Cinco

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Inglaterra, 14/08/1827.

Já tem dias que estou aqui. Quatro dias em 1827 e ainda não consegui voltar. Tem algo errado com aquele maldito espelho, não sei mais o que fazer. Passo todo o meu tempo livre o encarando, essas pessoas devem achar que sou narcisista ou doida.

Estou sempre o tocando, mas ele nunca reage ao meu toque. Aposto que as criadas me odeiam, elas sempre têm que limpá-lo várias vezes, pois minhas mãos sempre deixam marcas.

As vezes eu acho que nunca vou voltar. Já deveria ter acontecido em um momento, não? Estou tão frustrada. Juro que as vezes penso que deveria só me jogar nesse espelho infernal, mas eu provavelmente só me machucaria e acabaria quebrando-o. Acho que se ele quebrasse, minha chance de voltar para casa se quebraria também.

Não posso ficar presa aqui para sempre!

Eu estou tão concentrada em me martirizar e em tocar o espelho que nem percebo que estou sendo observada, só noto quando ele faz um movimento que faz a madeira ranger.

— O que você tanto olha nesse espelho? — William pergunta e eu me viro para ele.

— Nada.

— Decerto que algo a senhorita faz, ninguém passa tanto tempo encarando algo assim.

— Vai ver eu só seja narcisista — digo e sorrio para ele.

William sorri de volta para mim, o que é muito estranho já que ele não é lá muito amigável.

— Narciso morreu afogado tentando tocar sua própria imagem, a senhorita tem sorte de estar se vendo refletida em um espelho, não na água.

Eu bufo. Imagino que damas da sociedade londrina não andam por ai bufando, porque William me olha intrigado.

— Preciso de uma bebida — murmuro, não era para ele escutar, mas acho que escuta.

— Perdão?

Será que seria muito desrespeitoso se eu fosse em algum bar? Certamente existe algum, sempre tem um bar onde os cavalheiros se reúnem nos romances de época. Mas, nos livros que leio, nunca há nenhuma mulher, tirando as prostitutas.

Melhor não arriscar me aventurar por esses ambientes, se no século XXI os homens já não nos respeitam, não quero nem saber o achariam que tem o direito de fazer comigo no século XIX.

Mas eu preciso mesmo de algo mais forte que chá ou leite. Em casa eu sempre tinha um vinho barato de supermercado na despensa, usava em momentos críticos. E esse definitivamente é um momento muito crítico.

— Você escutou muito bem — afirmo.

— Escutei.

— E então?

— Minha mãe não aprovaria.

Ando lentamente até ele, ainda não me acostumei com o vestido e com o sapato. Deus, como eu queria poder usar meu tênis. Quando chego em William sorrio da maneira mais doce que consigo enquanto ajeito seu terno.

— Mas você é o visconde. E esse pode ser o nosso segredo, prometo que não conto para ninguém.

Eu descobri seu título dois dias atrás, eles não falam muito disso. E eu só descobri porque ouvi algumas criadas falando sobre o visconde St. Clair, depois disso eu me toquei que só podiam estar falando de William. Aposto que todas as mães da sociedade estão doidas para que suas filhas se casem com ele.

Por alguma razão que desconheço, William cede. Ele pede que eu acompanhe até seu escritório e eu vou. Nem quando eu era adolescente foi tão difícil assim conseguir bebida alcoólica.

Seu escritório é grande, possui um sofá, uma mesa, algumas cadeiras, uma estante cheia de livros e uma ou outra pintura na parede. Me pergunto se as vezes, quando ele está muito cansado, tira um cochilo no sofá, não parece ser muito confortável. A mesa está bagunçada, cheia de papéis espalhados. É engraçado, porque na minha cabeça William era o rei da organização, ele é sempre tão arrumadinho e pontual.

Estou ocupada demais observando o escritório para notar de onde William tirou os copos e uma garrafa com um líquido escuro. Isso é muito mais caro que meu vinho de supermercado e aposto que é muito mais forte também.

Me sento em uma das cadeiras de uma forma que uma dama da alta sociedade jamais faria, enquanto me observa ele coloca a bebida nos copos, mas não me entrega nenhum deles.

— Eu te dou quando você me contar — William diz e se senta na cadeira do outro lado da mesa, agora parece que estamos em uma reunião de negócios.

— Contar o quê? — Pergunto me fazendo de inocente.

— Eu não sei. Mas sei que está escondendo algo.

Resisto ao impulso de mentir. Minha investigação não está indo para lugar algum, eu não tenho meios para pesquisar e não posso sair por ai perguntando para as pessoas, então talvez William possa me ajudar. Ele é um homem em um mundo muito machista, tem passe livre para fazer qualquer coisa.

— Eu não sou daqui — digo.

— Sim, é do Império do Brasil. Minha irmã me contou.

— É, só que na minha época o Brasil não é mais nenhum Império, é uma República desde 1889.

William me encara confuso, ele deve achar que estou brincando com a cara dele. Totalmente compreensível, já que estou falando de algo que ainda não aconteceu. Talvez eu tenha escolhido o método errado para contar, eu devia ter ido com mais calma.

— Escuta — me ajeito na cadeira. — Quando eu disse que não era daqui, eu quis dizer que não sou dessa época. Eu nasci em 1998, tenho vinte e um anos.

— Isso é impossível. Se você tem vinte e um anos, quer dizer que você é de 2019.

Assinto, acho que ele está entendendo.

— Eu também achava, mas aqui estou eu em 1827

— Isso é uma brincadeira? — Ele pergunta.

É uma história muito difícil de se acreditar, mas mesmo assim eu conto para ele. Já comecei, não posso mais voltar atrás. Conto que em um sábado eu fui em uma loja de antiguidades comprar alguns objetos, conto da senhora que leu minha mão e conto do espelho, conto como foi lá dentro e como do nada apareci aqui.

A essa altura eu já bebi o que William tinha colocado no meu copo e ele também já bebeu o conteúdo do dele.

— Eu acho melhor chamar o doutor — William diz, já se levantando.

Eu seguro em sua mão para impedi-lo. Claro, ele poderia se livrar fácil do meu toque, mas não o faz. Na verdade até volta a sentar e mesmo assim eu não solto sua mão. Será que isso é algo muito indecoroso nessa época? Acho que sim, mas não me afasto.

— Eu não sou doida, William.

— Mas está parecendo.

Penso em uma forma de convencê-lo, ele não pode achar que sou doida. Não sei o que eles fazem com as pessoas que estão fora do padrão na Inglaterra e não quero descobrir.

Preciso pensar em algo rápido, algo que o convença, algo que o faça acreditar. E então é como se uma lâmpada se ascendesse, eu me lembro de algo. Dia dezessete de agosto de 1827.

— Daqui três dias, no dia dezessete, vai ser ratificado o trabalho de amizade, navegação e comércio entre o Império do Brasil, o Reino Unido da Grã-Bretanha e a Irlanda! — Digo rápido, mas depois explico devagar. — É um tratado de comércio e navegação, vai ficar conhecido como Carta de Lei de 17 de Agosto de 1827.

— Como eu posso ter certeza que você não está inventando?

Juro que tenho que me segurar muito para não xingá-lo, só não o faço porque ele teria certeza que sou louca, por isso me contento apenas com um dar de ombros.

— Você tem que esperar e confiar em mim.

Através do Espelho (COMPLETA)Onde histórias criam vida. Descubra agora