CAPÍTULO XI

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Naquele dia fazia anos Estácio, e D. Úrsula assentara receber algumas
pessoas a jantar, e outras mais à noite, em reunião íntima. Ela e
Helena tomavam a peito fazer que a pequena festa de família fosse
digna do objeto. Estácio opinou pela supressão do sarau; mas era
difícil alcançar a desistência de corações que o amavam.

Logo de manhã, como ele se levantasse cedo, encontrou Helena que o
convidou a segui-la à sala de costura.

— Quero dar-lhe o meu presente de anos, disse ela.

Ali entrados, abriu a moça uma pasta de desenhos, na qual havia um
só, mas significativo: era uma parte da estrada de Andaraí, a mesma
por onde eles costumavam passear, mas com algumas particularidades
do primeiro dia. Dois cavaleiros, ele e ela, iam subindo a passo lento;
ao longe, e acima via-se a velha casa da bandeira azul; no primeiro
plano,desciam o preto e as mulas. Por baixo do desenho uma data: 25
de julho de 1850.

Estácio não pôde conter um gesto de admiração, quando a moça
retirou de cima do desenho a folha de papel de seda que o cobria.
Apertou a mão de Helena e examinou o trabalho. Notou a firmeza das
linhas, a exação das circunstâncias locais, as impressões de uma hora
fugitiva que o lápis da irmã tivera a arte de fixar no papel.

— Não podia fazer-me presente melhor, disse ele; dá-me uma parte
de si mesma, um fruto de seu espírito. E que fruto! Não há muita
moça que desenhe assim. Era talvez por isso que você saía algumas
vezes sozinha com o pajem?

Estácio contemplou ainda instantes o desenho; depois levou-o aos
lábios. O beijo acertou de cair na cabeça da cavaleira. Foi o original
que corou.

— Andavam a gabar os meus talentos, disse Helena após um instante;
tive a vaidade de dar uma pequena amostra...

— Excelente amostra! Não acha, titia? disse o moço a D. Úrsula, que
nesse instante aparecera à porta, trazendo o seu presente, numa
bocetinha de joalheiro.

D. Úrsula não tinha, decerto, o instinto da arte; mas o amor da família
lhe ensinara uma estética do coração, e essa bastou a fazê-la admirar
o trabalho de Helena.

— Mas que digo eu todos os dias? exclamou D. Úrsula. Esta pequena
sabe tudo!

— Quase tudo, emendou Helena; ignoro, por exemplo, como lhes hei
de agradecer...

— O quê, tontinha? interrompeu a tia. Algum disparate, naturalmente,
impróprio em qualquer dia, mas muito mais ainda no dia de hoje.

Enquanto as duas senhoras foram tratar das disposições do dia,
Estácio mandou selar o cavalo e saiu. Queria comparar ainda uma vez
o desenho de Helena com o sítio copiado. A fidelidade era completa, e
o quadro seria absolutamente o mesmo, se se dessem algumas
circunstâncias da primeira ocasião. Helena não ia ao lado dele; mas a
vinte braças de distância flutuava a bandeira azul da casa do alpendre.
Estácio afrouxou o passo do cavalo, como saboreando as recordações
da primeira manhã, quando Helena se lhe mostrara tão singularmente
comovida. Volveu a refletir na situação dela, e na paixão que lhe
confessara, dias antes, com tamanha veemência. Se se tratava de
uma felicidade possível, embora difícil, Estácio prometeu a si mesmo
alcançar-lha. Não era isso servir o sangue do seu sangue?

A casa do alpendre, até ali indiferente a Estácio, criava agora para ele
um interesse especial. À medida que se aproximava, ia achando no
edifício a fiel reprodução do desenho. Este não apresentava todas as
particularidades da vetustez; mas continha as mesmas disposições
exteriores, como se fora feito diante do original.

A uma das janelas estava um homem, com a cabeça inclinada, atento
a ler o livro que tinha sobre o peitoril. Nessa atitude não era fácil
examiná-lo; afigurava-se, entretanto, uma criatura máscula e bela. A
duas braças de distância, o indivíduo levantou a cabeça, e cravou em
Estácio um par de olhos grandes e serenos; imediatamente os retirou,
baixando-os ao livro.

— Mal sabes tu, filósofo matinal, disse Estácio consigo, mal sabes tu
que a tua casa teve a honra de ser reproduzida pela mais bela mão do
mundo!

O filósofo continuou a ler, e o cavalo continuou a andar. Quando
Estácio regressou daí a alguns minutos, achou somente a casa; o
morador desaparecera; circunstância indiferente, que escapou de todo
à atenção do moço. Nem ele pensava mais naquilo; o espírito trotava
largo, à inglesa, como o ginete, e ambos bebiam o ar, como ansiosos
de chegar ao ponto da partida.

Machado de Assis - HelenaOnde histórias criam vida. Descubra agora