Àquela altura Daren não podia mais lembrar de coisa alguma. Dias sem ver a luz do sol transformaram aquele ser alegre e sorridente em uma criatura tristonha, amedrontada e acuada. A cada chute, soco e arranhão Daren perdia um pouco de vida. A cada insulto recebido pelos Homens de Cinza ela deixava para trás sua esperança de um dia voltar à normalidade. Era isso que eles queriam: que aos poucos ela perdesse a esperança de seguir adiante.
Mas Daren não desistiria nunca. Enquanto tivesse uma família, tentaria arduamente sair daquele lugar, pois sabia que quando conseguisse, seu pai lhe daria um beijo no rosto e sua mãe faria o almoço que ela mais ama. Mas por enquanto tinha que arrumar um jeito de fugir.
Olhou ao redor. Ao seu lado as crianças tremiam de medo. Estava em um porão escuro com apenas uma janela. Os presos precisavam de um pouco de ar para que não morressem antes de chegar ao destino final. Antes que pudesse dizer algo um dos Homens de Cinza murmurou algo em seu dialeto incompreensível. Ele pegou um chicote e açoitou Daren nas costas. Ela gritou de dor.
- Fique calma. Eles pegam os mais fortes. - disse uma pequena criança encolhida.
- Quem é você? - perguntou Daren, intrigada.
- Sou Akin. Os Homens de Cinza me pegaram enquanto eu buscava água no rio. Desde então tenho vivido muitos pesadelos.
Daren se lembrou que não podia se mover. Enrolado sob seus pés havia uma tornozeleira de ferro muito pesada. Sendo que já havia dois dias que não recebia comida nem água, a jovem esbelta de cabelos escuros pouco a pouco perdia seu brilho. Abriu a boca para implorar por um pouco de suprimentos, mas Akin a interrompeu:
- Fique quieta! Se você pedir, eles não te darão. Os Homens de Cinza gostam de ver nosso sofrimento. Nos dão água e comida apenas quando estamos quase morrendo. Eles sabem muito bem que se estivermos mal nutridos, não teremos condições de nos revoltar. Covardemente nos matam de fome e frio antes que sequer possamos dizer o quanto são estúpidos.
Sentindo a tontura do navio, Daren quase havia esquecido de que estava em alto mar. Dentro do porão não havia luz, mas a cada onda e solavanco do barco se lembrava de que estavam muito longe de casa. Nas poucas vezes que espiava pela janelinha do porão (quando não estava acorrentada) via apenas o azul do oceano. Observou como aquele céu era belo e poético. Se estivesse do lado de cima do navio, apreciaria o nascer e o pôr do sol todas manhãs e tardes. Daren se recordou de quando era uma criança e se questionava sobre o que haveria do outro lado do mar. Agora que estava prestes a descobrir a jovem quis nunca ter sonhado com aquilo.
- Precisamos encontrar uma maneira de sair daqui, Akin. - disse Daren.
- Não será possível. Qualquer tentativa de fuga será duramente reprimida. A nossa maior resistência é por meio do trabalho. Se fizermos exatamente o que eles pedirem, talvez gostem da gente e nos libertem.
Daren quase não podia acreditar no que ouvia. Akin, na sua subserviência, aceitaria tudo de mal que os Homens de Cinza iriam fazer com ela na esperança de que um dia tivessem misericórdia e a libertassem. Mas Daren sabia muito bem que Akin estava errada. Ela seria explorada até a morte e a largariam quando não tivesse mais utilidade.
Enquanto observava o porão sujo e fedorento, Daren pensava no futuro promissor que teria se tivesse ficado na sua terra natal. Se casaria, teria filhos e se divertiria conversando com os outros jovens da aldeia. Mas agora estava presa em um sótão imundo com outras dezenas de jovens que, como ela, tinham perdido a própria vida. Alguns pensamentos poderiam vir a sua mente, mas o cheiro de suor, mijo e fezes a impedia de raciocinar direito.
