Você é uma lutadora.
Ella perdeu os sentidos e o mundo se tornou apenas escuridão.
[...]
A claridade fez os olhos de Ella doerem assim que despertou. Não, não os olhos. Apenas o olho que ela conseguiu abrir doeu apesar da parca luz que se infiltrava através das cortinas, o outro doía como se tivesse saído ferroado por centenas de vespas e ela o sentia inchado.
- Droga – Ella gemeu ao tentar de mexer, o resto do seu corpo não estava em melhor estado.
Uma porta foi aberta e fechada suavemente.
- Você acordou, isso é bom – disse Klaus ao depositar algo pesado sobre uma mesinha – Como se sente?
- Como se tivesse sido pisoteada quase até a morte.
- Mamãe limpou e examinou você. Nenhuma costela quebrada, mas pode haver algum trincado; e embora tenha vários hematomas, o pior dos ferimentos é no olho – disse Klaus ao puxar uma cadeira e se sentar ao seu lado na cama - Foi ela quem trocou suas roupas a propósito.
Percebeu que estava em um quarto modesto, pequeno, porém limpo e bem cuidado. Havia apenas uma mesinha, uma cômoda antiga e a cama estreita onde Ella estava deitada, não passava de um colchão fino recheado de palha mas ainda era melhor do que o chão frio e duro.
- Eu agradeço pela ajuda. Por toda a ajuda.
Klaus brincou com a manga da camisa e puída e, pela primeira vez desde que se conheciam, foi como se ele não conseguisse olhar nos olhos de Ella.
- O que aconteceu?
Ella narrou tudo nos mínimos detalhes, até mesmo a parte em que seu pai decidiu vendê-la a um desconhecido, mas na hora resolveu deixar de lado a parte em que insinuou prostituir a própria filha em troca de algumas moedas de ouro; apesar do quanto confiava em Klaus, esse ainda era um assunto demasiadamente delicado para lhe falar e só de pensar nisso suas bochechas coravam.
- E seus irmãos estão perdidos na floresta?
- Sim, acho que sim.
- Entendo... É muita coisa.
- Você não devia estar ajudando seu pai com a colheita ou caçando?
Klaus negou com um aceno.
- Meu pai vendeu tudo o que podia, vamos ficar bem neste inverno – ele fez uma pausa e pareceu procurar as palavras certas antes de continuar: - Estou contente que conseguiu chegar aqui com vida, mas não devia ter aparecido durante a noite. Aquela em que você esbarrou é Lady Dimitrescu, a dama do castelo.
Ella sorriu de forma provocativa e estava prestes a tirar sarro do medo do amigo, mas notou sua expressão e mudou de ideia. Klaus parecia muito assustado de verdade.
- Não tive a intenção de perturbá-la.
- Elas não se importam com isso, Ella! Poderia ter morrido por muito menos – Klaus se exasperou – A cada três meses várias donzelas entram naquele castelo e nunca mais são vistas, coisas horríveis acontecem lá! Você poderia ter morrido...
- Eu teria morrido se não tivesse chegado aqui.
- Você não entende...
- Ela não me pareceu muito ruim, mas não me lembro de muita coisa.
Klaus balançou a cabeça em descrença.
- Ela passou o dedo pelo seu rosto ensanguentado e depois lambeu.
- Tá, isso é estranho... – Ella suspirou – Mas estamos vivos e você parece preocupado.
- Meu pai vendeu toda a produção que podia.
- E você diz isso como se fosse ruim.
- Não é, mas as pessoas comentam e tem medo. Tem uma grande chance de terem feito isso depois da cena de ontem, como saímos vivos devem achar que temos algo com... Você sabe.
Ella não sabia, mas resolveu não empurrar o amigo ainda mais.
- E aquilo? – apontou para a caixa que ele depositara sobre a mesa aí entrar – O que é?
- Não sei, é pra você.
Klaus a ajudou a se sentar na cama e pegou a caixa que parecia pesada, colocou-a ao seu lado e voltou a se sentar na cadeira.
- Quem trouxe?
- Isso estava junto.
Ele lhe estendeu um pedaço de papel dobrado, o qual estava preenchido por uma caligrafia elegante e bem desenhada.
- Para a lutadora – Ella leu – Não entendi.
- Lady Dimitrescu a chamou assim ontem à noite.
- Oh...
- Abra a caixa, nenhum de nós teve coragem de se intrometer.
A caixa era de madeira, mas a tampa não estava pregada e a Ella a desencaixou com relativa facilidade; seu conteúdo a surpreendeu, duas garrafas de leite, folhas para chá, pão e um vidro com uma mistura vermelha como sangue. Curiosa quanto ao seu conteúdo, Ella o abriu primeiro e o levou até o nariz, o cheiro era doce.
- Parece bom.
Ella enfiou o dedo dentro do vidro e tirou um punhado do seu conteúdo.
- Não me diga que você vai...
Sem esperar o resto da sentença de Klaus, Ella enfiou o dedo na boca e gemeu em apreciação. Era doce e saboroso, com um leve toque ácido dos morangos.
- É geleia, ou doce de morango – Ella estendeu o pote de vidro em direção ao amigo, mas Klaus não fez menção de pegá-lo – Vamos, Klaus, experimente.
Como seu amigo continuou resistindo, Ella arrancou um pedaço do pão e o mergulhou na geleia antes de enfiá-lo na boca. Nunca na vida tinha comigo algo tão gostoso antes, algo que precisava ser apreciado ao invés de apenas engolido para saciar o estômago.
De forma relutante, Klaus aceitou um pedaço de pão coberto pelo doce e fez uma careta de aceitação.
