Confissões inesperadas

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Eu amei os comentários de vocês e fiquei tão animada que resultou em um capítulo de 12 mil palavras, olha o tamanho disso! Sempre digo, vocês só tem a ganhar se tirarem uns minutinhos pra deixar um comentário pro seu escritor(a), seja eu ou outra pessoa!

Espero que gostem do capítulo, tá cheio de fortes emoções (guenta coração).

Comentários e sugestões são bem vindos.

P.s.: um beijo e um prêmio pra quem pegar o maior easter egg desse capítulo!

********************

Os dias se passaram vagarosamente no castelo Dimitrescu, como se não houvesse pressa ou urgência para nada e a vida simplesmente seguisse seu curso natural; pela primeira vez em muitos anos, Ella teve a oportunidade de simplesmente viver sem precisar se preocupar em sobreviver mais um dia, tampouco lhe cabia a subsistência de outra pessoa. Já não precisava pisar em ovos com Alcina ao temer uma represália, e por vezes encontrava-se com a cabeça apoiada no peito da mulher mais velha, a mão brincando com seus cabelos, enquanto ouvia história após história e sorria ao imaginar cada uma delas; sua amante parecia ter muitas coisas a contar sobre sua longa existência, embora evitasse adentrar em detalhes sobre sua vida humana e Ella respeitava isso.
Apesar de amar esses momentos, Ella sempre precisava se esforçar ao buscar uma memória a ser compartilhada, vez que assim como Alcina tinha lá suas reservas o mesmo sentimento lhe acometia. Evitava falar sobre suas caçadas com Klaus ou as adversidades pelas quais passara, o segundo tópico sempre a fazia se sentir uma intrusa no castelo, como uma prova de que realmente não pertencia àquele lugar, e falar sobre o pai sempre deixava Alcina com raiva, então vez após outra buscava alguma memória feliz ao lado da mãe. Certa vez caíra no erro de contar sobre quando, em certo inverno, seu pai a impediu de entrar em casa após demorar-se brincando com alguns amigos; Ella tinha doze anos e um garoto do vilarejo havia ganhado um trenó do irmão mais velho, revezaram-se ao descer a colina norte em duplas durante toda a tarde e ao chegar em casa completamente molhada, com as bochechas coradas pelo frio e feliz, descobriu-se trancada do lado de fora como castigo e não fosse pela piedade de uma vizinha, Ella teria congelado durante a noite. Dizer que Alcina ficou brava era mero eufemismo, sua expressão parecia a de alguém prestes a cometer assassinato, desde então evitava falar sobre seu pai ou a madrasta, não para protegê-los, mas não desejava estragar seus momentos com a mulher mais velha.
Até o momento, seu tópico preferido era ouvir histórias sobre as garotas como a vez em que Daniela conseguiu colar o dedo indicador ao polegar e Alcina gastou horas para soltar, principalmente porque a garota agiu como um gato selvagem ao não deixar sua mãe resolver o problema.
Ouvir essas histórias e passar o tempo nos braços de Alcina a fizeram perceber algo muito importante sobre si mesma. Ella ficou no castelo porque quis e não porque foi obrigada ou para pagar alguma dívida à matriarca. O que a princípio parecia ser seu cativeiro, hoje considerava o mais próximo que conheceu sobre o que era ter um lar; se sentia realmente acolhida e protegida pela estranha, mas unida família Dimitrescu. Qualquer um de fora certamente veria as vampiras como criaturas monstruosas e aquele um ambiente disfuncional para se viver, porém Ella conseguia ver além das aparências; por dentro nada mais eram do que mulheres possuidoras de sentimentos, desejos, medos, qualidades e defeitos, como qualquer ser humano dito “normal”; sim, Ella via seus corações e ansiava por conhecê-las cada vez mais e deixar-se ser igualmente conhecida.
Alcina não era nada mais do que carinhosa e atenciosa quando se tratava de Ella e as filhas, o que a surpreendeu um pouco e a fez se recriminar por isso; quanto as garotas, bem, acabou se tornando sua distração durante o inverno e isso não pareceu deixar sua amante completamente feliz, mas talvez fossem os vasos quebrados no processo ou as grandes chances de ralar ou quebrar algum membro e não por agir menos como uma adulta e mais como uma criança. Ainda assim, Ella não podia culpá-la por se preocupar com sua integridade física ou a do castelo, não quando acabou com um queixo ralado e um hematoma no ombro esquerdo após tentarem esquiar no colchão mais uma vez; a brincadeira mortal foi banida indefinidamente, pelo menos para Ella, as meninas aprenderam a burlar as regras por si mesmas. Dessa parte em particular Ella estava bem orgulhosa.
Ouvir uma bronca não foi nada comparado a ter Alcina cuidando dos seus ferimentos, seu queixo ardeu terrivelmente ao ser limpo, mas Ella não se importou muito com isso, principalmente ao notar que as garotas pareciam apreensivas e observavam a alguma distância; elas estavam acostumadas às broncas da mãe, mas não se machucavam com facilidade e Ella ainda era uma humana frágil se comparada às Dimitrescu, o que a tornou um evento a ser assistido. Talvez Daniela tenha sido a que ficou mais surpresa e ficou um bom tempo segurando a mão de Ella enquanto sua mãe limpava o ferimento, o que foi muito tocante porque ninguém jamais havia feito isso.
Ainda sentia falta dos irmãos todos os dias, principalmente de Judith, e suspeitava que isso nunca fosse mudar; em algum momento desde que chegara ao castelo, Ella aprendeu a conviver com ausência de sua família e a remanejar a atenção para atividades menos deprimentes, como descer uma escada em um colchão em alta velocidade e sem nenhum controle ou brincar de se esconder com três vampiras que poderiam ser consideradas como sanguinárias. Sua nova vida não deixava muito espaço para momentos melancólicos, eles insistiam em persegui-la durante o sono, mas sempre que acordava Alcina tinha os braços ao seu redor e tudo ficaria bem de novo, pelo menos até o próximo pesadelo.
Costumava se perguntar como seria sua vida se nunca tivesse saído de casa, se seu pai fosse um homem bom que se importasse realmente com ela, mas rapidamente decidiu que cada coisa em sua vida a levou até Alcina e as garotas, o que começou como uma espécie de cárcere privado se tornou sua nova e consistente família; claro, Ella preferia não ter perdido os irmãos de forma brutal e sanguinolenta, mas estava tentando ficar em paz consigo mesma e entender que não foi sua culpa e sim de quem devia protegê-los. Mais do que isso, Ella estava conseguindo se sentir realmente feliz.
Aquele dia foi como todos os outros em sua vida, mesmo levando em consideração que tinha uma nova, e assim como em todas as manhãs despertou com os braços de Alcina ao seu redor e foi uma boa mudança em relação àquela mesma data em anos anteriores.
- Bom dia, draga mea.
O hálito quente de Alcina fez cócegas em seu pescoço e Ella sorriu.
- Bom dia, Alci – Ella gemeu e tentou puxar o cobertor sobre sua cabeça – É muito cedo.
- Não é cedo, sua dorminhoca.
Ella afastou o cobertor e tentou sorrir, foi mais fácil quando Alcina começou a acariciar seus cabelos.
- Planos para hoje?
- Mãe Miranda convocou uma reunião com os quatro lordes e temo que só estarei de volta após o almoço, então aproveite sua manhã com as garotas, leia um livro ou desenhe – Alcina franziu a testa quando Ella se afastou – Não fique brava, prometo voltar em breve, e terei que lidar com meu irmão, então não será exatamente agradável.
- Está tudo bem – Ella tentou sorrir – Só é estranho te ver sair assim, acho que me acostumei a sua presença.
- Não vai ter tempo de sentir minha falta. Não quando insiste em destruir meu castelo e tentar se matar ao passar o tempo com minhas filhas – Alcina sorriu carinhosamente – Alguma ideia do que fazer hoje?
- Eu não sei – respondeu com sinceridade – Pensarei em algo. Talvez eu só fique na cama e leia durante o dia todo.
- Mande que alguma criada lhe traga as refeições.
- Pedirei que alguma delas faça isso – Ella reforçou o termo “pedir”, provavelmente nunca se acostumaria a mandar em alguém da forma como Alcina achava tão natural – Tenho certeza que encontrei um jeito de passar o tempo sem você, não se preocupe.
Alcina depositou um beijo em sua testa e sorriu, parecia cada vez mais indulgente sempre que Ella retrucava algo.
- Tenho certeza que sim.
Foi deixada sozinha na cama e apesar de poder voltar a dormir, não o fez e resignou-se a assistir Alcina se movendo pelos aposentos ao se preparar para o dia; era fascinante observá-la em seu elemento natural, ela era tão graciosa em cada movimento que Ella não pode deixar de se perguntar se resultava de anos treinando ou se era algo natural dela, o que não a surpreenderia nada se fosse verdade.
Ainda que parecesse um dia como todos os outros, não o era totalmente e Ella estava disposta a ter algum tempo agradável.
- Ei, Alci – Ella chamou ao vê-la saindo do quarto de vestir totalmente pronta – Eu posso dar ordens às criadas?
Alcina se virou para ela com uma expressão curiosa no rosto.
- Sim, inclusive eu prefiro que faça isso a insistir em pedir coisas a elas.
- Certo... – Ella sorriu – Muito bom saber.
