Tormenta

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Eu pedi silêncio à turma, fiz a chamada e apliquei o teste. Um dos alunos me olhava constantemente. Eu não sabia o nome dele — ele mal vinha às minhas aulas. Ele pediu pra ir ao banheiro e eu deixei. Depois de meia hora ele voltou. Percebi que ele brincava nervosamente com a caneta. Estava distraído. Ele me olhava... Por fim, o tempo esgotou e ele me entregou a prova em branco. Os alunos foram saindo. Ele ficou parado perto da porta, mexendo no celular. Quando ficamos sozinhos (eu ainda arrumava minhas coisas, sentado à mesa), ele se aproximou e disse:

— Professor, eu preciso te contar uma coisa, mas é extremamente confidencial.

— Pois diga...

— Promete que não vai contar a mais ninguém? Jura que, independentemente do que for, do quão grave seja, vai manter segredo?

— Juro. Pode falar.

— Eu não posso voltar pra minha casa. Tive uma briga feia com meu padrasto. Ele disse que se eu voltar, vai me matar. Se eu contar isso a quem o conhece, pra minha mãe, por exemplo, ou pros meus vizinhos, ninguém vai acreditar em mim! Eles pensarão que é besteira ou loucura da minha cabeça. Mas não é. Eu sei que ele falou sério, eu sei que ele vai dar um jeito de acabar comigo. Semana passada ele misturou aspirina na ração do meu cachorro... se eu não tivesse visto ele teria matado o meu cachorro! Professor... será que eu podia ficar na sua casa pelo menos hoje? Porque já tá tarde. Não tenho como encontrar um lugar pra eu ficar... Será que você poderia me ajudar? Nem que seja só hoje?

— Claro. Sem problemas. Você pode passar uns dias comigo se você quiser.

Eu o levei de carro até meu apartamento. Descobri que seu nome era Carlos.

Assim que entramos, acendi a luz do corredor e disse:

— Está vendo aquela porta no fim do corredor? Por favor, nunca abra aquela porta. Ali dentro tem um rapaz muito doente. Você pode ficar aqui por quanto tempo desejar, tanto que não o incomode.

Eu fritei minichickens, batata congelada, fiz arroz e salada de alface e tomate. Nós comemos sem conversar. Eu disse que só tinha um quarto disponível, que ele podia escolher entre dormir na minha cama ou dormir no sofá.

Emprestei-lhe um pijama velho. Estava frio. Nós nos trocamos, deitamos na cama e nos cobrimos com o mesmo cobertor. Apaguei a luz do abajur e disse:

— Boa noite.

— Boa noite. Ele é seu filho? — ele quis saber.

— Não — eu disse simplesmente.

Acordei às seis com o alarme do celular. Trancado no banheiro, arriei as calças do pijama e sentei no vaso com o jornal de ontem em mãos. Durante o banho, bati uma punheta. Depois fui pra cozinha preparar café.

No quarto, o diabo me disse assim:

— Victor, você não deveria ter trazido esse rapaz pra cá. Ele é um mentiroso, tem as piores intenções. Ele veio pra te manipular e pra te roubar. Ele sabe mais sobre você do que você imagina. Ele descobriu que é você quem lança as notas de todos os alunos da escola. Desde então, ele começou a te seguir. Uma vez você estava bebendo num bar com um colega, aquele professor de história. Esse rapaz te olhava de longe disfarçadamente. Ele estava de boné, fumando. Ele viu quando você se aproximou daquele jovem que ficou sentado sozinho a uma mesa, abandonado por seu grupo de colegas de trabalho. Você se aproximou e ofereceu dinheiro pra poder tocar nele, não foi? Vocês foram até uma rua deserta ladeada por uma fileira de palmeiras. Na sombra de uma das árvores enormes você se aproveitou da melancolia, da fragilidade dele silenciosamente. O Carlos ficou olhando, fumando no escuro. Alguém chegou. Você saiu andando. Você se masturbou no carro. Ele já repetiu quatro vezes a oitava série e está tentando ingressar numa escola técnica. Eles só aceitam alunos que estão no segundo grau. Ele quer ser um eletromecânico. O pai dele trabalha numa siderúrgica. Essa história do padrasto. Esquece isso. É tudo mentira. Ele tem uma vida normal. Ele tem tudo o que quer. Sabia que ele estudava numa escola particular, numa das mais caras da cidade? Enquanto você dormia, sem necessidade nenhuma, ele mexeu na sua carteira, mexeu nas suas gavetas. Ele é um pseudo-delinquente qualquer. Por favor, se desfaça dele. Mas não pense que vai ser fácil. Ele vai tentar te seduzir. Ele vai se mostrar vulnerável, desprotegido, triste. Ele vai incitar o que há de mais perverso na sua mente. Vai induzi-lo a cometer uma série de abusos. E então, quando ele se tornar uma vítima, terá tudo de você. Não só o que ele quer agora. Daqui a pouco passar de ano vai ficar em segundo plano. Ele vai analisar as vantagens que pode obter às suas custas; a partir daí, ele vai sugar tudo de você.

