Não costumava dar ouvidos a quem me dizia "cuidado com o que desejas". Então, um dia desejei que quando olhasses para mim visses a nua face da tentação. Demorei algumas semanas, mas depois das advertências de um certo americano admiti que a minha vontade não era realmente essa. "Tarde de mais" diriam vocês e bem. O desejo já tinha sido desejado. Peço desculpas pela redundância, mas o pensamento já tinha sido libertado para o universo. Nada a fazer. O peixe volta-se a apaixonar pelo anzol. O caçador tenta convencer a sua presa. E eu escapo mais uma vez. Quero estar zangada sem motivo. Quero fazer uma tempestade num copo de água. Quero te afogar no dilúvio que cresce em mim. Quero que morras, mas sempre me disseram que não devemos querer o último suspiro de alguém. Então talvez seja eu que deva ficar entre as quatro tábuas daquela fábrica de tijolo. A criança feliz que havia em mim na tua presença extinguiu-se, talvez não tenhas reparado porque as minhas saias parecem conservar os últimos resquícios da ingenuidade que tanto gostavas. As olheiras debaixo dos meus olhos gritam o teu nome. E os meus lençóis brancos e as pombas que vejo voar da minha janela só me fazem desejar que tal como elas fosses puro. Querido, eu sei que não sabes o que me fez mudar, nem tampouco irei eu te contar. Mas não abandones as tuas crias. Elas choram por ti quando sais para mais uma caçada mesmo sem compreenderem a extensão das consequências. Acho que no fundo nem tu entendes, ou simplesmente escolhes ignora-las de forma a não te sentires culpado. Então pegas no teu carro cinzento e conduzes para o turno da noite... aquele onde perdes o controlo e cedes ao derradeiro desejo.
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A rapariga que falava com os lobos
PoetryUma coletânea de textos sobre os meus anos adolescentes e as desilusões de uma rapariga apaixonada