- O que está aprontando? – Alcina estreitou os olhos ao se aproximar da cama – Espero encontrá-la em um único pedaço ao voltar.
- Vai me encontrar inteira, não se preocupe – Ella ficou de pé sobre a cama e ficou nas pontas dos pés para beijar Alcina, ainda assim precisou que a mulher se curvasse para encontrá-la. Foi um beijo rápido, mas carinhoso e Ella sorriu ao se afastar – E você já disse que eu posso dar ordens, não pode mudar isso agora.
- Espero não me arrepender disso.
Alcina a beijou mais uma vez, um pouco mais demorado, e se afastou mais uma vez. Ella a assistiu colocar o chapéu e as luvas antes de se abaixar e sair pela porta, deixando-a sozinha e com um único propósito em mente; ter a permissão de Alcina para dar ordens às criadas facilitaria seus planos para aquela manhã, se não podia passar o tempo com sua amante, então encontraria outra coisa para fazer.
Ao preparar-se para o dia resolveu que podia ser um pouco rebelde e ignorou completamente os vestidos dispostos no armário, vestiu uma das suas camisas e a única calça que ainda possuía, amarrou o cabelo no alto em um rabo de cavalo e deixou o pescoço longo à mostra; talvez Alcina não aprovasse, provavelmente iria torcer o nariz assim que passasse pelas enormes portas do salão principal e colocasse os olhos nela, mas a vida era melhor quando se corria alguns riscos. Para completar, ignorou completamente qualquer maquiagem e a nova pulseira de diamantes, optando por usar apenas a gargantilha que mostrava a todos a sua posição no castelo, mesmo que não se considerasse mais como o bichinho pessoal de Lady Dimitrescu.
O pensamento a fez paralisar em frente ao espelho. Não se considerava mais um bichinho sob as garras de Alcina, mas também não sabia em que categoria realmente se encaixava; elas não eram namoradas, nem amigas, ou algo mais... Sabia que estava irremediavelmente apaixonada, mas não havia qualquer sinal de que Alcina pudesse se sentir do mesmo jeito, então sua relação podia ser encarada como complicada. Talvez fossem apenas amantes, o que não era de todo ruim, embora esperasse que pudesse ser algo mais em breve. Talvez devesse apenas se considerar sortuda apenas por estar onde estava, sem contestar ou pensar demais; sua vida virou de cabeça para baixo em alguns meses e já passava da hora de aceitar que não teria respostas para todas as suas perguntas, Ella tinha Alcina de uma forma que não podia denominar, mas estava disposta a passar por isso desde que pudessem estar juntas.
Seu maior medo era também perder Alcina e as garotas. Mesmo com toda as adversidades, conseguiu construir um novo lar no castelo, mas isso se devia a elas e nada ao lugar em si.
- Não seja boba – falou para o próprio reflexo – Está pensando demais.
Deveria deixar as coisas como estavam e não questionar uma situação que funcionava muito bem a seu favor, exceto pelos sentimentos não retornados até o momento e sem saber se um dia seriam, mas como sempre acontecia Ella parecia procurar por problemas para perturbar a relativa paz em que vivia.
Deixando tais divagações desnecessárias de lado, afinal de contas não lhe trariam conforto algum para o dia de hoje, tampouco respostas para qualquer das suas dúvidas, Ella deixou os aposentos e caminhou calmamente até a cozinha para tomar seu café da manhã, e ao chegar ao topo das escadas saltou levemente ao sentir um par de mãos a segurando pela cintura. Daniela riu do susto que pregou-lhe e a soltou, mas não sem abraçá-la; uma das grandes surpresas de Ella foi descobrir como a ruiva podia ser carinhosa, era mais como um gato se esfregando e quase sempre em sua mãe, mas gostou de ser alvo dos seus gestos afetuosos.
- Peguei você! – Daniela sorriu – Onde você vai? Posso ir junto? Quer esquiar no colchão de novo?
- Vou tomar café da manhã, você até pode vir junto mas vou conversar com a Agatha – Ella tocou o ferimento no queixo – Acho melhor deixar o colchão pra outro dia.
- Chato... – Daniela suspirou.
- Você pode ir com as suas irmãs, sua mãe deve voltar após o horário do almoço, não contarei a ela e prometo acobertar se algo acontecer.
Foi o suficiente para deixar Daniela feliz mais uma vez e saiu praticamente saltitando em busca das irmãs, as poucas horas que Alcina passaria fora seriam mais do que o suficiente para que as três aprontassem alguma coisa e Ella não pretendia entregá-las. Com a ruiva a procura das irmãs mais velhas, Ella retomou seu caminho até a cozinha e encontrou Agatha dando instruções a outra criada, mas fora as duas a cozinha estava vazia e organizada como sempre.
- Você pode ir – disse Agatha a criada – E lembre-se de limpar a sala de ópera.
- Pode deixar.
A morena passou por Ella e fez uma pequena mesura antes de sair da cozinha, o que a deixou a sós com a amiga com quem tanto queria falar.
- Já ia levar seu café da manhã – Agatha sorriu em sua direção -  Lady Dimitrescu pediu antes de sair.
- Ela pediu ou mandou?
- Ela foi estranhamente agradável, então eu diria que foi um pedido e não uma ordem direta.
Nos últimos dias Alcina estava agindo de modo quase gentil com Agatha, os ciúmes obsessivos foram esquecidos, e Ella não sabia se isso se devia aos seus inúmeros pedidos ou se sua amante havia descoberto sobre o envolvimento de Cassandra com a ruiva.
- Que bom – Ella sorriu – Eu desci pra comer e quero que me faça companhia, quero saber tudo sobre você e Cassandra.
- Sinto muito, mas não posso, tenho trabalho a fazer – Agatha se moveu pela cozinha e começou a servir o chá para Ella – Só posso servi-la antes de sair.
- Alcina disse que posso dar ordens, então estou dando uma ordem para que fique e coma comigo – disse Ella para se sentar junto à pequena mesa – Por favor!
Agatha suspirou e balançou a cabeça.
- Você vai me causar problemas.
- Não vou, você estaria em apuros se não obedecesse a uma ordem direta minha, mas tenho certeza que vai fazer isso – Ella sorriu e baixou a voz: - Além disso, é meu aniversário e não quero comer sozinha.
A declaração causou o nível de surpresa que desejava, Agatha ofegou e se virou em sua direção com os olhos arregalados.
- Ok... – Agatha assentiu – É seu aniversário... Acho que merece algo diferente de chá esta manhã, só me dê alguns minutos.
Ella permaneceu sentada enquanto Agatha trabalhava e se movia de forma diligente pela cozinha, logo um cheiro doce e delicioso tomou conta do aposento e um prato com torradas foi colocado a sua frente junto com duas canecas fumegantes. O chocolate quente aqueceu Ella e estava delicioso assim como tudo o que sua amiga cozinhava, o que não a surpreendia nada; Agatha se sentou a sua frente e puxou uma caneca para si mesma, seu sorriso era gentil, mas parecia muito curiosa para aguentar mais tempo.
- Antes de falar de mim preciso saber de uma coisa, contou a Lady Dimitrescu sobre seu aniversário?
- Não.
- Como assim, não?
- Não – Ella deu de ombros e mordiscou uma torrada – Não é nada importante.
- É claro que é! – Agatha protestou – E acho que ela gostaria de saber disso.
- Não é importante – insistiu – Eu nunca cheguei a comemorar, é só mais um dia comum na minha vida assim como todos os outros; de qualquer forma só me lembrei ao acordar e Alcina tinha coisas mais importantes a fazer, então só você sabe e não quero que conte a ela.
- Ainda acho que Lady Dimitrescu gostaria de saber essa informação e decidir o que fazer com ela. Já lhe ocorreu que o dia do seu aniversário pode ser um motivo para que ela queira comemorar ao seu lado?
- Não.
Agatha esticou o braço por sobre a mesa, segurou sua mão e esfregou o polegar sobre a pele macia.
- Sei que não teve muitas oportunidades ou motivos para comemorar durante sua vida, mas as coisas mudaram para você; às vezes pode parecer difícil acreditar, mas Lady Dimitrescu e as filhas gostam de você e tenho certeza que gostariam de saber que é seu aniversário, devia lhes dar uma chance.
- Não é questão de dar ou não uma chance, mas é que não importa mesmo – Ella deu de ombros e tomou mais um gole do chocolate quente – É um dia como outro qualquer, não desejo comemorar e você está proibida de contar a Alcina sobre isso.
- É uma ordem? – Agatha provocou.
- É um pedido de amiga.
Agatha suspirou e levantou as mãos em sinal de rendimento.
- Você é muito teimosa quando quer ser. Ainda acho errado não contar a ela, mas eu prometo não dizer uma palavra a Lady Dimitrescu sobre o assunto mesmo achando que é uma má ideia.
- Não é uma má ideia se ela não descobrir, e como você não vai contar... – Ella deixou em aberto e sorriu – Agora quero saber sobre você e Cassandra, ela é praticamente minha enteada agora.
- Sua enteada, é? – Agatha devolveu a provocação, mas suas bochechas estavam coradas – O que quer saber?
- Tudo, é claro. Desde o começo.
- Bom, não é muito interessante...
Ella revirou os olhos em brincadeira, é claro que Agatha tentaria fugir das suas perguntas.
- É melhor contar tudo.
