Tanglomanglo

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Havia uma casa no morro, solitária. Nessa casa moravam dois homens. Eles eram Aristóteles e seu filho, Ubiratan. Aristóteles se aposentara cedo, após perder um dedo em serviço, e cuidava da casa, preparava a comida, capinava. Ubiratan trabalhava fora, numa clínica dentária popular, entregando panfletos na calçada em frente ao prédio. Pessoas passavam e às vezes ele dizia: "orçamento feito na hora!" À noite estudava. Estava no ensino médio ainda, embora já tivesse quase vinte e três anos. Era um jovem abrutalhado. Era frequentemente descrito como "aquele russão". Tranquilo e calmo, reservado, gentil... ele era muitas coisas boas. Ia pra casa de ônibus. Puxava a cordinha no meio da estrada escura e descia, caminhava na beira da pista até achar a estrada de chão que subia até a morada humilde. Lá o pai, também um homem taciturno, introvertido, simples, esperava com a janta pronta. Ele servia três pratos. Antes de comerem, Aristóteles levava um prato ao quarto que havia sido de seu próprio pai, um homem também chamado Ubiratan. Ele colocava o prato naquele quarto sem móveis e fechava a porta, desejando bom apetite ao nada. Voltava à mesa e comia junto do filho. Às vezes eles conversavam, às vezes não. Antes de dormir, o prato deixado no quarto vazio era recolhido.

Numa noite qualquer alguém bateu à porta enquanto pai e filho, após comerem, conversavam sobre problemas financeiros. Aristóteles foi atender e convidou a dupla de visitantes, também um pai e um filho, a entrarem. Reuniram-se todos na sala de estar cheia de móveis velhos e quadros com fotografias foscas. O visitante mais velho se chamava Lionel e implorou que ajudassem seu filho, Tarcísio. Ajudar no quê? É que tacaram nele uma macumba, explicou Lionel. Mas não podemos fazer nada, disse Aristóteles, porque era o Ubiratan meu pai quem mexia com essas coisas, infelizmente a gente não pode ajudar. O homem insistiu mas parou quando viu que não ia dar em nada. Aceitou uma água antes de ir. O filho dele não foi. Aconteceu uma coisa muito estranha. Quando Tarcísio viu a porta aberta, a porta que dava pra paisagem tranquila da noite nos morros, entrou em pânico, teve uma crise de desespero e choro. Não podia ir embora porque lá fora estava cheio de monstros. Como eles todos podiam estar tranquilos, perguntava-se. Vocês não estão vendo? Crê em Deus pai! Tá cheio de demônio lá fora! E ele gritava, apavorado, encolhido embaixo da cama de Ubiratan (cama que ficava na sala porque na casa só tinha dois quartos). Só no dia seguinte ele saiu de lá, todo mijado. De lá de baixo da cama, porque da casa ele não quis sair. Porque lá fora tava sempre cheio de saci e bicho ruim e mapinguari. Como é que ninguém tá vendo?

Com o tempo ele foi acostumando. Se tinha uma porta ou janela aberta, se escondia mas já não arranjava escândalo. O pai dele vinha sempre, tentando convencê-lo inutilmente de deixar aquela casa. Ele se desculpava com os donos. Sentia muito pelo transtorno todo. Ajudava com os gastos. Lamentava, chorava, mas depois se acostumou também, afinal, ainda mais conformados com a situação absurda estavam Ubiratan e Aristóteles. O primeiro sempre trazia presentes para o louco, para amenizar suas crises, e o segundo mostrou-se desde o princípio cegamente caridoso. Cuidaremos do seu filho, ele dizia, não podemos curá-lo então cuidaremos dele, não se preocupe.

No início Tarcísio dormia num colchonete desconfortável. Depois passou a dormir na mesma cama que Ubiratan. Era uma cama de solteiro apertada, mas os dois já tinham bastante intimidade então não viam problema nisso. Passaram-se anos.

Uma vez Aristóteles contou ao filho (eles estavam fora de casa, no mato, e ventava muito) que o Ubiratan morto se manifestara para explicar a situação. Aquele jovem com quem agora dividiam a casa traíra sua mulher com um colega de serviço. Ela descobriu tudo e, sentindo-se ultrajada, tascou-lhe essa mandinga pesada. O trabalho foi feito com o auxílio de um bruxo cruel. Ele teria cortado as patas de um rottweiler e largado o coitado do bicho numa encruzilhada, ainda lutando pela própria vida, em oferenda a entidades de baixa vibração. Essas entidades não sossegariam enquanto não tomassem para si as mãos e os pés do pobre Tarcísio. Ele estaria protegido na casa deles, porque ali o avô Ubiratan não deixaria ninguém entrar, mas sair seria praticamente suicidar-se. A não ser que entregasse àqueles seres o que eles desejavam.

Ubiratan Neto chorou muito. Jurou que amaria e protegeria Tarcísio até o fim de seus dias.

Nem foi preciso porque as entidades foram embora espontaneamente depois de um tempo. Os dois se separaram três meses depois do sumiço das visões. Depois de dez anos voltaram a se encontrar e envolveram-se de novo por mais algum tempo. Hoje guardam uma lembrança terna um do outro.

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