- Tenho que admitir, é muito bom.
Ella insistiu em dividir com Klaus e sua família, mas seu amigo afirmou que sua mãe não se sentiria confortável com a comida vinda do castelo; por fim, ele concordou em levar o leite e o chá, mas fez Ella esconder a geleia e o resto do pão, seria mais difícil explicar essas coisas.
Ella entrou e saiu do sono profundo aquele dia, ainda sentindo a exaustão preencher seus ossos e até a alma. À tarde, eles tomaram leite quente com mel, conversaram mais um pouco e Ella voltou a dormir; seus irmãos nunca saíam da sua mente, pensamentos sobre onde estavam e o que teria lhes acontecido iam e viam conforme saía e entrava no sono. Seu pai disse que Fred estava morto, mas ainda havia esperança para Judy.
À noite sonhou com uma presença forte a segurar-lhe o braço, algo ou alguém que a vigiava durante o sono, mas a sensação se foi rapidamente e Ella caiu em sono profundo.
Não houve mais presentes ou bilhetes, nenhuma lembrança ou ato para demonstrar que a Senhora do castelo havia reconhecido sua efêmera existência.
Nos dias que se seguiram Ella saiu sozinha para correr. Ainda não podia caçar ou treinar com o arco até que seu olho desinchasse completamente, a falta de visão periférica era um empecilho para essas atividades, então enquanto Klaus ajudava o pai a colher a parte da lavoura que se destinava as provisões do inverno, Ella saía para correr.
Sua ajuda foi dispensada, Klaus insistiu que ela se recuperasse primeiro, e por isso ela corria. Saía pelos fundos da casa do amigo, dava a volta no vilarejo e seguia o caminho de pedra até o enorme castelo de Lady Dimitrescu; sempre parava a alguns metros do portão e fazia a volta, às vezes entrava na floresta, outra voltava para a aldeia. Ela nunca se atreveu a entrar, embora naquelas ocasiões sentisse que alguém a observava, como se ela fosse uma presa a ser estudada.
Ella não ligava para os boatos dos aldeões, preocupava-se em fortalecer seu corpo para procurar pelos irmãos o quanto antes; corria sem botas ou descalsa quando estava quente o bastante, aproveitando para pisar silenciosamente na floresta, tentando não chamar a atenção para si mesma.
Klaus se livrou do vidro de geleia vazio, mas Ella guardou o bilhete de Lady Dimitrescu em sua bolsa. E não contou ao amigo sobre isso. Nem ela mesma sabia o que a impulsionou a tal ato enão quis pensar nisso, convenceu-se de que foi um ato de gratidão e só.
Assim as semanas se passaram, Ella não sentia mais dor e seu olho se recuperou muito bem, exceto pelo hematoma que diminuía gradualmente, ela ainda precisava de óculos para ler mas sempre precisou e tinha sorte de tê-los.
Os dias se passaram rapidamente, logo já haviam se passado duas semanas desde que fugira de casa; apesar dos protestos de Klaus, Ella devolveu seu quarto e se acomodou no sofá puído da sala, ainda era melhor do que o chão e ela não se sentiria tão culpada por tirar o amigo da própria cama. A vida seguiu seu curso natural, e apesar de sempre perguntar aos caçadores se haviam encontrado meninos feridos na floresta, a resposta era sempre negativa.
Àquela tarde em especial, logo antes do pôr do sol, Klaus a encontrou nos fundos e a puxou pelo braço; estava esbaforido, o rosto já vermelho pelo esforço, e a puxou até o quarto onde suas coisas ainda estavam.
- Me escuta, não temos muito tempo! Pega suas coisas, o arco, as flechas e tudo mais – Klaus praticamente sussurrou – Tem que sair daqui e rápido.
- O que aconteceu? Não entendo...
Ella realmente não entendia porque o amigo a estava expulsando, não havia descumprido nenhuma regra ou desrespeitado ninguém... A dor da rejeição doeu como uma ferroada em seu coração, estava acontecendo de novo...
- Só por essa noite – Klaus lhe entregou o arco e a aljava – Ouvi que vão buscar donzelas para trabalhar no castelo hoje e não quero que te levem, e você não pode simplesmente recusar – Klaus se apressou em interrompê-la – E nem se esconder. Se Lady Dimitrescu a quer, ela a levará e nada poderá impedi-la, e então eu nunca mais a verei. Entendeu?
Ella assentiu e Klaus avançou, segurou seu rosto com as duas mãos e pressionou os lábios contra os dela. A barba arranhou seu rosto, pinicou, e o cheiro do amigo a envolveu, foi reconfortante na mesma proporção em que não foi; Ella não conseguiu corresponder, não fechou os olhos, foi um gesto vazio e ela se perguntou porque as pessoas gostavam daquilo.
Klaus se afastou e Ella mal pode olhar em seus olhos escuros.
- Não posso te perder – Klaus murmurou – Você vai pra floresta e se vierem te procurar, vamos dizer que foi caçar e que não sabemos quando volta.
- Vai dar certo?
- Talvez sim, você não é daqui e vamos dizer que não sabia sobre a colheita – Klaus voltou a segurar rosto e a manteve tão perto que seus cabelos escuros fizeram cócegas em seu rosto – Vou te encontrar na floresta mais tarde e passaremos a noite por lá, faça marcas nas árvores para que eu possa seguir.
- Tá certo – Ella concordou – Eu vou.
Klaus lhe entregou a bolsa com suas coisas e a faca que sempre usava quando pescavam juntos.
- Lembre-se de fazer as marcas, vou te buscar assim que for possível.
