Eva & Lilith

As cores que traz

           Azura e eu continuamos a conversa brevemente, mas logo outras coisas chamaram nossa atenção. No meu caso, lembrei que ouvir música me faria sentir menos ansiosa com a viagem, a nova amiga que fiz questionavelmente rápido e o fato de que Lilith estava tão perto, exposta a qualquer bizarrice que eu poderia fazer, a qualquer imperfeição minha. Tirei meus EarPods e meu celular de dentro da mochila, mas, quando fui conectá-los, percebi que os fones estavam sem bateria. Maldita tecnologia moderna. Aquela situação me trouxe agonia suficiente a ponto de eu começar a demonstrar a ansiedade que estava sentindo exteriormente. Apertando minhas mãos quase que involuntariamente e mantendo as pernas rígidas, comecei a olhar ao meu redor. O barulho que a turma fazia, em contraste com o mundo além da janela do automóvel em constante e veloz movimento, me dava ânsia. Meu coração estava apertado, como se envolto por uma aura escura — provavelmente psicológica, mas que incomodava como se fizesse parte do mundo material — que não queria ir embora. Odeio esse sentimento. Tentei cantarolar alguma melodia na minha cabeça, mas era impossível concentrar-me estando naquele ambiente.

           Me dei conta de que estava demonstrando todo aquele sentimento ruim quando Lilith tocou meu ombro, fazendo-me voltar minha atenção imediatamente a ela. Como se lesse meus pensamentos, sacou o seu próprio fone de ouvido e me entregou. Fiquei imóvel; não sabia o que fazer, não sabia que ela me conhecia tão bem e não sabia que alguém era capaz de esquecer de seu rancor assim, em um momento qualquer. Naquele milésimo de segundo imaginei que talvez, só talvez, ela não me odiasse tanto quanto fazia parecer — uma possibilidade que fez eu me odiar ainda mais naquele momento.

           — Você não vai... — tentei me impor, em vão.

           — Não. Pode usar — ela respondeu, já encarando a janela. Então, eu apenas aceitei e conectei o fone ao meu celular.

"No one else can make me feel

The colors that you bring

Stay with me while we grow old

And we will live each day in springtime

'Cause lovin' you has made my life so beautiful ".¹

           Essa canção sempre foi meu refúgio, a letra, a harmonia, a voz... Tudo se encaixa perfeitamente, tão perfeitamente que pareceu organizar todo o mundo à minha volta e todos os sentimentos que antes estavam uma baderna. Não seria possível evitar que a calmaria me atingisse. Mas, daquela vez, a música também despertou minha atenção a Lilith. Ela possuía seus pés em cima do assento, e abraçava as pernas contra seu tronco enquanto olhava a paisagem em movimento. Seus longos cabelos castanhos estavam soltos e com as mechas da frente presas atrás de sua orelha. O sol que tocava, delicadamente, seu rosto, e expunha a cor verdadeira dos seus olhos verdes que antes de encontrar a luz pareciam castanhos, não aparentava de forma alguma brilhar mais do que ela. Eu via beleza até em suas espinhas. Naquele momento, tive a sensação de que nunca havia presenciado as cores reais do mundo em sua forma mais viva, mais bonita. Era como se, ao prestar atenção em Lilith e sua doce rebeldia transparente, eu tivesse percebido que vivera num mundo cinza até então. E a beleza de Lilith trouxe cores para esse meu mundo. Lilith certamente é o conceito de beleza.

          Com isso em mente, deixei de olhar para ela. Decidi que meu mundo poderia ser cinza.

¹ Tradução:

"Ninguém mais consegue fazer eu sentir

As cores que você traz

Fique comigo enquanto nós envelhecemos

E nós viveremos cada dia na primavera

Porque amar você fez a minha vida tão bonita".

(Lovin' You - Minnie Riperton)

     O link da playlist de Eva está no meu Twitter, cujo user está na bio.