"Uma pessoa leu meus contos e disse que aquilo não era literatura, era lixo. Concordo. Mas há hora pra tudo. Há também a hora do lixo."
Clarice Lispector
A loja João Batista era uma mansão gótica localizada no ângulo de um quarteirão. Um jovem de dezenove anos chamado Augusto e seu renomado professor Filipo Belmonte foram convidados para entrar por uma voz feminina que lhes falou por interfone. O portão elétrico abriu-se como que por um truque de mágica e os dois passaram por ele, após o que o professor fechou-o rapidamente, com pressa para livrar-se da chuva. Na recepção, uma moça loira e rechonchuda informou que alugar um quarto da mansão custava quinhentos mL de sangue para cada ocupante. Ao se deparar com a reação previsível de surpresa exibida pelos recém-chegados, explicou que aquela era uma loja onde se poderia obter qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa imaginável em troca de uma determinada quantidade de sangue. João Batista era uma instituição de caridade, prosseguiu ela, que tinha como objetivo coletar sangue para doar aos necessitados. Eles se esforçavam para atender todos os pedidos de seus clientes, quaisquer que fossem, portanto bastava chamar do telefone do próprio quarto caso necessitassem de mais alguma coisa. A dupla de viajantes estranhou, é claro, a proposta do estranho e sofisticado estabelecimento, mas estavam viajando há tantos dias, estavam tão exaustos e ansiosos por um local para descansar que optaram por passar a noite ali mesmo.
O quarto parecia um cômodo de casa de boneca. O papel de parede tinha um delicado padrão com desenhos de rosas e folhas sobre um fundo cor-de-rosa. Os móveis eram todos brancos. Havia um espelho oval e reluzente sobre a penteadeira. Através do véu transparente do dossel que caía em torno da cama viam-se travesseiros de cores doces e pastéis sobre um cobertor felpudo. Por trás das janelas amplas as árvores agitadas pela tempestade. A recepcionista entregou-lhes a chave e disse-lhes que o pagamento seria feito pela manhã, pois a enfermeira só chegava às oito. Em seguida, desejou-lhes boa noite e seguiu pelo corredor, visivelmente exausta e sonolenta.
Augusto fechou as cortinas enquanto o professor se trocava. Espiou com o canto dos olhos a imagem daquele homem alto e forte de costas, vestido apenas com um samba-canção apertado, e sentiu por ele uma forte atração. Foi tomar um banho antes de deitar. A banheira tinha cor de chiclete de morango. A água era morna e fumegava suave. Recostou a cabeça na borda da banheira e fechou os olhos, deixando o corpo relaxar. O cheiro das plantas ornamentais era estranho. Quando despertou de um breve cochilo, viu que o inseto multicolorido que passeava há pouco por uma folha de samambaia tinha caído na água e nadava desajeitado.
Após secar-se e vestir o pijama, enfiou-se embaixo do cobertor junto do professor. O pau muito duro escapando pra fora do shortinho folgado de dormir. Dava pra sentir o mel babando da cabeça. Filipo, de bruços, as costas nuas e bronzeadas, ressonava docemente. Que vontade tinha de tocar nele! Frustrado, Augusto revirou-se na cama, torturado pelo desejo cruel que jamais seria saciado.
Às três despertou, sem sequer se lembrar de ter dormido. Tinha deixado o abajur aceso. Talvez isso lhe tivesse atrapalhando o sono. Levantou-se da cama, passou em frente a uma das cortinas fechadas e através dela avistou uma luz tênue que por algum motivo lhe despertou a curiosidade. Abriu uma fresta na cortina e viu que um carro acabara de estacionar próximo ao do professor. Uma mulher de meia-idade, impecavelmente vestida para um enterro, acompanhada por um homem jovem e belo protegido da tempestade por um guarda-chuva transparente saíram de dentro do veículo e rumaram para loja.
Na recepção, a mulher entregou à recepcionista de olhos baços por trás do balcão uma garrafa com rótulo de vinho tinto que na verdade continha um litro e meio de sangue e pediu que curassem a doença de seu filho. A moça quis saber de onde ela tinha tirado aquele sangue e a mulher informou que trabalhava num banco de sangue.
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INCUBUS
Short StoryEste livro foi psicografado durante um transe que durou quatro anos. Enquanto uma entidade chamada Ulysses regia minha vida e comandava meus atos, estive adormecido. Se hoje estou em liberdade, se o exorcismo feito em mim foi bem-sucedido, é porque...