Ele se inclinou novamente, mas dessa vez Ella virou o rosto para que o beijo acabasse em sua bochecha.
- Obrigada – agradeceu – Vou o mais longe que conseguir.
- Vá, rápido.
Ella saiu do quarto sem olhar para trás, não conseguiria olhar nos olhos de Klaus depois daquela demonstração de sentimentos que ela jamais seria capaz de devolver.
Andou o mais rápido que pode pelas ruas do vilarejo, ninguém lhe prestou atenção, porém não havia mais pessoas deixando o local. Como Klaus disse, não havia como impedir, e Ella só teria uma chance de escapar. Ao contrário das outras vezes, não tomou o caminho que passava logo em frente ao castelo, mas fez questão de passar perto o bastante para que fosse vista.
Entrou na floresta enquanto ainda havia luz do dia e torceu para que a lua fosse capaz de iluminar o caminho, pelo menos o suficiente para que não se perdesse. Conforme o combinado fez as marcas nas árvores indicando o caminho que estava tomando, e conforme a escuridão avançava e a temperatura caía, Ella começou a pensar se estar no castelo seria tão ruim assim.
Pelo menos o céu estava limpo, sem nuvens, e ela podia enxergar consideravelmente bem, embora não pudesse acender uma fogueira como da última vez.
Ella perdeu a noção do tempo, continuou andando mesmo quando seus músculos protestaram, parou apenas quando seu equilíbrio vacilou ao pisar em uma pedra saliente.
Achando que estava longe o bastante, Ella fez mais uma marca numa árvore de tronco grosso e se afastou mais alguns metros floresta adentro até que algo chamou sua atenção. Parecia um abrigo construído às pressas, um monte de galhos amontoados sobre uma forquilha e um pedaço de pano sujo servindo como uma porta improvisada.
Ella puxou o arco e preparou uma flecha. Aproximou-se com cuidado da construção rudimentar com o coração batendo descontroladamente no peito.
- Judy? – sussurrou – Fred?
Não houve resposta, então Ella continuou pé ante pé.
- Alguém aí?
Ainda silêncio absoluto.
Ella se aproximou e puxou o pano para revelar que estava vazio, apenas um buraco cheio de gravetos e folhas que apodreciam rapidamente. Além da sujeira que se acumulava, Ella reconheceu a bolsa de caça de Judy caída no chão.
- Judy...
Ella puxou a alça e notou que a bolsa estava suja de algo que cheirava como sangue, o que não era um bom sinal de forma alguma. Eram as coisas de Judy, Ella tinha certeza disso, e também significava que seu irmã estava morto àquela altura.
De todas as coisinhas que restaram, Ella tirou apenas o ursinho que ele sempre carregava consigo. O animalzinho recheado de palha estava sujo de lama seca, mas limpo de sangue, e foi o que lhe restou como prova de que sua irmã um dia esteve viva.
Até onde ela podia ver, não havia rastros de outras pessoas por ali, mas é claro que a chuva dos últimos dias podia ser responsável pela falta de pegadas.
Um uivo soou longo e alto, parecia vir de uma distância considerável, mas Ella nunca ouvira um lobo uivar tão alto.
Algo se moveu na escuridão que a cercava. Ella guardou o ursinho em sua própria bolsa e resolveu se afastar dali o mais rápido possível, tendo acabado a colheita ou não, decidiu que preferia parar no castelo do que ser devorada por lobos.
Ella se moveu o mais rápido possível no meio da mata, procurou pelas marcas que havia feito para orientar Klaus a encontrá-la e quanto fosse hora de ir, não podia esperar mais.
O lobo uivou novamente e Ella se pôs a correr com tudo o que podia. A coisa era grande e a perseguia, Ella sabia disso mesmo sem vê-la, parecia muito maior do que um lobo comum e se tinha um então havia mais deles por ali e logo a cercaram se ela não tomasse cuidado.
Passos pesados se aproximaram rapidamente, muito mais rápido do que Ella podia correr, e sua respiração ficou presa na garganta. Estava muito próximo a ela, praticamente pronto para dar o bote, e acabaria com sua vida em segundos.
- Se abaixa!
Ella obedeceu sem pensar, se jogou no chão e um ganido alto foi seguido de um baque surdo ao cair no chão.
- Corre, Ella! – Klaus gritou ao abaixar a besta - Não vou conseguir atirar de novo.
Lançou um olhar rápido para a criatura que tentava se levantar, era maior do que um lobo comum, com pelos extremamente negros e aparência humanoide.
- Que merda é essa...
- Vem logo, Ella!
Klaus agarrou sua mão e a puxou para que o seguisse pela floresta escura, avançaram juntos aos tropeços e Ella agradeceu por todos aqueles dias treinando para conseguir se recuperar; só precisava manter a cabeça no lugar, pensar com clareza, e eles conseguiram sair dessa enrascada.
Uma criatura saltou bem à sua frente e Ella conseguiu puxar Klaus para que se esquivasse do ataque, e continuaram correndo para salvar suas vidas.
- Tem muitos deles! – Ella gritou.
- Eles querem caçar!
Que droga! Ella não podia acreditar que Klaus a mandou para o meio da floresta sabendo que aquelas coisas estariam caçando.
- Continua correndo.
A certa distância, Ella pode ver o castelo de Lady Dimitrescu se erguendo acima das árvores.
- Tive uma ideia.
Klaus seguiu seu olhar.
- Nem pensar...
