Pombo-correio

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           Num reflexo, voltei a deixar as mochilas no chão e fui até a árvore que havíamos usado como esconderijo antes, passando a tentar ver o que Lilith estava fazendo

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           Num reflexo, voltei a deixar as mochilas no chão e fui até a árvore que havíamos usado como esconderijo antes, passando a tentar ver o que Lilith estava fazendo. Ela correu até o fundo de um dos carros dos caçadores, de modo que eles, os quais estavam à frente dos carros, conversando, não a vissem. De longe, eu conseguia ver o sorriso malicioso em seu rosto; Lilith tentava achar uma maneira de libertar os animais. Eu fiquei parada, observando-a.

          A menina foi correndo, em um momento, até o fundo do outro carro, cujo porta-malas estava aberto, e naquele segundo pude sentir meu coração errar algumas batidas. Se aqueles homens a vissem, com certeza não iriam ser misericordiosos.

           Eu estava tão, tão irritada! Realmente acreditei que alguma vez na vida Lilith iria me escutar e não agir na impulsividade. Acho que eu ficaria menos aflita se isso fosse algo novo, mas ela sempre foi assim. Sempre fez o que desse na telha no momento, sem se preocupar com o que viesse depois, e isso a trouxe problemas muitas vezes. Nos trouxe problemas.

           Houve uma vez, na escola, que eu sempre guardei comigo, que Lilith estava irritada por uma menina da nossa classe ter conseguido o papel que eu queria numa peça. A menina obviamente tinha comprado aquele lugar, todos sabiam, e eu me irritei, claro, mas não tinha nada que pudesse fazer, que quisesse fazer. Às vezes as pessoas têm que esquecer certas coisas, é o normal. Mas Lilith não aguentou aquilo, e no meio dos ensaios sabotou a performance da menina – molhou o palco por entre uma cena e outra, e a garota escorregou. Escorregou e caiu dali, necessitando levar cinco pontos na testa. Aquele foi o dia que eu mais fiquei brava com Lilith.

           Nunca descobriram que havia sido ela, mas suas ações fizeram a peça ser cancelada de última hora, como se ter machucado aquela garota não tivesse sido suficiente. E naquele momento, na floresta, ela estava prestes a machucar a si mesma, depois de ter me enganado, como me enganou ao dizer que esqueceria da peça.

           A vi colocar a mão dentro do porta-malas do carro, mexendo em alguma coisa. E então, segurou um macaquinho pequeno, tirando-o de lá e colocando-o no chão. O bicho saiu correndo, depressa. E ela fez isso com mais cinco daqueles. Os caçadores não haviam percebido de primeira.

           Mas então, como se não bastasse ser a salvadora dos micos, decidiu continuar com sua ideia maluca. Ela abriu uma gaiola com alguma espécie de pássaro, e no momento que o bicho gritou e saiu voando dali, os homens perceberam que algo de errado estava acontecendo. Errado para eles, claro. Para Lilith aquilo era maravilhoso, ela não pensava nos perigos que corria. Como sempre.

           Eu observei tudo de longe.

           Os caçadores não foram correndo até o fundo do carro; os vi fazerem gestos de silêncio e se aproximarem com cuidado, espalhando-se. Eu fiquei congelada. O que eu mais temia iria acontecer, eles iriam pegar Lilith. A garota estava distraída demais soltando mais macaquinhos e os abraçando, como se a vida sempre tivesse sido bela, como se não devesse nada a ninguém. A minha maior vontade era gritar-lhe o nome, chamar-lhe a atenção de qualquer forma, mas eu simplesmente não conseguia. Tinha medo.

            A medida que os homens se aproximavam, um deles sacava sua pistola; eu podia contar quatro caçadores, um armado.

            — Parado aí! — Um dos homens gritou, felizmente um dos que não estavam armados, ao chegar ao fundo do carro pelo qual Lilith estava sendo escondida (em pretérito).

            Lilith assustou-se, e pôs-se a correr para o lado oposto. No entanto, um dos homens logo brotou em sua frente, num salto. Meu coração quase saiu pela boca. Porém aquilo não pareceu afetar Lilith, que num carrinho conseguiu derrubar o homem e passar por ele. Lembrando agora, sinto vontade de começar a jogar futebol.

             O macaquinho que estava em seus braços já havia corrido há tempos, o último que teve essa oportunidade. E Lilith continuou a correr, sem adentrar a mata fechada – arrodeou o acampamento dos homens, creio que buscando começar a fugir quando estivesse no mesmo lugar que eu. E eu estava lá, parada, queria ajudar, pensara em como fazê-lo, mas me impedia. O mesmo hábito de Lilith de agir sem refletir que eu critico, naquele momento, teria sido extremamente útil.

            Sem mais delongas, sons como o que nós escutamos mais cedo, no rio, começaram a repetir-se, mais altos, mais próximos, mais assustadores. Os homens corriam e um tentava atirar em Lilith, mas eles não aparentavam ser pessoas atléticas como ela, pela graça do universo.

           Porém armas não pedem que seus portadores se aproximem de suas vítimas, e eu observei, atenta, cada levantar de terra a cada vez que uma bala era disparada ao chão próximo a Lilith, enquanto ela continuava correndo. O som dos disparos constantes foi, com toda certeza, o pior que já escutara em toda a minha vida. Eu não conseguia fazer nada, àquele ponto já não havia nada que eu pudesse ao menos tentar fazer.

            Quando Lilith já estava do mesmo lado do acampamento em que eu estava escondida, tentando me alcançar para corrermos juntas, eu finalmente acordei de meu transe. E quando ouvi os disparos se aproximarem, corri para apanhar nossas mochilas e tomei o caminho que tentara tomar antes de Lilith resolver ser a vingadora dos bichos.

            Não corro muito bem. E naquele momento de lucidez pós-transe tive a ideia de começar logo. Não é como se Lilith fosse me perder de vista. Sem olhar, percebi quando ela entrou na mata atrás de mim, também correndo, enquanto os disparos cessaram por poucos segundos – o que imaginei ter sido o tempo dos homens colocarem mais balas na arma. Eu corri como nunca houvera corrido em minha vida.

Eva & LilithOnde histórias criam vida. Descubra agora