- Você a viu aqui na cozinha aquele dia em que limpei o rosto dela, juro que Cassandra pode fazer mais bagunça do que uma criança, e começou a partir daí; então ela piscava sempre que passava por mim nos corredores ou me provocava usando um dos seus insetos, qualquer outra criada teria fugido dela...
- Mas você não fez isso.
- É claro que não – Agatha bufou tentando se fazer de ofendida, mas sorriu mesmo assim – Estava me perguntando quando ela começaria a puxar meu cabelo e me dar apelidos, poderia ter acontecido isso se você não tivesse rolado escada abaixo e se machucado; Cassandra apareceu aqui parecendo prestes a perder a cabeça, sua mãe havia dado uma ordem direta e mesmo sabendo que Lady Dimitrescu ficaria com ciúmes ao me ver procurou por mim, ela sabia sobre nossa amizade e achou que seria melhor pra você.
Ella não pode deixar de sorrir ao perceber que Cassandra havia pensado em seu bem estar àquela noite, ainda que não fossem tão próximas àquela altura.
- E aí?
- Cassandra me carregou nos braços e notei que ela é muito forte... – Agatha sorriu de modo sugestivo antes de tomar um gole do próprio chocolate quente – Pode me julgar por isso.
- Não posso – Ella sorriu do mesmo jeito – Sei como é.
Agatha encolheu os ombros.
- Uma coisa levou a outra e Cassandra deixou de parecer tão irritante, sabe? De repente não era mais a garota mimada que me perseguia pelos corredores, me atrapalhando durante o trabalho, e ainda assim fiquei surpresa com a preocupação dela quando aquele homem invadiu o castelo – Agatha suspirou baixinho, mas Ella não a julgou por isso também. Em seu lugar teria ressalvas do mesmo modo que a todas as criadas deviam ter – Cassandra me seguiu aquela noite e pela primeira vez a vi sem toda a raiva e o sarcasmo, era só ela mesma e estava preocupada comigo.
- Isso foi lindo.
- É, mas voltamos aos velhos hábitos e Cassandra passou a me provocar mais uma vez, até a noite em que ela pediu que eu levasse mais lenha para o quarto dela... – Agatha meneou a cabeça – Aí uma coisa levou a outra.
- Nada disso, pode contar em detalhes! – Ella se escandalizou – Preciso saber de tudo.
Sorrindo, ainda que meio encabulada, Agatha suspirou.
- Tudo bem... Então fui até lá e Lady Dimitrescu chegou bem na hora – Agatha corou e apoiou o rosto com a mão – Eu só queria que um buraco se abrisse e eu pudesse me esconder nele pra sempre!
Ella jogou a cabeça pra trás e gargalhou, bem a cara de Alcina chegar exatamente na hora errada e interromper o momento da filha.
- Fica tranquila, tenho certeza que a Alcina não percebeu nada ou não ligou o suficiente.
- Melhor assim, não sei se eu sobreviveria pra ver outro dia se Lady Dimitrescu tivesse nos pego em uma situação ligeiramente diferente...
- Oh, você quer dizer como a que eu presenciei? – Ella provocou.
- Essa mesma – Agatha corou tanto que seu rosto podia rivalizar com seus cabelos – Bom, continuando, Cassandra me provocou e eu perdi a cabeça, a coloquei contra a parede e perguntei quando pretendia me beijar; eu juro que ela gaguejou em pelo menos três línguas diferentes, ou foi o que pareceu, e teria fugido se não estivesse presa.
- Tá aí uma coisa que não se vê todo dia – Ella se surpreendeu – Jurava que Cassandra ia tomar a iniciativa.
- Eu também, mas Cassandra se recuperou rapidamente e me beijou; e antes que você me pergunte, porque eu sei que isso está se passando pela sua cabeça nesse exato momento, foi só o que aconteceu entre nós aquela noite, só isso e nada mais.
- Mas...
- Sim, isso já aconteceu, mas não vou entrar em detalhes sobre isso.
Os fatos começaram a se alinhar na cabeça de Ella, e apesar de tentar respeitar o pedido de Agatha não conseguiu deixar um detalhe de lado.
- Alcina quase pegou vocês duas no flagra duas vezes, e numa delas eu estava presente... – Ella arfou – Vocês transaram aquela noite?
- Depois de você chamar Lady Dimtrescu pro quarto a olhando como se fosse tirar a roupa ali mesmo? Sim, inclusive Cassandra comentou sobre isso e que você estava se insinuando pra mãe dela.
- É... – Ella coçou a cabeça e fez um careta – Foi a única coisa em que consegui pensar no calor do momento, achei que vocês teriam mais cuidado mas aparentemente não dá pra esperar isso. Se bem que... – fez uma pausa ligeiramente dramática – Somos amigas, eu estou dormindo com a mãe e você com a filha.
Agatha riu e balançou o dedo em sua direção.
- Você é amiga da Cassandra e está dormindo com a mãe dela.
- Em minha defesa eu já estava dormindo com a mãe dela quando nos tornamos amigas.
Gargalharam juntas, cúmplices em sua atual situação amorosa cheia de peripécias e desencontros.
- Eu tenho mais uma pergunta – disse Ella ao recuperar o fôlego – Juro que só mais uma. Você e Cassandra se gostam ou é só sexo?
- Eu não sei – Agatha admitiu em voz baixa, seu olhar caiu sobre a caneca cujo conteúdo estava praticamente pela metade e brincou com um guardanapo – Sei que pode parecer surpreendente, mas Cassandra tem sentimentos muito profundos que não gosta de revelar, e está sendo bom conhecer esse novo lado aos poucos, sem pressa alguma.
- Sabe o que eu acho? – Ella perguntou e Agatha assentiu para que continuasse – Vocês tem todo o tempo do mundo pra descobrir como se sentem em relação uma a outra, então aproveitem as coisas boas sem cobrar uma resposta.
Não tinha ideia se era um bom conselho ou não, mas era tudo o que Ella tinha a oferecer no momento, mas Agatha pareceu contente ao ouvi-la e foi um bom sinal, queria dizer que não havia perdido os sentidos.
- É isso que está fazendo? Aproveitando as coisas boas sem pensar no que você e Lady Dimitrescu sentem em relação uma à outra? – Agatha perguntou e Ella assentiu em confirmação – Do meu ponto de vista acho que você gosta dela, estou certa? – assentiu novamente – Lady Dimitrescu gosta de você e não é pouco, é uma pena que não consiga ver as coisas como eu vejo.
- Por quê?
- Porque assim saberia o que ela sente por você e que adoraria saber que é seu aniversário, não só para comemorar, mas para compartilhar algo importante. Sei que sua família não foi das melhores e que você não teve muitos motivos para comemorar durante sua vida, mas acho que Lady Dimitrescu gosta de te enaltecer e devia aceitar isso.
Logicamente, Ella sabia que sua amiga estava certa em todas as questões levantadas, só que ainda lhe era difícil acreditar que alguém teria tanto trabalho por causa dela, principalmente por algo tão insignificante quanto seu aniversário; em verdade, Agatha estava certa ao afirmar que Alcina gostaria de partilhar dessa informação, a mulher ficaria decepcionada se descobrisse que Ella escondeu algo dela de forma tão deliberada.
- Vou pensar nisso – Ella prometeu – Acho que a Alcina gostaria de saber, ela perguntava muito sobre minha vida.
- Geralmente eu tenho razão sim.
Não contou acerca de suas inseguranças com Alcina, mesmo tendo em Agatha uma figura amiga com quem podia confiar e desabafar parecia um tanto quanto constrangedor afirmar com todas as letras que havia se apaixonado pela mulher mais velha, principalmente quando tais sentimentos jamais seriam retribuídos.
- Já que você terminou de investigar minha vida amorosa, é a minha vez de perguntar – Agatha chamou sua atenção – Como é dormir com alguém como ela?
- Como assim? – Ella corou.
- Quem está corando agora? Não se faça de boba, você sabe o que eu quis dizer – Agatha sorriu ao observá-la corar ainda mais – Ela é tão alta, forte e mandona. E aí, como é?
Depois de todo o interrogatório sobre o relacionamento de Agatha e Cassandra, Ella sabia que não podia fugir daquilo.
- Eu nunca dormi com outra pessoa, então não posso comparar, mas Alcina é cuidadosa e até carinhosa – deu de ombros – Além de ter uma resistência incrível. Aquela noite que encontramos vocês nos corredor? Achei que não andaria no dia seguinte.
Dessa vez Agatha gargalhou sozinha e Ella devia se sentir constrangida, mas rapidamente estavam rindo juntas mais uma vez. Havia algumas coisas que não contaria à amiga, como mesmo depois de uma sessão de sexo dominador, Alcina sempre a beijava de forma carinhosa e a embalava contra o peito; esses momentos carinhosos pertenciam somente a elas, como um segredo delicioso.
Acabou por permanecer na companhia de Agatha pelo resto da manhã e conversaram sobre diversos assuntos, Ella contou sobre sua infância e aprendeu que a amiga tinha uma irmã mais nova vivendo no vilarejo, Pérola tinha quinze anos e adorava cavalos, e foi bom aprender mais sobre sua vida; eventualmente Cassandra adentrou a cozinha, provavelmente esperando alguns beijos como recompensa, mas se atrapalhou ao ver Ella e bateu em retirada logo a seguir.