Não tiveram tempo de discutir o que fazer a seguir, outro lobo saltou sobre eles, dessa vez vindo de trás, e acertou a pata no ombro de Klaus; o impacto arremessou seu amigo metros adiante e os separou, mas a criatura o ignorou e correu atrás dela.
Outro lobo apareceu e rosnou em direção a Klaus. Agora havia dois daqueles monstros entre eles.
- Corre! – Klaus gritou – Te encontro depois!
- Não!
- Corre!
Ella respirou fundo e deu as costas ao amigo, se pôs a correr para salvar sua vida e não olhou para trás. Se olhasse veria a criatura, e quase certamente seria morta por ela.
Correu até que seus músculos protestaram violentamente, cada fibra do seu ser parecia protestar e reinvidicar uma parada, mas ela não podia parar.
Uma ideia insana lhe ocorreu, mas havia apenas um segundo para decidir entre a vida e a morte, uma única decisão poderia salvá-la ou condená-la a uma morte ainda mais lenta e dolorosa do que ser devorada por lobos. Sem pensar nas consequências de sua escolha, Ella empurrou os portes de ferro que protegiam o castelo, apenas o suficiente para se esgueirar para dentro e correu até a construção; uma daquelas coisas saltou sobre o muro como se não fosse nada e continuou a persegui-la, e então outro e mais um. Três criaturas que pareciam saídas dos pesadelos de uma mente doentia agora a perseguiam pelos terrenos do castelo, Ella virou à direita e alcançou os jardins bem cuidados de onde podia ver o pátio e uma porta dupla de vidro que levava ao interior, aquela seria sua única chance.
Um farfalhar alto como o bater de asas de milhares de insetos soou ao seu redor e os lobos pararam onde estavam, Ella aproveitou para de correr por um segundo para respirar fundo e colocar os pensamentos em ordem; notou, com algum terror, que os lobos pareciam assustados e bateram em retirada.
- Não sei se é um bom ou mau sinal...
A resposta veio imediatamente quando algo acertou sua cabeça e a escuridão a envolveu.
Foi como acordar naquela manhã tantas semanas atrás, com a cabeça doendo como se tivesse levado um coice de cavalo. Seu corpo estava frio e ela estava deitada no chão duro, o cheiro de ferro alcançou suas narinas e Ella fez uma careta de desgosto aonde levantar.
- Mas que lugar...
Era como as masmorras descritas nos livros que ela já havia lido, paredes de pedra, instrumentos de tortura, celas... Ella estava trancada em uma delas. Ótimo, fugiu de lobos para morrer ali.
Percebeu, com horror, que suas coisas não estavam com ela. Seu arco, a aljava de flechas, a bolsa com o último pertence que restara do seu irmão... Merda! Merda!
Uma risada insana reverberou pelas paredes e Ella se encolheu junto à porta da sua cela.
- Vai morrer aqui! Vai morrer aqui! – a voz cantarolou – Vai morrer...
O som vinha da cela a esquerda, onde havia um buraco na parede que fazia divisão com a sua cela. Ella se abaixou e olhou atrás do buraco e notou três coisas importantes: primeiro, o homem louco que cantarolava sobre sua morte tinha uma das mãos acorrentada à parede; segundo, a porta da sua cela estava aberta; terceiro, e muito importante, ela poderia se arrastar pelo buraco e fugir. O único problema é que mesmo acorrentado o homem poderia alcançá-la com facilidade, mas precisava arriscar.
Ella se jogou no chão sujo e se arrastou pelo buraco apertado, as pontas dos tijolos sujaram e cortaram sua roupa, um arranhão cortou a pele macia da sua barriga e queimou, mas foi apenas mais um ferimento dentre tantos.
- Fuga! Fuga! – o homem insano gritou entre risadas – Ela está fugindo! Está fugindo.
Ele tentou lhe agarrar os cabelos e até conseguiu puxar um chumaço. Ella alcançou um pedaço de tijolo quebrado em acertou sua cabeça com tudo o que podia, ele a soltou e os gritos foram substituídos por choros e lamentações, pedidos de misericórdia e ganidos como os de um cachorro ferido.
- Cala a boca! – Ella resmungou e acertou a pedra novamente – Cala a boca!
O homem caiu inerte, o corpo sustentado apenas pela algema que restou. Ella notou que havia vários cortes espalhados por seu corpo, e não tinha certeza se queria saber sua origem. Precisava sair dali o quanto antes.
Fora da cela ouviu o farfalhar novamente, como se um enxame de insetos a espreitasse, mas ao olhar para trás só viu a escuridão. Ella decidiu sair rápido dali, correu em direção às escadas e subiu os degraus sem fazer barulho; abriu a porta com cuidado para que não rangesse, mas ainda houve um pequeno silvo que arrepiou sua pele.
O corredor longo estava vazio e Ella seguiu em frente, passou por uma porta fechada onde o cheiro ferroso de sangue era mais proeminente e decidiu que não queria saber o que tinha lá. Quanto menos soubesse, melhor seria. Avançou tentando fazer o menor barulho possível, pisando com um pé na frente do outro, e rezando para não encontrar ninguém.
A porta final levou a uma escada longa, e então a um novo corredor. Mesmo ali Ella pode notar que nunca esteve em um local como aquele antes; tudo era opulento e bem decorado com fios de ouro, era um palácio como os descritos nos livros de história.
Ella caminhou no tapete para evitar que seus passos fizessem mais barulho, em cada sombra algo ou alguém parecia espreitá-la, sem nunca se revelar ou interferir. Como um grande show doentio, ela era a estrela da vez.
- Calma, calma...
Uma jovem saiu de uma das portas e congelou ao vê-la, pelas roupas simples e lenço na cabeça Ella advinhou que devia ser uma das criadas de Lady Dimitrescu.
