A princípio, aquele era um dia normal como qualquer outro. Como de costume, Elliot acordou apressada, tomou um café ralo e vestiu as suas roupas largas, se preparando para mais um dia de trabalho. Estava quente, e as poucas nuvens apareciam timidamente, ocultadas pelo céu azul.
Tão ocupada com seus afazeres, sequer percebeu que, pouco a pouco, algo crescia em seus braços: aparentemente se tratava de alguns pelos amarelos. Com agilidade, pegou uma tesoura e, rapidamente, cortou esses pequenos incômodos em seu corpo.
Antes de sair, porém, trocou meias palavras com seu filho Arthur, que bebia o seu café enquanto saboreava um exemplar barato de algum livro infanto juvenil.
– Mãe – chamou Arthur, olhando fixamente para Elliot – A sua voz está estranha.
Como assim? O que ele queria dizer? Não fazia sentido. Ele devia estar imaginando alguma coisa. Sem prestar muita atenção, Elliot chamou Arthur para o carro para levá-lo à escola. Resmungando meias palavras, o garoto aceitou.
No caminho, Elliot não deixou de notar como suas unhas estavam ficando mais afiadas. Incomodada com isso, não pôde deixar de pensar que deveria tê-las cortado mais cedo. Agora, porém, já era tarde, tendo em vista que ela tinha que chegar ao trabalho o mais cedo possível.
Mas não havia tempo. Elliot tinha que cumprir com seu ofício. Hoje teria dar aula sobre aquecimento global para o nono ano, citologia para o segundo e ecologia – sua matéria preferida – para o sétimo. Quando chegasse em casa, teria que corrigir provas e preparar as aulas para o dia seguinte. Estava muito ocupada e, por mais que não admitisse, gostava muito disso.
O trajeto foi bastante rápido. Elliot dirigia de maneira estranhamente veloz; não tinha medo algum de provocar algum acidente. Já tinha feito aquele percurso tantas vezes que praticamente sabia de cor todas as ruas e os endereços. Sequer precisava de GPS. De algum modo, nunca levava multas, embora frequentemente fosse xingada pelos motoristas.
Antes de chegar à escola onde trabalhava, Elliot deixou seu filho no ponto de ônibus. De lá, iria para a escola. Já com 13 anos, ele podia – e devia – muito bem se virar sozinho. Deu-lhe um beijinho no rosto.
– Mãe, você está com um bafo muito forte!
Arthur provavelmente não estava bem. Não era a primeira vez que ele falava alguma bobagem para ela. Ah, a adolescência... Disso bem sabia Elliot. Nessa fase, nada mais natural do que agir assim.
Quando chegou ao portão da escola, Elliot não deixou de notar como estava encurvada. Por algum motivo, não conseguia manter a postura ereta. "Preciso ir ao médico", pensou. Meio cambaleante, ela chegou no sétimo ano onde daria ecologia.
– Tia, por que você veio fantasiada? – perguntou um dos alunos – Não estamos no carnaval.
– Acho que é uma aula temática – replicou outro aluno – Afinal de contas, hoje vamos aprender sobre o meio ambiente, não é mesmo?
Em poucos instantes, se formou uma algazarra na sala. Todos queriam saber o que havia de errado com a professora.
– Silêncio! – gritou Elliot – Eu estou doente. Vou ao médico assim que acabar a aula.
Todos se calaram. Em seguida, Elliot falou sobre onças-pintadas na Amazônica brasileira. Descreveu seu habitat, seu sistema reprodutivo e também avisou que estavam em extinção. Era provável que, se nada fosse feito, elas desaparecessem em poucas gerações.
Depois da aula, Elliot pegou o carro para ir ao médico. Ela não podia deixar aquela doença afetar a sua profissão daquela forma. Tinha que tomar uma atitude. Ela só esperava, no fundo, que a consulta não fosse muito cara, pois ainda não tinha recebido o salário do fim do mês.
Mesmo com um pouco de insegurança, Elliot ligou para Mário, seu marido, que, provavelmente, também estava trabalhando. Depois de explicar-lhe toda a situação, ele prometeu levá-la ao médico.
Enquanto isso, Elliot já podia perceber os olhares estranhos e os comentários engraçadinhos de todos ao redor dela. As pessoas a observavam como se fosse um bicho estranho, um animal feroz em extinção.
Cada vez mais enjoada, sentia, por alguma razão, uma estranha vontade de comer carne. Imaginou, com sua grande imaginação, um churrasco suculento servido na brasa. Porém, buscou ignorar tais devaneios.
Cansada, sentou em um banco na calçada. Tentou imaginar por que estava assim. Será que tinha comido algo estragado? Tinha sido picada por algum mosquito? Ainda que bióloga, não conseguia compreender o que estava acontecendo em seu próprio corpo.
Mário foi logo buscá-la de carro na escola. Preocupado, ele tinha lhe trazido alguns biscoitos cream crack, sua comida favorita, que Elliot prontamente recusou.
– O que está acontecendo, amor?
– Não sei. Não faço ideia. Nem tenho como saber. Simplesmente acordei mal. Sinto que vou morrer – pronunciou essas frases uma atrás da outra. Muito rapidamente. Mal parou para respirar.
Mário avisou-lhe que tudo ia ficar bem, mas, no fundo, ele mesmo tinha suas dúvidas quanto a isso.
Elliot passou a expelir um líquido verde e impossível de identificar. Não era vômito. De tom viscoso, aquilo não parecia ter vindo de seu próprio corpo. De algum modo, se assemelhava a algum tipo de licor alienígena.
Algum tempo depois, Elliot não conseguia mais falar nada. Ao contrário, grunhia, produzindo alguns ganidos estranhos e impossíveis de se reconhecer. Pouco a pouco, perdeu sua forma humana e transformou-se em um animal selvagem.
Já incapaz de raciocinar, avançou completamente sobre seu marido e mordeu-lhe no pescoço. Assim, naquele final de tarde ensolarado de uma quinta feira de setembro, Elliot se viu transformada em uma onça-pintada amazônica.
O final do destino de Elliot, que sequer podia ser chamada assim agora, também não podia ser mais trágico. Sabendo que um animal selvagem percorria as ruas, a polícia automaticamente cumpriu seu papel: levou-a de volta para seu zoológico.
Enjaulada, a onça Elliot foi muito bem tratada – tão bem quanto um animal poderia ser. Na maior parte do dia, Elliot comia com os dentes, bebia água ferozmente e rosnava para qualquer um que chegasse perto.
De vez em quando, porém, um lampejo de humanidade lhe passava por seu cérebro diminuto. Durante um breve instante, o animal se recordava de seu passado e, de algum modo, algum sentimento e emoção humana corriam por seu coração selvagem. Alguns segundos depois, no entanto, tudo isso desaparecia, e Elliot voltava a ser o bicho que se tornara.
As pessoas que observavam Elliot sequer conseguiam imaginar seu trágico passado. Porém, esse narrador que vos fala sabe bem que por trás de cada homem existe um animal e, paralelamente, por trás de cada animal existe um homem.
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Contos fantásticos
Truyện NgắnExperimente nessas páginas histórias que não passam no mundo real. A maioria delas passam em uma época distante da nossa, embora não seja especificado quando. Aqui você encontrará todo tipo de ser mágico, bem como várias sociedades ficcionais. Seja...