Ella recusou a oferta de almoço e voltou para os aposentos de Alcina para esperá-la, mas ainda assim Agatha apareceu alguns minutos depois carregando uma bandeja com um sanduíche e um copo de suco, insistindo que Ella não poderia ficar sem comer ou passaria mal durante o próprio aniversário.
Foi deixada a sós com seus pensamentos e apesar de não desejar cair em memórias distantes, foi impossível não revirar algumas delas. Seu último aniversário feliz aconteceu enquanto a mãe ainda estava viva, sempre havia um abraço esperando por Ella não importava o quão ruim fosse a situação, desde sua morte não houve motivos para comemorar, principalmente porque o pai não ligava o suficiente e fazer Ella sofrer parecia ser seu novo esporte favorito. Claro, aquela era a dor de uma garotinha e não da mulher adulta que se tornara, o certo era deixar todas aquelas coisas para trás.
Os minutos se arrastaram e se tornou muito difícil manter os olhos abertos conforme o sono se apoderava dela, aquecida e confortável como estava foi inevitável se aconchegar contra o travesseiro de Alcina e aspirar seu cheiro; não chegava perto da sensação de estar em seus braços, mas servia como um substituto aceitável para o momento, e Ella se permitiu relaxar e ressonar.
Não houve sonhos ou pesadelos, felizmente porque Alcina não estava presente para segurá-la. Seu despertar foi igualmente tranquilo, gradativamente, mas só abriu os olhos ao sentir a cama afundando ao seu lado; Alcina estava de volta, a observando de modo curioso como se houvesse algo diferente em sua aparência, e esticou a mão para tocar seus cabelos.
- Olá, draga mea – Alcina sorriu brevemente – Conseguiu descansar?
- Sim, mas senti sua falta.
- Acredite em mim, só a deixei porque era realmente preciso, eu tenho obrigações a cumprir.
- Eu sei disso – Ella devolveu o sorriso – Como foi?
- Como sempre, nunca é fácil lidar com o idiota do meu irmão.
Alcina era sempre evasiva quando se tratava das reuniões com os outros lordes, logo Ella soube que seria inútil insistir no assunto.
- E como foi a sua manhã? – Alcina perguntou.
- Muito boa – Ella pensou se devia ou não admitir que praticamente havia obrigado Agatha a passar algum tempo conversando. Por um lado, Alcina parecia estar tentando ser mais gentil, por outro isso poderia não durar e voltaria com os ciúmes, Ella não desejava isso de forma alguma assim como não queria mentir – Conversei um pouco com Agatha.
- Humm... – Alcina estreitou os olhos – Posso saber sobre o que?
Parecia uma armadilha, e conhecendo Alcina era bem provável que realmente fosse; o olhar da sua amante parecia capaz de enxergar sua alma, e Ella se sentiu exposta, só podia esperar que não descobrisse sobre Cassandra e Agatha.
- Nada em especial – Ella tentou sorrir – Só conversando sobre assuntos aleatórios.
- Tem certeza?
Ella vacilou sob o olhar de Alcina, engoliu em seco e fez o possível para manter a expressão neutra.
- Sim, certeza absoluta.
O olhar de sua amante demorou-se em seu rosto por mais alguns segundos, como se tentasse encontrar uma única expressão capaz de dizer o contrário daquilo que verbalizava.
- Por que Cassandra sabe que hoje é seu aniversário e eu não?
Ella sentiu o queixo cair e não soube o que responder, transformou-se em uma bagunça completa ao gaguejar algumas sílabas sem conseguir pronunciar uma palavra sequer. Não estava preparada para esse cenário em especial, contava com a possibilidade de Alcina interrogá-la sobre o envolvimento entre Cassandra e Agatha ou algum desastre causado pelas garotas, mas não sobre seu aniversário.
- Estou esperando por uma resposta.
O tom de Alcina soou impaciente, não estava acostumada a esperar por nada, e Ella soube que só pioraria sua situação se tentasse mentir. Aparentemente sua amiga não concordava que esconder seu aniversário pudesse ser uma boa ideia e como a fez prometer não contar a Alcina, contou a Cassandra que deu um jeito de repassar a informação para sua mãe; Ella só não podia admitir para Alcina que não contara exatamente para sua filha, mas especialmente para a criada de quem sentia ciúmes.
- Devo ter comentado com a Cassandra em algum momento e me esqueci.
- Se esqueceu?
- Sim.
Alcina franziu a testa e respirou fundo algumas vezes. Ao observá-la atentamente, agora que precisava permanecer em silêncio, Ella observou que Alcina devia estar em casa há algum tempo já que não usava chapéu ou luvas.
- Passou pela sua cabeça que eu gostaria de saber que é seu aniversário?
Ella negou um aceno e Alcina grunhiu em desgosto. Para ser justa, Agatha tentara lhe avisar várias vezes e Ella, muito teimosa, recusou cada um dos avisos e escolheu crer na própria verdade; jamais lhe ocorreu, mesmo momentaneamente, que Alcina pudesse achar que seu aniversário era algo meramente relevante, que dirá importante a ponto de ser mencionado como algo digno de nota.
- E por que não?
Havia muitas respostas para essa pergunta, uma mais inadequada que a outra. Na cabeça de Ella fazia sentido não incomodar sua amante com algo tão insignificante quanto seu aniversário, mas estar na frente de Alcina e admitir em voz alta parecia extremamente tolo esconder algo assim; poderia ter sido sincera desde o começo e evitar todo aquele transtorno inútil, mas agiu sem pensar e agora sentia-se amedrontada com a possibilidade de ter irritado Alcina ou, ainda pior, que a tenha feito acreditar que vinha escondendo coisas dela de forma deliberada.
Ella desviou o olhar e deu de ombros sem saber como verbalizar os pensamentos que lhe ocorriam.
- Ella – Alcina a chamou gentilmente, não havia raiva em sua voz e isso deu-lhes confiança para encará-la novamente – Estou tentando ser paciente, mas ainda quero uma resposta.
- Só me lembrei essa manhã e não é importante, eu nunca comemorei meu aniversário – Ella encolheu os ombros e tentou adivinhar o que se passava na cabeça de Alcina, sua expressão era impassível e não lhe dava uma dica sequer – Há muitos anos não tenho alguém que se importe o suficiente, para falar a verdade nem eu me importo. É só um dia comum, nada demais.
- Entendo que não tenha tido chances de comemorar, mas as coisas mudaram e está na hora de começar a entender isso.
Alcina abriu os braços em sua direção, e Ella não perdeu tempo em se arrastar para seu colo.
- Às vezes eu gostaria de poder fatiar seu pai em pedacinhos – Alcina comentou como se não fosse nada e a abraçou – Você, e tudo o que se refere a você, é importante, está na hora de começar a entender isso.
- Vou tentar.
-Sem mais segredos. Entendeu? – Alcina a afastou para que pudesse olhar em seus olhos – E a partir de agora, eu decido o que é ou não importante.
Ainda não podia contar a Alcina sobre Cassandra e Agatha, não era algo que lhe competia, mas tal qual sua amiga encontrou uma brecha em sua promessa Ella também poderia prometer, afinal de contas não era um segredo seu.
- Entendi, prometo que não haverá mais segredos entre nós.
Algo em sua voz, ou talvez tenha sido seu olhar, pareceu ser capaz de convencer Alcina e ela não insistiu no assunto. No entanto, sua amante deveria saber melhor do que Ella que sempre haveria algo entre as duas, seja confissões alheias, negócios ou, pior ainda, tudo o que se relacionava a Mãe Miranda; mas não aquele não era o momento certo para trazer tal assunto à tona, e Ella afastou tais pensamentos.
- Feliz aniversário, draga mea.
O sussurro rouco de Alcina causou arrepios na pele sensível do pescoço de Ella e a fez estremecer. Meses passados junto a sua amante ainda não a haviam preparado para tais sensações, encontrava-se completamente entregue e tomada por Alcina, cada toque em seu corpo parecia uma tortura e uma benção. Como alguém podia estar tão perto e tão longe ao mesmo tempo? Por vezes Alcina lhe parecia um ser superior, intocável e inatingível, cuja natureza parecia atrair Ella para sua armadilha, na qual caiu feliz apesar de ter sido advertida quanto aos riscos; deixou-se capturar, ser consumida até a essência e, quando Alcina pousou os lábios sobre os dela, nada mais importou.
O beijo começou carinhoso e a desarmou completamente, como se sua ínfima resistência de nada valesse ao se encontrar nos braços da sua amante, grande parte dela nem queria resistir, desejava ardentemente render-se à Alcina até que não restasse nada que fosse apenas ela mesma. Por outro lado, lutava ardentemente por sua identidade, queimava-lhe nas entranhas o desejo de ser reconhecida por aquilo que realmente era, a mulher forjada nas intempéries da vida. Essa dualidade era o mais intrigava Alcina e a fazia desejá-la de tal forma, Ella sabia bem disso, sua amante não queria alguém completamente entregue aos seus comandos. As mãos de Alcina seguraram seu rosto como para impedi-la de se afastar, como se Ella tivesse forças para tal ato insano, e o beijo se tornou mais rápido, apaixonado, roubando-lhe o fôlego e o resto da sanidade; correspondeu no mesmo ímpeto, enredando as mãos pelos cabelos negros e macios da sua amante, sua condessa, e puxou, seus quadris se mexeram de forma involuntária sobre o colo e as mãos deixaram seu rosto para segurá-la; Alcina se afastou, um brilho de provocação reluziu em seus olhos e Ella bufou, corada e envergonhada por ter sido parada.