- Por favor, não fuja – Ella levantou as mãos para mostrar que estava desarmada – Sabe onde estão minhas coisas?
A jovem negou com um aceno.
- Tem ideia de onde podem estar? – Ella murmurou apressadamente – Por favor, é muito importante pra mim! Tem uma coisa...
- Eu não sei! – a jovem retrucou – Desse jeito vai me causar problemas.
Ella mordeu o lábio, não queria sair de jeito nenhum sem suas coisas, principalmente o ursinho de Judith, mas não parecia outra alternativa no momento.
- Eu vi um pátio lá fora, com uma porta... Onde é?
A jovem criada olhou a sua volta e indicou o local onde o corredor virava à esquerda.
- Siga o corredor, vai encontrar o salão de jantar e depois disso uma sala com sofás. De lá será possível ver o escritório com uma porta para o pátio, Lady Dimitrescu guarda a chave na gaveta de cima da mesa.
- Obrigada.
Ella seguiu as instruções e chegou até a sala, o ambiente a deixou embasbacada por alguns segundos. A decoração com ouro, móveis de aparência cara, flores... Tudo era belo, chamativo, demonstrava bom gosto.
- Você precisa sair – Ella murmurou para si mesma – Vamos logo...
Ignorou as escadas e as outras portas apesar do desejo de explorar, nunca havia visto tamanha magnitude e opulência. A porta dupla que levava ao escritório estava aberta, e dali já podia ver as portas de vidro que levavam ao pátio; tudo ao seu redor estava silencioso, e Ella se moveu o mais quieta que conseguiu até a mesa.
Ella encontrou uma grande chave prateada exatamente onde a criada disse que estaria, muito bem posicionada acima de um livro de capa dura.
Antes de usar a chave, Ella aproveitou para vasculhar o lugar em busca das suas coisas, mas não havia nem sinal da bolsa ou do arco.
Pegou a chave e a encaixou no buraco da fechadura, mas não a girou imediatamente. Quando aquela porta se abrisse, Ella teria que ser muito rápida e correr como nunca tinha corrido antes, virar à sua direita e tentar passar pelos grandes portões e, é claro, se esgueirar através do que a estava esperando lá fora.
Ella respirou fundo e girou a chave, sua mão permaneceu na maçaneta por alguns segundos até criar coragem de girá-la. Quando o fez, a porta abriu com um estalo e Ella se afastou um passo.
Quase no mesmo instante, uma figura assustadoramente alta atravessou a porta; Ella se jogou para frente e quando a mão desceu para agarrá-la, se esquivou para a esquerda no último segundo e se livrou de ser capturada. A manobra lhe rendeu alguns segundos de vantagem, tempo esse que Ella usou para impulsionar uma corrida.
Seu perseguidor a agarrou novamente, mãos fortes a viraram e Ella se viu parada diante de uma mulher incrivelmente alta que a observava como se tivesse capturado o maior prêmio da noite.
- Bem, bem... O que temos aqui...
Então aquela era Lady Dimitrescu.
A mulher devia ter dois metros e meio de altura, ou talvez até mais. Seu rosto estava contorcido em um sorriso satisfeito e os lábios cobertos pelo batom vermelho se destacavam contra a pele pálida; cabelos pretos e curtos estavam escondidos sob um chapéu preto elegante. Era bela, linda, cheia de um magnetismo que Ella não estava pronta para encarar e, apesar da força com que segurava seu braço, o toque parecia reconfortante.
- Como descobriu a armadilha?
Ella não respondeu e aperto em seu braço aumentou.
- É melhor responder, minha pequena, não sou conhecida pela paciência.
- Sua criada estava muito ansiosa para me indicar como sair, e como fui pega aqui imaginei que teria alguém me esperando.
- Inteligente... – Lady Dimitrescu se abaixou até que seu rosto estivesse no mesmo nível ao de Ella. Seus olhos eram amarelos e pareciam hipnotizá-la – Uma sobrevivente. Uma lutadora.
Lady Dimitrescu se aproximou ainda mais e roçou o nariz pelo rosto de Ella, o toque fugaz enviou arrepios por todo seu corpo e a fez estremecer. A reação arrancou um sorriso satisfeito da mulher mais alta.
- Você é perfeita para ser meu novo bichinho.
- Seu novo o qu...
- Durma.
Ella desfaleceu e dessa vez foi amparada por braços fortes antes de cair no chão.
[...]
Dessa vez o despertar foi agradável e Ella se sentiu deitada em uma nuvem, estava aquecida e segura. Talvez estivesse morta e aquele fosse o céu para pessoas assassinadas por uma vampira atraente.
O pensamento foi suficiente para despertá-la.
Não era o céu, mas definitivamente poderia ser. Ella se viu encarando o dossel de uma cama enorme, jamais em sua vida havia se deitado em algo tão confortável; os travesseiros se pareciam com nuvens, ou como o que Ella imaginou que as nuvens se pareceriam, e os cobertores... Macios ao toque, quentes e pesados o suficiente para fazerem-na se sentir segura.
Com relutância, Ella se levantou e deixou os pés nus tocarem o chão frio, aproveitando a oportunidade para observar ao redor; caberia facilmente toda a sua antiga casa ali dentro, talvez até com alguma folga.
A cama enorme era ladeada por duas mesinhas, cada qual com um abajur em cima; em um dos cantos havia uma grande cômoda com um vaso de flores, Ella se aproximou e sorriu quando o cheiro doce a envolveu; em uma penteadeira havia frascos com conteúdo que desconhecia e mais flores. Ao lado havia um espelho grande, desses de corpo inteiro, no qual Ella forçou-se a observar o próprio reflexo.
