Explicação

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          O pai de Lilith era seu porto seguro

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          O pai de Lilith era seu porto seguro.

           Quando ela tinha dez anos, lembro-me dela ter me contado, saiu com sua mãe, para acompanhá-la ao fazer compras. Porém a mulher foi embora sozinha naquela noite, pois esqueceu a filha na praça de alimentação do estabelecimento. Essa foi uma das várias situações traumáticas que Lilith já me contou quando éramos melhores amigas. Ela passou a ter medo de ficar sozinha desde então; de ser abandonada novamente.

          Naquele mesmo ano, sua irmãzinha, Larissa, veio ao mundo. E no ano seguinte foi a vez de Luís. Lilith nunca havia falado sobre isso comigo, já que ela amava seus irmãos, mas sempre que eu ia em sua casa percebia que a atenção incondicional que sua mãe dava às crianças, uma atenção que nunca houvera dado a Lilith, a magoava.

           Cito essas coisas porque, apesar de Lilith ser tão solta e aparentar estar sempre no controle de seus sentimentos, ela se sente só. E eu sei que não é minha obrigação lembrar sempre; eu não lembro sempre; mas sinto que devia. E é justamente essa preocupação que tanto me assusta. No tempo que éramos melhores amigas, eu queria proteger Lilith de tudo. Costumava relevar todos os seus atos problemáticos, porque eu só queria estar com ela. E isso foi me assustando tanto ao ponto de que, em um momento, resolvi deixar de relevar – comecei a focar na parte problemática. Me apeguei a tudo que fizesse eu me afastar dela o mais rápido possível, porque sua presença trazia à tona sentimentos que não eram queridos. As coisas chegaram a um ponto em que aquele aconchego que Lilith nunca sentira em sua família também deixou de ser fornecido por mim. Mas ela ainda tinha alguém. Ela sempre teve seu pai.

           Lilith costumava falar muito dele; sempre coisas boas. Falava de um passeio ou outro que tiveram no mês, das piadas internas, das brincadeiras de quando era criança... Tudo dentro dos limites que o trabalho de seu pai permitia. Ele era palhaço! Lembro de quando alegrava as festinhas de criança da filha. Porém ele também viajava bastante – nunca fazendo o amor pelos filhos desaparecer. Às vezes ele também fazia alguns bicos em outros lugares, para comprar uma coisinha mais cara para os filhos de vez em quando. Mas o que mais era incrível: quando voltava de uma cidade diferente, trazia sempre consigo alguma lembrancinha. E Lilith tem caixas e caixas de camisetas, pulseiras, colares, pôsteres, bonés, presilhas... A gente costumava se divertir com essas coisas, sem saber que, tão cedo, deixariam de ser simples presentinhos para tomar o papel de grandes lembranças da vida e do amor de seu pai. Ele demonstrava seu amor por todos os filhos, mesmo sem tanto tempo disponível.

           Há dois anos, porém, tudo virou de cabeça para baixo.

           Eu e Lilith não tínhamos passado muito tempo juntas no dia, mas eu lembro de tudo que aconteceu naquela noite de quinta-feira. Era o fim de um evento escolar, e lembro do movimento que fazia na rua. Também estava chovendo e relampejando. Eu me recordo de ver Lilith dançando na chuva, inclusive do sorriso que havia formado em meus lábios ao assisti-la de longe. Ela estava feliz, gargalhando, dançando, sem ligar para o resto do mundo. O seu pai, no entanto, estava nervoso por ver a filha dançando na chuva, em meio a trovões e relâmpagos. Ele a chamava e a repreendia, de longe, mas ela não o escutava. E continuou dançando, e dançando... Até que em um passo em falso foi parar na rua. O homem gritou por seu nome, aproximando-se um pouco. Mas Lilith logo levantou e o olhou, utilizando de sua melhor arma: o sorriso que diz que está tudo bem – e que, junto com seus joelhos um pouco ralados pela queda, também era divertido. Se o destino existe, ele há de ser extremamente cruel.

           Naquela mesma noite, naquela mesma rua, naquela mesma chuva, um carro, descontrolado e na contramão, arruinou qualquer sentimento de bem estar que alguma vez se expressara no rosto de Lilith. Ela ouviu a borracha dos pneus marcar o asfalto; todos ouviram. Deve ter visto sua vida passar na sua frente, assim como eu vi todos os momentos que já vivera com minha amiga passarem pela minha memória. Mas segundos antes de ter sua vida tirada por tamanha perversidade do destino, seu anjo da guarda a entregou mais um presente; o último; uma segunda chance de respirar.

           Sua vida.

           O pai de Lilith não morreu de imediato; arrisco dizer que se a ambulância tivesse chegado mais cedo ele nem teria morrido no fim das contas. O homem não reclamou, não se irritou. Junto à multidão que se formara ao redor do incidente, vi apenas o sorriso que ele direcionava à filha, que sentara ao seu lado, depois de ter levantado do lugar para onde havia sido empurrada e corrido em sua direção. Ele não demonstrava a dor que sentia, mas Lilith sim. Uma dor enorme – creio que maior do que qualquer uma que eu já tenha descrito ou sequer vivenciado; não consigo apresentá-la. Não escutei o que Lilith disse ao seu pai ou o que ele dizia a ela, e tive que ir embora antes da ambulância chegar.

           Foram muitos os ensinamentos que aprendeu com seu pai, mas como lidar com a morte é algo que poucos conseguem absorver. Ele costumava demonstrar um conforto diante do assunto e, ironicamente, Lilith também, mas depois do ocorrido isso acabou. Seja quais palavras seu pai a direcionou em seus últimos momentos, elas não conseguiram confortar o coração da menina. E mesmo tendo começado a odiá-la, Lilith passou a não se preocupar em ter um encontro prematuro com a morte.

           No mês seguinte ao ocorrido, no entanto, ela aparentava plena nos corredores da escola. Foi quando aprendi a não confiar nas expressões de Lilith; no mesmo mês ela foi suspensa duas vezes por fumar entre as aulas. Não conheço as fases do luto das quais tanto se falam por aí, mas lembro da autossabotagem de Lilith no resto daquele ano. Ela mal parava em casa, pelo que denunciavam suas redes sociais. Estava sempre em festas, rodeada de pessoas, mas sabe-se lá se realmente se sentia acolhida – com certeza era tudo superficial. E ela bebia, fumava, se metia em brigas... Na época, que foi o auge da irresponsabilidade e rebeldia de Lilith, nós acabamos nos afastando aos poucos, e eu me culpo. Qualquer pessoa decente estaria com sua amiga num momento delicado como o que se passou, mas eu aproveitei da indecência dos comportamentos de Lilith para me motivar a deixá-la. Para camuflar meus sentimentos especiais e traiçoeiros com uma raiva idiota.

           Com os tempos, eu já não sabia mais o que se passava com Lilith, mas parecia ser a única que percebia que ela ainda não estava bem; também sendo aquela que não a estendeu a mão em momento algum. Um ano depois, apesar de ainda nos falarmos, vez ou outra, já não éramos tão próximas. Foi no fim do ano, na festa de despedida do fundamental, que eu estraguei tudo.

           Lilith já não tinha ninguém.

           E foi esse assunto pelo qual minha mente viajou enquanto nós voltamos a traçar nosso caminho incerto pela floresta.

Eva & LilithOnde histórias criam vida. Descubra agora