- Não me olhe assim, draga mea – Alcina sorriu e pressionou um beijo rápido em seu queixo – Está ficando impaciente e precisamos comemorar seu aniversário.
- Me parece uma ótima forma de comemoração – Ella retrucou – E o aniversário é meu, então eu decido.
- Não tão rápido, tenho algumas coisas para você e as garotas querem comemorar; Daniela está praticamente saltando pelas paredes, mais animada do que me lembro de tê-la visto, e todas tomamos algum tempo escolhendo presentes para você – Alcina fez uma pausa e encarou – Não quer decepcioná-las, não é?
A manipulação óbvia, Alcina nem teve a decência de mascará-la, teve o efeito desejado. Nem mesmo em seus sonhos mais loucos Ella teria coragem de desapontar as garotas, principalmente Daniela que nós últimos dias sempre encontrava uma desculpa para se sentar colada ao seu corpo, ou mesmo invadir o quarto da mãe para se jogar ao seu lado na cama; Alcina dizia que se devia ao calor do seu corpo e que a caçula buscava apenas conforto, mas isso não mudou o fato de que gostava realmente da companhia de Daniela.
- Isso é chantagem – acusou, apesar de não conseguir deixar de sorrir – Não, eu não vou decepcionar as garotas, mas só por causa delas.
- Ah, eu vejo... – Alcina sorriu de forma provocante – Só pelas garotas?
- Apenas por elas – Ella devolveu a provocação.
Normalmente, Alcina reviraria os olhos para a afronta ao reconhecer que Ella desejava apenas provoca-la, mas pareceu estar mais condescendente esta tarde e apenas a empurrou para fora dos seus braços, lançando um olhar profundo e crítico em sua direção.
- Não gosto das suas roupas e terá que trocá-las mais tarde, mas pode permanecer com elas por agora.
Uma coisa que não havia mudado, e decerto jamais mudaria, era o desgosto de Alcina por suas roupas de antes, preferindo ver Ella usando os belos vestidos que achava adequados para sua posição dentro do castelo.
- Esqueci de trocar-me, não pretendia dormir nestas roupas, embora sejam bem mais confortáveis – Ella se arrastou pela cama – É melhor descer e ver as garotas, já que Daniela está tão animada assim.
- Não tão rápido – Alcina a segurou – Venha aqui.
Ella saiu da cama e se aproximou da mulher o suficiente para segurar a mão que Alcina estendia em sua direção.
- Tenho algumas coisas para você – Alcina repetiu – É seu aniversário.
- Não precisa me dar nenhum presente.
- Mas eu quis, então por que não dá uma olhada sobre a penteadeira?
Antes de se afastar, Ella depositou um beijo rápido no canto dos lábios de Alcina e sorriu ainda que encabulada por estar sendo presenteada. O objeto longo depositado sobre a penteadeira chamou sua atenção e Ella correu para pegá-lo, muito animada para prestar atenção em qualquer outra coisa.
- Meu arco! – ofegou – Posso ficar com ele?
- É claro, ele é seu.
Observou atentamente o corpo do arco e percebeu, feliz, que estava intacto e que fora bem guardado durante todo aquele tempo; puxou a corda o máximo que pode e a sentiu se esticar como sempre fizera, o arco era como uma extensão de si mesma e tê-lo de volta a deixou entusiasmada. Percebeu que a aljava cheia de flechas estava no chão, apoiada nas pernas do móvel, e parecia exatamente como da última vez que a viu.
- Claro, espero que não tente ensinar Daniela imediatamente – disse Alcina – Peço que espere até a primavera, quando poderão fazer isso do lado de fora e não destruir meu castelo.
- É claro, não precisa se preocupar com isso!
Ella concordaria com qualquer coisa para ter seu arco de volta, mesmo ter que enrolar Daniela até a chegada da primavera. Sobre o móvel também se encontrava o velho exemplar do livro que foi um presente de Klaus, só não contou esse detalhe a Alcina, e a fez sorrir contente por tê-lo de volta.
Depositou o arco com cuidado sobre o móvel e caminho de volta a Alcina.
- Obrigada.
Mesmo sentada Alcina se elevava sobre ela, e precisou se erguer na ponta dos pés para beijar-lhe os lábios rapidamente.
- Essas coisas são suas, não um presente.
- Ainda assim, estou feliz em ter meu arco de volta e mal posso esperar para sair e usá-lo!
- Isso me leva a outra coisa – Alcina tomou a mão de Ella entre as suas e a puxou para que se aproximasse um o pouco mais – Preciso lhe falar sobre algo importante – a mulher respirou fundo – Você nem sempre torna as coisas fáceis para mim, essa sua postura desafiadora e sempre pronta para me provocar de alguma forma me intrigam ao mesmo tempo em que me fazem perder o juízo. Você... Você me faz sentir coisas que há muito tempo não sentia, sentimentos que pensei estarem adormecidos. Por isso eu preciso te dizer que eu...
Alcina parou de falar, como se fosse difícil expressar em palavras quando o coração de Ella parecia prestes a saltar para fora do peito. Finalmente estava acontecendo, Alcina parecia prestes a confessar que tinha sentimentos como os de Ella e nem em seus sonhos mais loucos poderia supor que isso seria possível.
- Eu a liberto, você é livre para ir.
Às vezes quando se está subindo uma escada muito alta, é comum supor que existe mais um degrau quando na verdade não há, e então o pé afunda pesadamente no vazio e o coração dispara no peito, mas logo é possível apoiar o pé no chão e sabe que tudo vai ficar bem; Ella estava se sentindo exatamente dessa forma, mas sem o apoio como se estivesse sem nada a prendê-la à terra, seu coração afundou no peito, desapontado e inconsolável.
- O que? – Ella sussurrou e soltou a mão do aperto de Alcina – E-eu não entendo.
- Você é livre para ir – Alcina repetiu – Estou lhe dando a liberdade.
Quando Ella tinha nove anos apostou com um garoto do vilarejo que conseguiria escalar mais alto do que qualquer outro, escolheram uma árvore e começaram a subir enquanto um grupo de crianças torcia lá embaixo; movida pela sede de vencer, Ella escalou sem olhar para baixo, tudo o que escutava eram os gritos de incentivo lá embaixo que davam-lhe ânimo para continuar. Estava a pelo menos dois metros acima do garoto, o nome dele era Sorin, quando ele desistiu e lhe deu a vitória ao que pelo menos metade das crianças comemorou em seu nome; ao final da descida, feliz e exultante por ter vencido, seu pé escorregou e não encontrou apoio para se segurar a tempo, caiu pesadamente no chão e lá permaneceu. Ella se lembrava claramente de estar deitada no chão, o corpo dolorido enquanto tentava respirar, cada lufada de ar parecia insuficiente e dolorosa fazendo seu peito chiar a cada respiração, tremia incontrolavelmente e seus olhos se encheram de lágrimas sem, contudo, conseguir chorar; mais tarde, Ella soube, havia caído de pelo menos três metros e Sorin lhe disse que parecia um peixe fora d’água, pensaram que morreria ali mesmo  e talvez tivesse morrido, não fosse a grama fofa e um arbusto terem amortecido parcialmente a queda.
Doze anos depois e Ella sabia que estava se sentindo da mesma forma. O oxigênio não parecia ser suficiente, suas mãos tremiam e os olhos se encheram de lágrimas que não foram derramadas; apesar da dor, que dessa vez parecia rasgá-la por dentro e não seria curada alguns dias, não conseguiu chorar ou pensar de forma coerente. Sentiu-se a mesma menina sozinha, com dor, assustada e rejeitada.
- Fiz algo de errado?
- Não...
- O-o que? Não entendo. Então por que...? Não pode simplesmente fazer isso! Não pode me mandar embora assim como se não fosse nada, como se não se importasse comigo – as palavras saíram aos borbotões, em uma torrente inevitável – Achei que se importasse comigo, não que estava esperando a primeira oportunidade para me descartar assim.
- Ella...
- Não posso acreditar nisso...
- Ella! – Alcina levantou a voz – Preciso que me escute com atenção.
Alcina puxou delicadamente pelo braço para que se aproximasse e limpou as lágrimas que escorreram pelo seu rosto, Ella nem mesmo havia se dado conta de que estava chorando.
- Não a estou mandando embora, preciso que entenda isso – disse em tom firme – Espero que saiba que não desejo nada além de mantê-la ao meu lado, mas preciso libertá-la e deixar que faça sua escolha.
- Escolha?
- Sim, precisa escolher se deseja partir, e será livre para isso, ou se ficará aqui comigo. Estou lhe dando a chance de escolha.
Ella respirou fundo algumas vezes para se acalmar, suas mãos ainda tremiam e Alcina as segurou entre as dela; o toque a acalmou o suficiente para que pudesse se controlar e pensar de forma racional, não estava sendo expulsa do castelo e Alcina a queria por perto.
- E então? – Alcina perguntou após alguns minutos – Deseja permanecer ao meu lado?
- Não há outro lugar no mundo em que eu desejo estar mais do que aqui.
- Você não pode imaginar o quanto fico feliz em ouvir tais palavras.