Em pouco tempo Akin e Daren se tornaram amigas. Conversavam baixinho para não serem escutadas pelos Homens de Cinza, mas, com nostalgia e muita ambição, faziam planos para quando tudo aquilo acabasse. Falavam a mesma língua, ao contrário da maioria dos capturados no navio, o que permitia que se comunicassem e se entendessem.
Akin e Daren, negras e de cabelo encaracolado, eram belas ao olhar dos Homens de Cinza, brancos e de cabelo liso. Apesar de não serem mais do que adolescentes, ambas atraiam o olhar dos homens no navio. Graças ao calor do porão, todos dormiam amontoados e seminus, o que fazia com que as meninas estivessem sempre vigilantes quanto ao próprio corpo.
- É necessário que tentemos alguma coisa, Akin. Não podemos ficar paradas apenas deixando nos matarem aos poucos. Precisamos resistir e lutar. - disse Daren um dia quando os insultos dos Homens de Cinza haviam sido fortes demais.
- O que poderemos fazer, Daren? Já disse que resistir é inútil. O que podemos fazer é esperar a misericórida divina. Estes homens pagarão no céu pelo que estão fazendo conosco. - respondeu Akin.
- Podemos organizar um motim. - disse Daren
- Um motim? Você acha que eles são burros? Estão munidos de armas pesadas e fariam picadinho de nós duas. - indagou Akin, relutante.
- Há uma alternativa, minha cara amiga. De madrugada, quando todos estiverem dormindo, subirei para o convés, colocarei um pouco de veneno na bebida do capitão dos Homens de Cinza. Eu percebi que eles deixam a estotilha entreaberta. Na minha aldeia eu era amiga de uma curandeira que sabia como usar ervas para matar. Por segurança eu guardei algumas delas para quando precisasse. - Daren mostrou algumas folhas amassadas que guardava no bolso da roupa.
- E quando eles procurarem o culpado? - Akin tentava a qualquer custo convencer a amiga a não cometer o crime.
- A partir daí o navio estará um caos. Eu levantarei e direi a todos que fui eu que fiz tal ato. Todos os outros povos me tomarão como heroína e eu convencerei cada um a realizar o motim. Funcionará assim: quando for para o convés, pegarei a chave que prende o nosso povo. Em seguida, libertarei cada um dos prisioneiros deste barco. As pessoas anseiam por liberdade e libertá-las me dará poder, transformando-me na líder do navio - Daren deu boa noite a Akin e foi dormir.
Dito e feito. No dia seguinte Daren, que não havia dormido na noite anterior, levantou-se sorrateiramente para ir até o convés. Os Homens de Cinza, desatentos, haviam esquecido de prendê-la, permitindo que ela executasse seu plano diabólico. Conforme previsto, a escotilha estava aberta.
Naquela noite o céu brilhava como nunca. Daren sonhava com a liberdade e com o que a esperaria na volta para casa. Mal podia acreditar em como havia sido fácil fugir. Os Homens de Cinza eram realmente estúpidos.
- Parada! Coloque essas folhas no chão agora mesmo! - disse um dos Homens de Cinza.
Chocada ao saber que sua tentativa de homícidio fora descoberta, Daren obedeceu imediatamente.
- Akin me contou exatamente o que você planejava fazer. O que você fez é muito feio, Daren. Logo nós, que tentamos te proteger e cuidamos de você com o maior carinho. Você sabe que só queremos o seu bem. - disse o capitão do navio - Pois bem. Agora você irá comer essas plantas. Não deixe escapar nenhum pedacinho.
Daren não conseguia acreditar no que ouvia.
- Akin, em recompensa de sua honestidade, será promovida a tripulante do navio. Ela se tornará a primeira Mulher de Cinza e viverá aqui em cima do convés.
Daren morreu agonizando dias depois sem se arrepender nem por um segundo do que havia feito.
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Contos fantásticos
Historia CortaExperimente nessas páginas histórias que não passam no mundo real. A maioria delas passam em uma época distante da nossa, embora não seja especificado quando. Aqui você encontrará todo tipo de ser mágico, bem como várias sociedades ficcionais. Seja...