Capítulo 6: Aspirinas, balas e trigos

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Pelo teto transparente da biblioteca era possível se ver a escuridão negra do céu e os diversos pontos brilhantes que só apareciam durante a noite. O frio do lado de fora nublava as vidraças e parecia se tornar mais denso a cada minuto que avançava no ponteiro do relógio.

Sentado sobre o chão de madeira em frente a lareira e enrolado em uma manta felpuda estava o pequeno calendo, Kyle Brofrovski. Na verdade, Kyle não era mais tão pequeno assim; seus treze anos eram marcados por estirões de altura, aparecimento de diversas acnes na face e óculos de armações negras e pesadas cobrindo grande parte de seu rosto e roubando a atenção que seus olhos verdes mereciam.

Resumindo: ele não era mais uma doce e fofa criança que estava na fase de perder dentes e que andava por aí com olhos brilhantes e esperançosos.

Cinco anos haviam se passado desde que visitamos a infância de nosso protagonista, não é, leitor? Sua aparência estava diferente, sua esperança estava diferente e até sua forma de enxergar o Natal estava caminhando para se tornar algo totalmente divergente do que seu "eu" infantil imaginava; a única coisa que permaneceu sendo compartilhada entre os dois Kyles nesse tempo foi o fato de que o sardento continuava sozinho e sem amigos.

Ia para a escola sozinho, assistia as aulas sozinho, passava o intervalo sozinho, voltava para casa sozinho e passava as tardes sozinho na biblioteca. Às vezes, se desse sorte, Tammy aparecia para fazer faxina enquanto estava lá, mas no geral todas as horas de seu dia acompanhavam uma mórbida solidão.

Quando se cansava de ler, o ruivo ia até a janela que dava para a rua e observava os transeuntes irem e virem. Casais que andavam de mãos dadas, crianças que passavam rindo e jovens cujas vozes soavam tão alto que mesmo do terceiro andar do casarão era possível saber sobre o que falavam. Kyle não fazia parte de nenhum deles, mas se desejava isso? Ah, como desejava... Seu pobre coração natalino se partia sempre que assistia as cenas e lembrava de que não tinha ninguém com quem pudesse repeti-las.

Ou quase ninguém.

Seu pai e sua mãe não faziam questão de lhe fazerem companhia, por isso mal os via, mas uma das pessoas de sua casa, sempre que podia, aparecia com olhos brilhantes e sorriso largo para ter um pouco da atenção de Kyle.

Ike Broflovski era o irmão mais novo do ruivo, um dos poucos (se não o único) que não deixava a aparência esquisita da fase da adolescência do sardento influenciar seus pensamentos sobre o mesmo; para o irmãozinho, Kyle era admirável e super legal. A criança de oito anos estudava período integral, mas sempre que chegava em casa procurava pelo ruivo para contar o que tinha aprendido, esperando receber elogios daquele que ele considerava "o mais inteligente de todos os irmãos".

Mas voltando para aquela noite... Estava extremamente frio, mas o jovem calendo parecia não ser atingido pois estava vestindo um grosso pijama xadrez, enrolado em sua mais macia coberta e de frente para a lareira que permanecia acesa.

Sobre as pernas cruzadas estava o livro "Condutas de condutores: O básico para a excelência", leitura básica (de acordo com seu pai) para os membros da família Broflovski. Os olhos verdes estavam compenetrados nas páginas amareladas do livro que havia encontrado em sua biblioteca particular quando uma vozinha fina o tirou da imersão literária:

-Kyle...

O sardento ergueu o olhar e encontrou, parado por trás do batente da porta, o pequeno corpo de seu irmão mais novo; a carinha amassada de sono e a mantinha que era segurada pelas pequenas mãos denunciavam que ele havia acabado de sair da cama.

-Ike, o que está fazendo acordado essa hora? -O mais velho perguntou depois de ver o horário marcado no relógio da parede.

-Eu acho que tem algum monstro embaixo da minha cama. -Disse o mais novo.

Resgate de Páscoa -SP StyleOnde histórias criam vida. Descubra agora