Alcina soltou suas mãos e segurou seu rosto, com cuidado puxou Ella para perto e aplicou um beijo casto em seus lábios.
- Tem certeza que essa é sua escolha final?
- Absoluta – Ella sorriu – Quero ficar.
A sensação do toque em seu rosto foi indescritível, Ella fechou os olhos e apreciou o gesto carinhoso.
- Como pode pensar que eu a mandaria embora? – Alcina perguntou ao passar o nariz sobre o pescoço de Ella, sussurrou com a voz rouca em seu ouvido e a fez se arrepiar por inteira – Não fiz tudo por você? Não cuidei bem de você?
- Sim... – Ella suspirou quando Alcina mordiscou seu pescoço – Sim...
- Eu faria qualquer coisa por você – Alcina aplicou um beijo logo abaixo da sua orelha – Nunca se esqueça disso.
- Eu não vou.
Para sua consternação, Alcina se afastou cedo demais.
- Agora, troque essas roupas para que possamos descer. Tenho um presente para você.
Ella revirou os olhos, mas não discutiu com Alcina, não quando estava aliviada por não ter sido mandada embora.
- Alguma sugestão?
- O vestido vinho, adoro o decote dele.
- Como quiser.
Devia saber que Alcina escolheria o vestido com o maior decote. Trocou-se o mais rápido que pode, o vestido erguia seus seios e deixava o decote à mostra; como Alcina não a instruiu quanto a maquiagem, passou apenas o batom e um pouco de blush para corar suas bochechas. Achou que estava bem assim, apesar de não gostar dos sapatos de salto, e retornou a Alcina que sorriu ao vê-la.
- Muito melhor – disse ao passar a língua pelos lábios ao vê-la – Estou considerando seriamente não deixá-la descer.
- Ah, mas não queremos decepcionar as garotas, não é mesmo?
Alcina não sucumbiu à provocação, apenas acenou para que se aproximasse ainda mais e Ella notou que tinha uma caixa retangular de veludo nas mãos que não se lembrava de ter visto antes; caminhou lentamente até sua amante sem tirar os olhos da caixa que segurava, é claro que Alcina não manteria aquilo simples.
- Para você – disse Alcina ao abrir a tampa da caixa.
O colar pousado sobre o veludo preto era de tirar fôlego. A pedra azul tinha o formato quase perfeito de um coração, rodeada de pequenos diamantes brilhantes assim como toda a extensão do colar; Ella estendeu a mão e o tocou delicadamente, como se pudesse quebrar ao menor toque.
- É lindo...
- É um diamante muito raro, lapidado para se parecer com um diamante. Achei que combinaria com seus olhos.
Alcina o tirou da caixa e fez Ella se virar para prender o colar em seu pescoço, tirou a gargantilha que usava e a substituiu. A pedra fria fez contato com sua pele e pareceu se aninhar bem acima do seu decote, era mais pesado do que parecia e completamente maravilhoso.
- É maravilhoso – Ella tocou o diamante, devia ter quase quatro centímetros de diâmetro – Não devia ter feito isso.
- Você está explêndida, draga mea – Alcina sorriu e a virou para que pudesse encará-la – E eu estava certa, combina com seus olhos e fica perfeito em você.
Não conseguiu discutir com Alcina, não quando estava sendo observada daquele jeito, tudo o que pode fazer foi corar e sorrir timidamente. De qualquer forma, Alcina não a deixou discutir os méritos de seu presente e a guiou para fora do quarto afirmando que as garotas esperavam por elas, o que a lembrou que Daniela devia estar quicando pelas paredes de animação e impaciência; não encontraram as garotas até que desceram para o salão de jantar, a mais jovem das irmãs se lançou sobre Ella e ambas teriam caído se Alcina não tivesse sido rápida ao segurá-las.
- Daniela, tenha cuidado.
- Feliz aniversário! – Daniela gritou sem se importar com a represália da mãe – Temos presentes e fizemos um bolo!
Ella notou que Daniela tinha farinha espalhada pelo cabelo e uma pequena mancha na bochecha que devia ser chocolate.
- Obrigada por fazer tudo isso, mas não precisava realmente.
- É claro que precisava - Bela afastou sua irmã e a abraçou – Feliz aniversário!
- Obrigada, Bela.
Surpreendentemente, Cassandra também a abraçou e desejou feliz aniversário, foi um pouco menos calorosa do que suas irmãs, mas Ella apreciou o gesto carinhoso da mesma forma.
- Não se preocupe, Agatha cozinhou e só deixou Daniela ajudar com algumas coisas, então a comida é segura.
Ella sentiu vontade de provocá-la sobre pedir ajuda a Agatha, mas lembrou-se de que foi através da amiga que souberam sobre seu aniversário e que Cassandra guardou o segredo.
Já Daniela pareceu muito ofendida com o comentário e mostrou a língua para a irmã.
- Meninas, não briguem – Alcina avisou – É para ser uma noite agradável.
- Presentes! – Daniela gritou animada e bateu palmas – Você gostou do colar? Mãe escolheu especialmente pra você, disse que combinava com seus olhos.
- Sim – Ella sorriu para Alcina – Sua mãe me contou.
- Também temos presentes – Daniela anunciou – O meu é o mais legal.
Pela primeira vez desde que conseguia se lembrar tinha com quem comemorar seu aniversário, os presentes pouco importavam diante da emoção de se sentir querida por aquelas mulheres, mas ainda assim Ella foi guiada para se sentar à mesa para que pudessem lhe presentear. Apesar da empolgação de Daniela, Bela foi a primeira a se aproximar e lhe estendeu algo que se parecia com um livro.
- Me desculpe a falta de embrulho, Duke tem ótimas mercadorias mas não é do tipo que embrulha para presente – ao notar a expressão confusa de Ella, Bela explicou: - Duke é um mercador.
O livro grosso possuía uma capa de couro azul, feita de material acolchoado, que se dobrava como um envelope na parte posterior, uma faixa marrom com um fecho o mantinha trancado e protegido de olhares curiosos; o fecho de metal estava trancado e contava com uma cavidade pequena em forma de engrenagem, tornando impossível abri-lo.
- Para você manter seus desenhos seguros – Bela explicou ao lhe estender uma corrente formada por três fios de prata intercalados, o pingente tinha a forma de uma engrenagem dentada e parecia caber perfeitamente na cavidade do diário; Ella notou que ao colocá-la no pescoço seria possível escondê-lo facilmente dentro do vestido – Assim poderá mantê-los longe dos olhares curiosos.
- Obrigada, Bela – agradeceu com sinceridade – Eu amei.
Cassandra se aproximou assim que sua irmã mais velha deu um passo para trás e lhe estendeu uma caixa retangular estreita, de tamanho médio.
- Bela me ajudou a escolher, ela disse que você gostaria disso.
Ao abrir a caixa deparou-se com uma caneta tinteiro preta, a ponta de pena, assim como o clipe e o barril, era dourada e contrastava lindamente com a cor escura.
- É linda. Obrigada, Cassandra.
- Chato – Daniela revirou os olhos – Meu presente é muito mais divertido.
Sem esperar realmente sua vez, Daniela se meteu na frente da irmã e estendeu uma adaga em direção a Ella; uma bela peça cujo cabo era coberto por arabescos em alto relevo, a lâmina dupla estreitava levemente na base, criando uma curvatura, e voltava a alargar-se no meio; o metal reluzia de forma quase sobrenatural e ali também havia alguns arabescos cravados em sua extensão, era uma peça linda e mortal.
- Mãe me deixou te dar uma adaga – Daniela comentou animada, mal parecia conseguir se conter de tanta felicidade – Você gostou?
- Eu adorei, Daniela – Ella sorriu quando a caçula se jogou sobre seu corpo para abraçá-la mais uma vez – Sabia que podia contar com você par me dar uma arma super legal.
- Alguém precisa te proteger.
Pela primeira vez desde que chegara ao castelo, as garotas lhe fizeram companhia durante o jantar ainda que não comessem nada, suas refeições nunca eram servidas junto a de Ella e simplesmente se acostumou com isso, sabia que tal fato se devia a natureza de suas dietas; Alcina tomou uma taça de vinho, mas nenhuma das filhas a acompanhou. A surpresa para a qual Daniela estava tão animada era um bolo de chocolate pequeno, e a caçula anunciou orgulhosamente que havia participado de todo o processo com alguma, muita, ajuda de Agatha. Daniela não se lembrava da sua vida anterior, então não tinha como saber se gostava ou não de cozinhar, e sua animação era tal qual a de uma criança descobrindo algo novo e Ella prometeu que poderiam fazer isso juntas em breve; seria uma atividade segura e que a ajudaria a passar o tempo, embora Daniela estivesse mesmo ansiosa para suas lições de arco e flecha.
Após o jantar Alcina foi informada de que deveria atender uma ligação de seu irmão, ao que ela reclamou da incompetência e falta de bom senso do energúmeno Heisenberg antes de sair do salão. Com a ausência da mãe, Cassandra avisou que precisava encontrar Agatha para levá-la aos seus aposentos e desapareceu em uma nuvem de insetos; para Ella, Alcina estava apenas fingindo não saber o que estava acontecendo, não podia ser mais óbvio. Por fim, Daniela insistiu que precisava da ajuda de Bela para escolher um novo livro de romance e a arrastou para a biblioteca, Ella prometeu que as encontraria lá assim que guardasse os presentes em seu quarto.
