Quando Rafael chegou em casa, às quatro da manhã, seu padrasto o aguardava sentado numa das poltronas da ampla sala de estar, naquela ocasião iluminada apenas pela luz fraca de um abajur.
— Onde você estava?
— Com uns amigos.
— Eu tenho uma coisa muito séria pra conversar com você. Senta aí.
Rafael ocupou a outra poltrona.
— Sua mãe foi embora. Ela nos abandonou para ir morar com um amante na Grécia. Ela deixou esta carta aqui explicando tudo e se despedindo — George entregou-lhe uma folha de papel, a qual o jovem de dezessete anos leu calma e inexpressivamente. — Agora que somos só nós dois, preciso que você tome uma decisão: vai querer continuar morando comigo ou não? Eu já liguei pra sua avó contando o que aconteceu, e ela disse que vai te receber de braços abertos caso você queira voltar pra Minas. Eu posso te levar de carro amanhã mesmo, ou pagar sua passagem caso você prefira ir sozinho de ônibus. Mas... se for da sua vontade continuar vivendo aqui nesta casa, está tudo bem também, tanto que entremos num acordo. Afinal, você sabe que não sou tão tolerante quanto a sua mãe.
Rafael o encarou sem dizer nada.
— Ela sempre me impediu de corrigir você — continuou George. — Eu não vou tolerar suas drogas e seus sumiços; não vou admitir que você repita de ano outra vez; vou me meter, sim, na sua vida, a ponto de até mesmo escolher seus amigos. Você quer um pai assim? Você acha que precisa de alguém assim na sua vida? A decisão é sua. Eu posso te dar tudo: as roupas que ela sempre se recusou a comprar pra você, a faculdade que ela nunca te incentivou a fazer, até mesmo as festas de aniversário que ela a vida toda achou tão desnecessárias. Porém, só se eu vir que houve uma verdadeira mudança no que diz respeito ao seu comportamento e aos seus hábitos. Você não precisa dar a resposta agora. Deve estar de cabeça cheia, né? Vai pra cama. Amanhã você me diz o que acha.
Eles se dirigiram aos seus respectivos quartos. Cerca de quarenta minutos depois, George acordou com o choro alto do rapaz. Levantou-se, foi até o quarto dele e, vendo-o em prantos sentado na cama, disse:
— Quer que eu pegue uma água pra você?
Rafael cobriu o rosto com as mãos, envergonhado; ele respirava fundo e ruidosamente.
— Será que eu poderia dormir hoje no seu quarto? — perguntou. — Eu tive sonhos perturbadores.
George o pegou pela mão e o conduziu através do corredor escuro. Ao se deitarem, abraçou-o com força, beijou seus cabelos, puxou o edredom para cobri-los.
— Nós vamos ficar bem — sussurrou.
— É muito estranho — Rafael disse. — Toda vez que ela vai embora eu tenho o mesmo sonho. Odeio isso.
— Não fica pensando nessas coisas. Vai passar.
— É horrível. Eu fico com muito medo.
— A gente pode cuidar um do outro. Não vai ser fácil, mas vamos superar isso.
— Ela te contou alguma vez sobre o meu pai?
— Falou algumas vezes, mas pouca coisa.
— Quando eu tinha treze ou quatorze anos, eu tive um amigo chamado Rangel. Estávamos sempre juntos, ele dormia com frequência na nossa casa lá em Minas. Quando minha mãe passava a noite fora, sempre acontecia algo muito estranho. Eu acordava de madrugada e não o encontrava, então saía procurando por ele com o coração disparado, vasculhando cômodo por cômodo daquela casa enorme. Aí eu via uma cena muito chocante, toda vez a mesma cena. Ele e o meu pai no quartinho dos fundos... eu via de longe, através de uma janela. Ele sentado na cama, soluçando. O meu pai de joelhos na frente dele, lambendo as lágrimas do rosto dele. Eu ficava tonto de medo. De manhã, eu acordava sem saber se aquilo tinha sido um sonho ou se tinha mesmo acontecido. O Rangel é surdo de nascença, então a gente não conversava. De vez em quando trocávamos mensagens, mas eu não tinha coragem de tocar no assunto. Um dia eu lembro de ele ter escrito num papel: "o seu pai é um vampiro, ele se alimenta das minhas lágrimas". Mas eu não sei se essa é uma lembrança verdadeira ou falsa: é tudo tão vago... Eu já sonhei com tantas e tantas versões desse episódio que já não consigo mais separar fantasia de realidade.
— O que aconteceu com esse seu amigo? — perguntou George depois de um tempo.
— Ele se mudou pro Mato Grosso do Sul.
— Vamos fazer assim: a partir de hoje você dorme aqui comigo. Pode me acordar quando quiser, caso se sinta sozinho ou com medo. Tudo bem?
Rafael assentiu em meio às trevas.
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INCUBUS
Short StoryEste livro foi psicografado durante um transe que durou quatro anos. Enquanto uma entidade chamada Ulysses regia minha vida e comandava meus atos, estive adormecido. Se hoje estou em liberdade, se o exorcismo feito em mim foi bem-sucedido, é porque...