Alguém havia trocado suas roupas sujas por uma camisola de alças finas, além de macio o tecido era fino, o que possibilitava a visão do contorno dos seus seios. Por puro reflexo passou as mãos pelo cabelo loiro para assentá-lo de melhor forma, e era a única coisa que podia fazer para melhorar a aparência; apesar do ferimento no lábio ter curado sem lhe deixar uma cicatriz, ainda havia uma mancha roxa abaixo do seu olho machucado.
Voltando a explorar o quarto, havia uma lareira onde a madeira ainda ardia para aquecer o local; duas janelas grandes, das quais Ella se aproximou para verificar se não lhe proporcionariam uma chance de fuga, mas a altura a fez mudar de ideia no mesmo instante. Não sobraria muita coisa dela se caísse lá de cima.
O que lhe chamou a atenção foi que todo o ambiente era decorado com cores claras, simples, mas de extremo bom gosto. E ela gostou, deduziu após alguns minutos. Era perfeito.
Havia mais duas portas que não teve tempo de investigar, passos contra o assoalho soaram no corredor e Ella voltou rapidamente para a cama, puxou os cobertores até o pescoço e fingiu estar dormindo. A porta foi aberta e alguém adentrou o quarto, algo foi colocado sobre a mesa de cabeceira e Ella sentiu a cama afundar ao seu lado.
- Sua respiração mudou, sei que está acordada – a voz aveludada de Lady Dimitrescu soou calma e carinhosa – Vamos, já lhe disse que não sou a pessoa mais paciente do mundo.
Sem alternativa, Ella se virou na direção da mulher mais alta e sentou-se na cama. Um olhar que percorreu do seu rosto até seu peito a fez se lembrar que sua vestimenta era muito reveladora, e Ella puxou o cobertor até o pescoço.
- Aí está você, pequena. Teve uma noite agradável?
Ella assentiu em silêncio.
- Prefiro que seja vocal.
Era uma ordem, cada palavra estava carregada do tom de alguém que não está acostumado a ser desobedecido.
- Sim, eu tive. Obrigada, Lady Dimitrescu.
- Assim é muito melhor. Agora, vamos ao que interessa – Lady Dimitrescu sorriu brevemente e levantou a sobrancelha em sua direção; essa manhã ela não usava o chapéu preto e seus cabelos pareciam ainda mais bonitos assim – Você invadiu meu castelo e poderia ter sido morta por isso.
- Peço desculpas, não tive a intenção de desrespeitá-la, mas estava sendo perseguida por lobos.
- Ah, sim – Lady Dimitrescu estalou a língua – Embora isso tenha sido uma consequência do seu namoradinho ter tentado escondê-la de mim na noite passada.
- Ele não é meu namorado – Ella respondeu quase duramente demais – É só um bom amigo.
Lady Dimitrescu a olhou como se lhe examinasse a alma e Ella abaixou a cabeça.
- Mas estava procurando por ele quando nos encontramos pela primeira vez – a mulher esticou o braço e tocou seu rosto de forma gentil, carinhosa até, e ergueu seu rosto – Seu pai fez isso?
A pergunta foi acompanhada de um toque fugaz de um dedo enluvado na área arroxeada ao redor do olho.
- Sim, foi ele...
Como uma torrente de sentimentos que não podia mais surpmir, Ella contou-lhe tudo sem omitir qualquer parte, narrou até aquilo que se recusou a contar a Klaus, e durante todo o tempo Lady Dimitrescu a escutou sem esboçar críticas ou desdém.
- Tão corajosa – disse ao limpar uma lágrima que escorreu por seu rosto – Como me arrependi de não tê-la trago comigo aquela noite mesmo.
Ella ergueu a cabeça tão rápido que pode jurar que foi capaz de ouvir seu pescoço estalar.
- Por quê?
- Para ser meu novo bichinho, é claro. Há tempos não tenho um e você é perfeita!
Ella piscou algumas vezes sem saber como reagir a afirmação.
- Me desculpe, seu bichinho?
- É claro, minha querida – o sorriso de Lady Dimitrescu aumentou – Adoro coisas bonitas, e você além de linda é corajosa e inteligente, uma lutadora nata. É perfeita.
Ella não entendeu o que significaria ser o bichinho de estimação de Lady Dimitrescu, e não tinha certeza se queria descobrir tudo de uma só vez.
- Como desejar – foi o que respondeu.
Lady Dimitrescu a olhou de uma forma que foi quase... Terna. E Ella precisou se lembrar de que havia sido sequestrada e trancafiada em uma masmorra, aquela mulher não estava sendo gentil sem querer algo em troca.
- Queria saber do que é capaz.
- Me desculpe – Ella gaguejou – Não entendo do que está falando.
- Ordenei às minhas filhas que a levassem para o calabouço, especificamente para aquela cela, e que providenciassem uma rota de fuga. Eu queria saber quanto tempo levaria até sair de lá para cair em minha armadilha.
Ella engoliu em seco.
- Não se preocupe, você não me decepcionou – Lady Dimitrescu levou a mão ao seu cabelo e brincou uma mecha bem perto da nuca, o que fez Ella se arrepiar – Você está aqui agora, não está?
Sim, ela estava sentada em uma cama extremamente cara e usando uma camisola muito transparente enquanto seu corpo tinha reações novas que Ella não podia controlar.