Já estava sozinha há alguns minutos ao deixar o salão de jantar, carregou seus presentes em uma pequena pilha e sorriu para si mesma ao pensar em como seu aniversário foi diferente de todos os outros pura e simplesmente por estar cercada de pessoas que se importavam com ela.
Uma mão forte tampou sua boca e outra agarrou-a pelo braço, puxando-a com força. Seus presentes caíram no chão com um baque alto e Ella tentou lutar, mas o aperto aumentou e foi puxada em direção a um corpo atrás de si.
- Shh! Sou eu.
Ella se debateu e conseguiu se soltar, virou-se para encontrar Klaus a olhando. Seu amigo já tinha visto dias melhores, além das olheiras suas roupas estavam sujas e rasgadas em vários pontos diferentes.
- O que está fazendo aqui? – Ella sussurrou ao olhar por cima do ombro para se certificar que Alcina e as filhas não o tinham visto.
- Estou salvando você!
- Eu não preciso ser salva, mas você precisa ir embora! Como entrou aqui?
- Encontrei um túnel que leva ao porão, me arrastei por ele e consegui entrar. Foi um longo caminho e você não imagina o que vi lá embaixo, preciso te tirar daqui o mais rápido possível...
Klaus deu um passo para trás e olhou-a de cima a baixo, seu olhar demorando-se no grande colar de diamantes preso em seu pescoço.
- O que aconteceu com você?
- Como assim o que aconteceu comigo?
- Não parece você mesma – ele retrucou e balançou a cabeça – Isso não importa, preciso te tirar daqui e rápido!
- Não seja idiota, eu já disse que não preciso ser salva! Estou aqui porque eu quero e... Ei!
Parecendo cansado de ouvi-la, Klaus voltou a puxá-la com força pelo braço, fazendo-a se atrapalhar momentaneamente e perder um dos sapatos de salto; Ella praguejou e tentou se soltar enquanto Klaus a arrastava para a porta principal, provavelmente impaciente para sair e mandando a cautela pelos ares, mas o aperto forte em seu braço a impediu, ele ainda era mais alto e forte do que ela.
- Me solta!
- Nós precisamos ir!
- Acho que Ella não quer ir com você – a voz de Bela soou há alguns metros de distância – É melhor soltá-la.
- É o Carlos! – Daniela guinchou feliz – Mãe não vai gostar nada disso!
- Quem é Carlos? – Klaus perguntou parecendo confuso.
- Você – Ella respondeu ao tentar se soltar – Eu já disse pra você ir embora. Me solta!
Klaus estava a poucos segundos de ser morto pelas lâminas mortais de Bela e Daniela, assim que as duas avançassem em sua direção Ella nada poderia fazer para impedi-las; somente ao sentir uma brisa gelada notou que as grandes portas do salão principal estavam escancaradas e rajadas de vento passavam por elas, as garotas estavam paradas no limite do qual podiam se aproximar sem serem afetadas, provavelmente decidindo o melhor a se fazer.
- Vá chamar nossa mãe – Bela mandou – Rápido, Daniela!
- O que está acontecendo aqui?
Alcina já descia as escadas e sua expressão mudou completamente, tomada pela raiva ao entender a cena que se desenrolava à sua frente.
- Como se atreve a invadir minha casa? – Alcina rugiu – Seu verme inútil, irei fatiá-lo em pedaços!
Klaus tentou arrastá-la em direção à porta, mas Ella usou toda sua força para girar o corpo e se jogar na direção contrária para conseguir se livrar; caiu ao chão e bateu a cabeça pesadamente, sua visão ficou turva e não conseguiu se levantar, a cena só pareceu enfurecer Alcina ainda mais e ao falar sua voz soou carregada de raiva.
- Filhas, esperem por mim lá em cima. Bela, cuide da sua irmã, mãe precisa resolver esse probleminha.
Alcina estava tentando proteger suas filhas e Ella só queria garantir que elas estavam bem, mas ao tentar se levantar seu mundo girou novamente e voltou a se deitar no chão; Klaus estava colocando tudo a perder, Ella jamais o perdoaria se Bela ou Daniela acabassem feridas.
Tudo aconteceu rápido demais. Bela e Daniela obedeceram a mãe e desapareceram escada acima, Alcina expandiu as garras afiadas e avançou em direção a Klaus que pareceu ter recobrado o mínimo de consciência e começou a correr em direção à porta; Alcina o perseguiu implacavelmente, seu olhar mal se demorou na figura caída de Ella antes de passar ao seu lado e sair do castelo.
A porta foi fechada com um baque alto e Ella adivinhou que devia estar trancada do lado de dentro. Levou algumas respirações profundas, mas conseguiu se levantar e manter o equilíbrio; precisava encontrá-los e dar um jeito de salvar a vida do amigo, apesar da atitude idiota não achava que Klaus merecia morrer daquela forma.  Arrancou o sapato restante e ergueu a saia do vestido o suficiente para auxiliar em sua corrida, teria que sair pela cozinha e contornar o castelo antes que Alcina fatiasse Klaus com as garras e precisava ser rápida; correu com o tudo o que podia, passou por algumas criadas e quase trombou com uma delas, pediu desculpas e continuou correndo até alcançar a cozinha; nevava do lado de fora e Ella gemeu ao pisar na neve fofa, o frio pareceu entranhar-se em seus ossos mas não tinha tempo de procurar as botas e os saltos só a atrasariam, o jeito era ir assim mesmo; correu com tudo o que podia, os terrenos estavam parcamente iluminados, apenas o suficiente para saber onde estava indo, e Ella se esforçou para ser ainda mais rápida.
Ella tropeçou pelo terreno, seus pulmões queimavam a cada aspiração e os músculos protestaram, mas não havia tempo para descanso, teria que forçar uma nova arrancada. De onde estava pode ver Klaus caído no chão, arrastando o traseiro na neve, enquanto Alcina avançava vagarosamente ao divertir-se com a caçada; estava brincando com a comida, aproveitando cada segundo, e Klaus seria morto ali ou arrastado para o castelo para que as garotas se divertissem com ele.
- Não! – Ella gritou com todas as forças e voltou a correr – Não o mate!
Postou-se entre os dois. Pousou as mãos sobre os joelhos e respirou algumas vezes, tentando manter o controle da entrada e saída do ar para não desmaiar.
- Saia da minha frente – Alcina resmungou entredentes – Não pense que não passarei por cima de você se for preciso.
- Eu... Sei... – Ella respirou fundo mais algumas vezes – Me deixe falar... Por favor...
- Ella, não! – Klaus gritou – Fuja! Fuja agora!
- Cala a boca, seu idiota! – Ella gritou – Alcina, por favor...
- Ainda não aprendeu que isso não funciona aqui? – Alcina expandiu as garras e avançou um passo – Ele invadiu meu castelo, colocou a vida das minhas filhas em risco e a feriu... Ele merece a morte. Saia da minha frente ou eu mesma farei isso.
- Não! Não posso deixar que o mate. Por favor, Alcina... Você não entende, Klaus salvou minha vida, a família dele cuidou de mim... Se não fosse por eles, eu não estaria viva, entende isso? Eu não estaria aqui com vocês. Tenho uma dívida com Klaus e a família dele, então estou pedindo para saldar a dívida em meu nome.
Alcina rosnou, seu rosto se transformou em uma máscara de raiva.
- Você testa minha paciência!
- Se me deve sua vida, deveria vir comigo! – Klaus se levantou e tentou se aproximar de Ella que se afastou em direção a Alcina – Venha comigo... Nós a mantivemos viva e faremos isso de novo.
Alcina grunhiu e Ella agarrou sua mão.
- Eu escolhi você, não ele! Estou aqui porque eu quero e não tenho a intenção de ir a lugar algum. Poderia ter fugido várias vezes durante o inverno, oportunidades não me faltaram e mesmo antes de me dar uma escolha já havia decidido ficar – Ella falou rapidamente, as palavras saindo rapidamente sem que tivesse qualquer controle – Entrei em desespero ao imaginar que me mandaria embora, senti-me abandonada, traída até. Não desejo estar em outro lugar porque eu te amo!
O silêncio foi ensurdecedor, o único som vindo de Alcina foi um tipo de gemido estrangulado, e Klaus grunhiu mas Ella não lhe deu atenção.
- Deixe-o partir e ele jamais voltará aqui. Se voltar, poderá matá-lo – Ella se virou para o amigo – Entendeu? Não volte aqui jamais, sua vida não será poupada uma segunda vez!
- Você não pode estar falando sério sobre amar ela...
- Mas estou! – Ella o interrompeu – Eu a amo, essa é a verdade e você precisa aceitar isso. Não tem que concordar comigo, mas precisa respeitar minhas escolhas e escolho permanecer ao lado de Alcina.
Seus pés doíam horrivelmente e Ella nem queria pensar em que estado de encontravam, só precisava voltar logo para o castelo e ficaria bem, os segundos pareceram se arrastar sem que nada acontecesse. Por fim, Alcina retraiu as garras, mas sua expressão não era das mais felizes.
- Se ele voltar aqui...
- Ele não vai, nunca mais – Ella prometeu – Klaus errou, ele não sabia que eu estava feliz aqui.
