Atestado de óbito

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           Ouvir os tiros, os barulhos da floresta e os xingamentos que os caçadores nos gritavam, junto com os galhos acertando meu rosto enquanto eu corria sem ter tempo de refletir sobre o que estava à minha frente, só não me fez vomitar por pu...

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           Ouvir os tiros, os barulhos da floresta e os xingamentos que os caçadores nos gritavam, junto com os galhos acertando meu rosto enquanto eu corria sem ter tempo de refletir sobre o que estava à minha frente, só não me fez vomitar por pura adrenalina.

           Meu coração estava estupidamente acelerado, o meu corpo estava quente e minhas mãos só não doíam, apesar de carregarem duas mochilas, porque eu pensava no risco que corria se os homens me alcançassem. Morrer não soa legal.

            Para minha felicidade, a partir de um ponto os disparos começaram a diminuir, à medida que eu também começava a desacelerar, pois meu corpo tem limites – os quais, depois do ocorrido, percebi serem um pouco mais flexíveis do que eu pensava antes. Em um momento, Lilith, que corria muito mais rápido que eu, me alcançou, tropeçando em cima de mim e fazendo-nos cair juntas no chão. Eu acabei batendo minha testa numa pedra, e aquilo realmente doeu. Mais um machucado para a conta.

           — Lilith, vamos! Vamos! — Eu exclamei, ao me levantar rapidamente e buscar pelas mochilas que havia soltado com a queda. A olhei, e ela continuava sentada na terra.

             — Eles já estão longe — disse, calma.

             Nós duas estávamos suspirando e, num sentimento nada agradável, percebi a adrenalina deixando meu corpo. A adrenalina que me protegera de sentir a dor presente em cada canto do meu corpo enquanto eu corria. Eu sentia uma dor de facão por todo o tronco, minhas mãos latejavam e minha testa ardia como nunca. Levei uma das mãos ao lugar e vi que estava sangrando. Futuramente os mosquitos voltariam a me assombrar.

            Me dei conta de toda a situação, e Lilith se encontrava sentada, recuperando o fôlego com uma feição decepcionada. Deveria ser umas quatro da tarde. A estimação do tempo que gastamos ao fugir não veio à minha memória, muito menos a de quantos metros corremos, mas de algo, sim, eu lembrei.

            Da culpa de Lilith.

           Estávamos, agora, mais perdidas que nunca – sem rio para seguir e obrigadas a esperar pelas estrelas. Naquela ocasião, senti lágrimas se misturarem ao suor, sangue e terra presentes em meu rosto. Não consegui me conter.

            — Tá feliz?

            Ela ficou quieta; claramente também estava abalada. Eu continuei.

            — Isso é ridículo, Lilith. Isso é extremamente ridículo! — Exclamei, dando muita ênfase a cada palavra. Meus olhos haviam virado poças de água e minha voz já estava trêmula por conta do choro, mas segui: — Você disse que não ia fazer nada! A gente já tava indo embora! — Gritei.

           — Eu sei, Eva, eu... Eu sei — ela buscava por palavras para me responder, cabisbaixa. — Me desculpa, eu sei que fiz mal.

           — Você não "fez mal", Lilith. Você faz mal. Sempre. Você sempre foi inconsequente, e isso é insuportável! — Durante minha fala, meus olhos desmanchavam-se em lágrimas. Toda a dor, toda a raiva, todas as memórias, toda a aflição por ainda não haver saído daquele lugar uniram-se naquilo que se revelava, provavelmente, o maior surto que já tive. — Será que você poderia, por favor, por um momento, deixar de ser tão... assim? Não sei o que passa na sua cabeça, não sei qual a ideia que você tem do mundo, de si, mas esse seu jeito sempre estraga tudo! E você sabe! Mas não se importa!

           — Já entendi, Eva! — Ela se impôs. — Vê se deixa esse seu discursinho de garota responsável de lado! Por que você sempre tem que ser tão chata com tudo? A gente morreu, por acaso?! Não! A gente tá aqui, estamos vivas, e olha que eu posso ser inconsequente e o que for, mas pelo menos eu sei viver! Se a gente morresse hoje, o que que você teria para lembrar? O que é que você iria deixar aqui?

           — Para com essas desculpas, Lilith! — Eu gritava, passando as mãos pelos meus cabelos, com raiva. Era como se minha alma estivesse saindo de mim. — Não começa a falar de viver só para fugir da gravidade do seu comportamento! Até porque nunca é só você que é afetada! Você parece uma criancinha mimada, e isso é ridículo! Ridículo!

           — Eu prefiro ser assim do que não ter coragem de arriscar ser eu mesma, Eva! — Lilith gritou, e eu pude ver seus olhos lacrimejarem.

           — Se você não fosse assim, seu pai ainda estaria vivo — soltei as palavras num impulso, me arrependendo logo em seguida.

           Nós nos encaramos por alguns minutos. Minutos dolorosos. E Lilith juntou-se a mim no choro. Só havia dor presente entre nós, física e psicológica. Estávamos à beira da morte.

           Após algum tempo, Lilith pegou sua mochila, começando a andar.

           — Vamos procurar um lugar mais aberto — ela disse, seca.

           Eu a segui.

Eva & LilithOnde histórias criam vida. Descubra agora