- Estou – Ellar respondeu com certa dificuldade quando nas unhas de Lady Dimitrescu arranharam sua nuca mais uma vez – Mesmo após descobrir sua armadilha.
Lady Dimitrescu riu e puxou levemente a mecha de cabelo com a qual brincava.
- Você é muito esperta, meu doce, e vai ser muito divertido tê-la aqui. Mandarei que tragam um vestido e sapatos novos para você, deverá se vestir de acordo todos os dias e não quero mais ver suas roupas horríveis – disse em um tom que não admitia contestações, Lady Dimitrescu estava no controle e sabia disso. Ela se levantou da cama e apontou para a mesa de cabeceira onde, Ella percebeu, havia uma bandeja prateada – Coma tudo. Volto em breve, bichinho.
Lady Dimitrescu inclinou-se em sua direção, segurou-lhe o rosto com um toque gentil e a puxou. Por um breve momento Ella acreditou que a beijaria e seu coração disparou incontrolavelmente no peito, mas Lady Dimitrescu riu e pressionou os lábios macios contra sua bochecha.
- Em breve estarei de volta.
Afastou-se e saiu do quarto. Ella assistiu Lady Dimitrescu se abaixar para passar pela porta e só voltou a se mover ao ficar sozinha novamente. Era certo que não havia como fugir dali e que toda a gentileza com a qual estava sendo tratada acabaria no momento em que empreendesse uma tentativa de fuga, então não havia muito o que ela podia fazer além de permanecer obediente até encontrar a oportunidade perfeita.
Com isso decidido, Ella voltou sua atenção para a bandeja deixada em sua mesa de cabeceira. Havia uma tigela com pedaços de frutas, as quais Ella reconheceu como morango, maçãs, mirtilos e pêras, além de duas fatias de pão cobertas pela mesma geleia que recebeu como presente e um copo com suco de laranja. A visão da comida fez seu estômago roncar de forma audível e Ella se perguntou há quantas horas teria ocorrido sua última refeição.
Começou pelas fatias de pao e o suco, logo depois as frutas doces e saborosas. Tudo estava divino, e ocorreu a Ella que não seria ruim passar um tempo por ali.
Uma batida na porta chamou sua atenção assim que acabou de comer o último morango, e uma criada entrou carregando um vestido e sapatos. A mulher aparentava ter alguns anos a mais do que a própria Ella, uma mecha de cabelos vermelhos podia ser vista sob o lenço que usava na cabeça e ela sorriu de forma agradável.
- Lady Dimitrescu ordenou que trouxesse seu vestido, também vou tirar suas medidas para providenciar mais alguns.
Ella não se levantou da cama imediatamente, permaneceu observando a criada que suspirou.
- É melhor pra você se for mais rápida, a Senhora nem sempre é paciente.
- Eu sei – Ella rspondeu devagar ao escorregar das cobertas macias e se aproximou da criada – Ela me disse.
A criada depositou o vestido sobre a cômoda e a puxou para a frente do espelho, fazendo Ella se sentir terrivelmente exposta. De forma diligente e gentil, provavelmente com medo do que Lady Dimitrescu faria se soubesse que alguém havia sido rude com seu novo bichinho, a criada tirou uma fita métrica de um bolso interno do próprio vestido e começou a tirar as medidas de Ella.
- Você é mais magra do que eu esperava, terei que fazer alguns ajustes no seu vestido.
Ella ignorou o comentário. Em seu reflexo podia ver as clavículas proeminentes, e se tirasse a camisola seria possível contar suas costelas.
- Sou Ella Lancaster.
A criada não respondeu, então Ella insistiu.
- Me sentiria melhor se me dissesse seu nome.
- Ágatha, meu sobrenome não importa.
- Muito prazer em te conhecer, Ágatha.
Ágatha acenou com a cabeça e se afastou de Ella, e ao voltar lhe estendeu um conjunto de roupas íntimas brancas.
- Vista-se, por favor, e então a ajudarei com o vestido.
Ella esperou que Ágatha se virasse para ter um pouco mais de privacidade e se trocou rapidamente, embora ainda continuasse praticamente despida, não tinha o impeto de tampar os seios a cada minuto.
- Lady Dimitrescu escolheu azul para o seu vestido, para combinar com seus olhos – Ágatha se aproximou com a peça em mãos – Os acessórios serão escolhidos por ela, e use os sapatos que eu trouxe ou ela ficará brava.
Ágatha escorregou o tecido por uma cabeça e a ajudou a encaixar os braços nos lugares certos. Não era tão ruim, pensou Ella ao observar sua imagem no espelho, o vestido tinha mangas compridas que terminavam em renda branca, uma saia longa e fluida, e era do exato tom de seus olhos; suas clavículas estavam expostas, o que era muito mais pele do que deixava à vista quando usava camisas, mas não foi exatamente ruim. O peito do vestido era de um azul mais profundo, mas fora isso não havia outros ornamentos. Bonito e de bom gosto.
- Não ficou tão grande, você é alta e o caimento ficou bom – disse Ágatha ao ajustar o vestido em sua cintura – Pronto. Você receberá novos vestidos nos próximos dias.
Ella olhou para baixo.
- Nunca gostei muito de vestidos.
A declaração lhe rendeu um olhar de simpatia.
- Quais são suas cores preferidas?
- Azul, vermelho, preto, verde escuro...
- Farei de tudo para conseguir vestidos nessas cores, assim será menos penoso usá-los – disse com sinceridade enquanto terminava de apertar o vestido de Ella – Você me lembra minha irmã mais nova, sempre correndo por aí de calças como um moleque.
Ella riu baixinho.
- Onde ela está?