- Não posso acreditar nisso! Você não é a mesma Ella que conheci e quer saber de uma coisa?! – Klaus praticamente grunhiu – Se quer ficar aqui, então fique mas será sozinha!
Ella o olhou confusa.
- Sozinha? Eu tenho uma família aqui.
- Não importa – Klaus se virou – Ela nem pode te amar de volta.
Em verdade, Alcina não ter devolvido seus sentimentos dizia muito, mas talvez pretendesse fazer isso em particular ou, uma possibilidade assustadora, não se sentia da mesma forma. De todo jeito, não havia como voltar atrás com suas palavras ou sentimentos, continuaria a amando mesmo que fosse rejeitada.
- Não muda o fato de que eu a amo. Sei que está chateado, e provavelmente bravo, comigo... Mas não posso escolher quem amar.
Aquela altura, Ella desejava que Alcina disse alguma coisa, qualquer coisa, para resolver a situação.
- Não se preocupe – disse Klaus – Não a procurarei novamente. Vejo que já fez sua escolha.
- Eu fiz e você não precisa concordar com ela, só respeitar -  Ella repetiu – Vá embora, Klaus.
- Ele pode ir – Alcina determinou – Desta vez. Intrometa-se em minha propriedade novamente e não serei tão benevolente.
Klaus se virou, parecendo derrotado e furioso ao mesmo tempo, e marchou em retirada. Ella o assistiu partir até que Alcina a pegou em seus braços fortes e a segurou no estilo nupcial como sempre fazia.
- Olhe para você, molhada e com frio – Alcina disse com desgosto em sua voz – Seus pés podem estar feridos. Ele vale tudo isso?!
Ella olhou sobre seu ombro e assistiu Klaus passando pelo portões, ele não se virou para olhá-la e adivinhou que talvez aquela fosse a última vez que estava vendo o amigo. Klaus a ajudou quando ninguém mais podia, esteve ao seu lado nos momentos mais difíceis e segurou sua mão em todas as vezes que se sentiu fraquejar e querer desistir da vida de sobrevivência que levava, nunca o esqueceria ou tiraria seu mérito; não podia devolver seus sentimentos, e ele jamais poderia ser feliz por ela, estavam em lados opostos do tabuleiro e não havia nada que Ella pudesse fazer a respeito.
Abraçou o pescoço de Alcina e apoiou a cabeça ali, deixou que seu cheiro reconfortante a envolvesse e suspirou contente ao entrarem novamente no castelo.
- Ele era meu amigo – a sentença saiu em um fiapo de voz, como se outra pessoa muito distante falasse por ela, ainda assim Alcina bufou – Mas eu escolhi você e continuarei escolhendo.
Um beijo carinhoso foi pressioná-la em sua têmpora, mas Alcina nada disse enquanto subiam as escadas. Bela e Daniela as esperavam em seus aposentos, ambas parecendo ansiosas e enquanto a irmã mais velha tentava permanecer calma, a caçula praticamente saltou da cama da mãe e correu em sua direção.
- Mãe! Você matou o Carlos? Prendeu ele? Podemos brincar com ele? – seus olhos brilharam de um jeito meio maníaco – Por favor, me deixa ficar com ele! Carlos merece uma lição.
- Ele não está morto e nem preso – Alcina respondeu e, apesar do tom aparentemente calmo, seu rosto se contorceu em desgosto como se dizer aquelas palavras a deixasse com um gosto ruim na boca – Uma dívida foi paga esta noite e espero que aquele verme tenha aprendido sua lição.
Ella nada disse, era difícil defender seu amigo quando ele não lhe deu ouvidos em todas as vezes em que afirmou estar bem e não precisar ser salva de nada. Daniela pareceu desapontada, mas algo na expressão de Alcina deixou claro que não aceitava questionamentos e assim a ruiva permaneceu em silêncio, por sua vez, Bella aproximou-se assim que Ella foi colocada sobre a cama.
- Encontrei seus presentes caídos, eu os recolhi e trouxe para você.
- Obrigada, Bela.
- Meninas, eu preciso tirar as roupas molhadas da Ella, podem ir para seus quartos agora.
As duas lhe desejaram boa noite e saíram, assim que ficaram a sós Ella evitou olhar para Alcina, não desejava ver o que estava expresso em seus olhos.
De forma cuidadosa, Alcina tirou seu vestido e então o branco que usava, permanecendo apenas com um conjunto de lingerie cor de pêssego que se assentava muito bem sobre sua pele pálida. Não importa quanto tempo passava, Ella ainda se impressionava com a beleza e magnitude da mulher, estava completa e irremediavelmente apaixonada e, apesar de não ser retribuída, ainda não desejava partir.
- Você está bem – Alcina determinou ao examinar seus pés – Só algumas queimaduras leves. Teve sorte desta vez, draga mea.
- Nunca mais farei isso – Ella fez uma careta – É terrível.
- Estará melhor de manhã, mas temo que não usará salto por alguns dias.
Alcina trouxe sua camisola e a ajudou a se trocar antes de se aconchegar sob as cobertas, o colar foi colocado em sua caixa e colocado junto aos outros presentes para que Ella decidisse onde guardá-los na manhã seguinte; a mulher deitou-se ao seu lado após trocar-se e puxou-a para um abraço como fazia todas as noites, pressionou beijos carinhosos em seu rosto e sorriu.
- Espero que tenha tido um bom aniversário apesar de tudo.
- Eu tive – Ella garantiu – O melhor.
- Vamos melhorar nossas comemorações, foi a primeira vez que comemoramos um aniversário em muito tempo. Os próximos serão ainda melhores.
- Haverá tantos assim?
- Tantos quanto desejar – Alcina passou o nariz sobre a curvatura do seu pescoço e mordiscou-lhe o lóbulo da orelha – Falei sério sobre tê-la aqui. Eu faria qualquer coisa por você, draga mea, e a maior prova foi manter aquela criatura repugnante viva, embora não tenha intenção de poupá-lo novamente caso invada meu castelo.
- Ele não voltará.
- Isso a deixa triste? – Alcina perguntou sem esconder os ciúmes – Que ele não venha procurá-la novamente?
- Não. Mantenho o que disse sobre você e meus sentimentos, não desejo estar em qualquer outro lugar e se Klaus não respeita minha decisão, nada posso fazer a respeito.
- Não se preocupe, draga mea, eu sempre cuidarei de você. Qualquer coisa para vê-la feliz.
Dessa vez o beijo foi pressionado sobre seus lábios e Ella se derreteu sob o toque, nem se desejasse poderia resistir a Alcina e tudo o que queria no momento era estar em seus braços e ter uma mera fantasia de que seus sentimentos seriam retribuídos um dia.
[...]
Klaus entrou em sua casa e bateu a porta no instante em que Ella estava segura na cama com Lady Dimitrescu. Custava a acreditar na cena que havia presenciado, seu sangue fervia a ponto de aquecer seu rosto mesmo com as baixas temperaturas que acabara de enfrentar.
Não podia aceitar, não estava certo! Ella estava vestida como uma... Não ousava sequer dizer! Em todos aqueles anos nunca imaginou ser possível encontrá-la daquela forma, usando um vestido com decote generoso, maquiagem e joias. O que aquela coisa estava fazendo com sua Ella? Bem, não importava mais, uma escolha foi feita esta noite e a culpa era toda dela! Klaus tentou, passou semanas planejando resgatar sua amada e assim poderiam ser felizes juntos, ele estava disposto a criar Judith como sua filha se fosse preciso, mas Ella preferiu ficar na companhia de um monstro!
Seu irmão Elijah se aproximou, seguido de perto por seus pais que nada disseram ao perceber sua consternação. As crianças brincavam no canto da sala sob supervisão de Stela, a filha mais velha, e Judith se virou rapidamente em sua direção, mas Klaus a ignorou.
- Você a encontrou? – Elijah perguntou – Ella está bem?
- É melhor tirar as crianças daqui...
Sua mãe murmurou, mas antes que pudesse se aproximar das crianças Klaus explodiu.
- Ella está morta! Morreu!
Judith gritou como um animal ferido, seu rosto foi banhado com lágrimas e soluços balançaram seu corpinho. Seu pranto pela irmã que sequer se importava com ela o enfureceu ainda mais, Ella devia estar ali cuidando de Judith e não declarando amor por um monstro.
- Você tem certeza disso, irmão? – Elijah questionou – Ella estava bem quando a vi...
- Se eu tenho certeza?! Vi o corpo dela! – Klaus – Aquelas coisas a mataram!
- Klaus! – Stela berrou de volta ao tentar segurar Judith no colo, a menina se debateu tentando libertar-se inutilmente – Tenha piedade dessa criança!
- Sua irmã está certa, pare de falar assim na frente dela – disse seu pai com a voz firme ao aproximar-se de Judith e acariciar seus cabelos de forma carinhosa – Leve-a para o quarto, Stela, sua mãe levará leite quente para ela em breve.
- Sim, pai.
Stela saiu da sala com a criança que se debatia em seus braços, Klaus esperou que estivesse longe o bastante para proferir suas últimas palavras sobre o assunto.
- Ella está morta, é melhor Judith começar a se acostumar com a ideia de que somos sua família agora.


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Petição pra Alcina cortar o pai da Ella em pedacinhos.
Espaço para xingar o Klaus à vontade.
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Belas Criaturas (fanfic Lady Dimitrescu)Onde histórias criam vida. Descubra agora