— Coma — eu disse. — Você está muito pálido.

— Não consigo me acostumar com o sabor dessa comida. Tudo aqui tem gosto de cinzas.

Semanas se passaram. Eu e Carlos nos tornamos amantes. Alguns dias depois, descobri que ele também havia se tornado amante do diabo Kesabel. A princípio não me importei, mas um dia, um dia cinzento e muito chuvoso, eu ouvi os dois conversando a meu respeito, eles estavam tramando contra mim! A conversa foi mais ou menos assim:

— ...um assassinato. Sim, o melhor seria assassiná-lo.

— Esse apartamento é muito bom, eu adoraria ficar com ele.

— Os vinhos na adega têm gosto de sangue, mas ele raramente me deixa bebê-los. Isso me irrita tanto.

— Eu estou cansado, já estou totalmente saturado dele. Eu pensei que eu mesmo não tinha limites, até conhecê-lo. A vontade dele parece que nunca acaba. Quando acho que vou finalmente ser deixado em paz, ele arranca minha roupa e começa tudo de novo, e de novo, e de novo. Eu me sinto, de certa forma, explorado por ele. Você sente o mesmo, Kesabel?

— Agora que você está aqui isso aliviou um pouco, pois nós dois o dividimos. Quando éramos só eu e ele, eu chegava a sentir saudades da minha vida no Inferno. — Eles riram baixinho. — Eu deveria ter possuído o corpo de um jovem menos atraente. Parece que o destino dos belos é sempre mais cruel aqui na Terra.

— Mas o destino dele vai ser o mais cruel de todos.

— Amanhã ele receberá a visita de um primo. Esse primo se chama Lúcio. Quando eram adolescentes, o Victor tinha o costume de molestá-lo enquanto ele estava dormindo. O Lúcio sabia: muitas vezes ele acordava no meio do ato, mas jamais reagia. Ele tinha pena do pobre Victor. Tinha tanta, tanta pena que de certa forma era até mesmo condescendente em relação a esses abusos. Ele sabia que eles aconteceriam e nada fazia para impedi-los. Ele se deixava trancar no covil com o monstro. Ele ficava esperando, de olhos fechados e coração acelerado. Esperando pelo toque indesejado. Às vezes ele até mesmo se excitava, mas era uma reação involuntária do corpo. Ele não tinha nada a ver com aquilo. Definitivamente, ele não gostava. Não chegava a sentir nojo; todavia, sentia-se como nós nos sentimos: de certa forma usados, desrespeitados. Porém ele sempre o perdoava. No dia seguinte, agia como se nada tivesse acontecido. Após eles se distanciarem, por inúmeras razões que nada têm a ver com esses fatos, o Victor não experimentou qualquer tipo de prazer sensual com outra pessoa, até me conhecer, quase vinte anos depois. Ele era meu professor particular. Quer dizer, era professor particular do Lucas, cujo corpo vazio agora é habitado por mim. Uma vez, de tão apaixonado que estava, de tão solitário e de tão desesperado que se sentia, o Victor se jogou aos pés desse rapaz, desse Lucas que tinha então apenas dezesseis anos, e implorou, aos prantos, agarrando a bainha de sua calça, ajoelhado, chorando, o rapaz mortalmente indiferente, ligeiramente incomodado, um tanto confuso... O Victor implorou: por favor, por favor, eu não aguento mais, por favor, deixa eu tocar em você, deixa eu tocar em você.

— Risível — comentou o Carlos — totalmente ridículo.

A chuva batia forte contra o vidro da janela.

INCUBUSOnde histórias criam vida. Descubra agora