- Em casa – Ágatha respondeu ao dar um passo para trás – Deve ser uma bela jovem, assim como você.
- Está aqui há muito tempo?
- Dois anos – Ágatha indicou que se sentasse junto à penteadeira e passou a pentear seus cabelos – Como prefere?
- Trançado.
Ágatha trabalhou em silêncio por alguns minutos.
- Escute, parece assustador e pode ser em alguns momentos, mas Lady Dimitrescu a tratará com gentileza desde que obedeça suas ordens.
O problema era que nem sempre Ella era a melhor em obedecer ordens.
- Farei o meu melhor.
- Assim espero, Ella.
Ágatha terminou a trança elegante e tirou um par de sapatos de uma caixa que até o momento fora ignorada por Ella.
- Calce e veja se ficam bons.
Ella experimentou os sapatos de salto, achou-os confortáveis e tentou andar com eles.
- Posso partir o pescoço se cair desses sapatos.
- Vai se acostumar, ande devagar e não rápido como faria se usasse botas.
Antes que Ágatha pudesse juntar as coisas restantes e sair do quarto, Ella segurou seu braço e a olhou de forma suplicante.
- Minhas coisas desapareceram, sabe onde estão?
- Não, sinto muito.
Ágatha recolheu a caixa na qual trouxera os sapatos e bandeja que jazia sobre a mesa de cabeceira.
- Ella – chamou antes de sair – Lembre-se, é só obedecer e tudo ficará bem.
- Obrigada – Ella agradeceu com sinceridade.
- Avisarei se souber das suas coisas, mas não recomendo que as peça a Lady Dimitrescu.
Ágatha se foi e Ella foi deixada sozinha no quarto. Ainda lhe parecia surreal estar em um local opulento como aquele, e ela não sabia bem o que fazer ou como se portar; felizmente não teve tempo de decidir pelo errado, já que havia grande tendência a fazer isso. Uma batida suave na porta informou sobre a entrada de Lady Dimitrescu e Ella não pode fazer nada além de se voltar para ela.
- Oh, aí está você... – Lady Dimitrescu a observou criticamente e sorriu ao se dar por satisfeita – Está linda.
- Obrigada, Lady Dimitrescu – respondeu Ella fazendo uma pequena mesura.
- Eu sabia que você seria uma boa garota – disse ao sentar-se na cama e acenar para que Ella se aproximasse, o que a jovem fez imediatamente. Lady Dimitrescu abriu uma caixa de madeira e tirou de lá uma gargantilha de veludo preta, Ella observou que no meio havia um camafeu prateado. Simples e de bom gosto – Isso é para você. Gosto de marcar minha propriedade e, além disso, vai deixar os criados saberem que devem lhe servir e também vai manter minhas filhas longe de você. Às vezes compartilho um novo brinquedo com elas, mas sempre volta quebrado.
Os olhos de Ella se arregalaram.
- É... Prefiro ser só sua.
A declaração arrancou uma risadinha de Lady Dimitrescu.
- Não tenho a mínima intenção de dividir você. Agora vire-se.
Ella se virou de cotas para a mulher mais alta e Lady Dimitrescu afastou sua trança para fechar a gargantilha em seu pescoço. Mais certo seria dizer que era uma coleira, algo para demonstrar a propriedade sobre seu novo bichinho de estimação.
- Perfeita.
O nariz de Lady Dimitrescu roçou em sua nuca e Ella sentiu todos os seus pêlos se arrepiarem, estremeceu de forma involuntária e mesmo sem ver soube que aquilo arrancou um sorriso da mulher.
- Você cheira tão bem – Lady Dimitrescu comentou ao passar o nariz por toda a extensão do seu pescoço – É doce, mas não frágil. Tem um tom amadeirado, como a floresta.
Ella fechou os olhos e suspirou. Lady Dimitrescu pousou as mãos em sua cintura, onde investido precisou ser apertado.
- Ágatha expressou preocupação com seu peso. Não se preocupe, meu doce, vou cuidar muito bem de você...
Unhas arranharam o couro cabeludo de Ella e, pela primeira vez na vida, sentiu o ponto entre suas pernas se contrair quase dolorosamente e ela não sabia como fazer aplacar aquela sensação.
Foi como se Lady Dimitrescu adivinhasse o que estava acontecendo, Ella foi virada para ficar de frente para ela e seu rosto foi tomado pelas mãos quentes e carinhosas da senhora.
- Vou cuidar muito bem do meu bichinho, você vai aproveitar cada momento que passar nesse castelo.
Ella engoliu em seco.
- Desde que eu seja uma boa garota.
- Desde que você seja uma boa garota – Lady Dimitrescu concordou – Mas você vai ser, não vai?
- Vou.
Como se Ella pudesse responder qualquer outra coisa, na posição em que se encontrava tudo o que podia pensar era em inclinar-se e fechar os lábios sobre os da sua nova senhora. Sua mente vagueou até seu primeiro e único beijo, e imaginou se seria muito diferente daquele com Klaus, mas apenas o toque de Lady Dimitrescu provava que não seria nada como beijar seu amigo.
- Boas meninas são recompensadas nesse castelo – disse Lady Dimitrescu – Não me faça te castigar.
O único problema, era que nem sempre Ella era capaz de agir como uma boa garota.
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Belas Criaturas (fanfic Lady Dimitrescu)
RomanceElla Lancaster é uma jovem caçadora vivendo uma vida difícil, sua família não é das melhores e a fome assola seu vilarejo. Ao descobrir que o pai pretende se livrar dos filhos, Ella não tem escolha a não ser fugir para a única pessoa em quem confia...