CAPÍTULO XXV

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— A mãe de Helena, disse Salvador, cuja beleza foi a causa, a um
tempo, da sua má e boa fortuna, era filha de um nobre lavrador do Rio
Grande do Sul, onde também nasci. Apaixonamo-nos um pelo outro.
Meu pai opôs-se ao casamento; tinha alguns bens, mandara-me
estudar, queria ver-me em posição brilhante. Ângela podia ser
obstáculo à minha carreira, dizia ele. Opôs-se, e eu resisti; raptei-a;
fomos viver na campanha oriental, donde passamos a Montevidéu, e
mais tarde ao Rio de Janeiro. Tinha vinte anos quando deixei a casa
paterna; possuía alguns estudos, poucos, meia dúzia de patacões,
muito amor e muita esperança. Era de sobra para a minha idade, mas
insuficiente para o meu futuro. A lua-de-mel foi desde logo uma noite
de privações e trabalhos. Minha vida começou a ser um mosaico de
profissões; aqui onde me vêem, fui mascate, agente do foro, guardalivros,
lavrador, operário, estalajadeiro, escrevente de cartório;
algumas semanas vivi de tirar cópias de peças e papéis para teatro.
Trabalhava com energia, mas a fortuna não correspondia à constância,
e o melhor dos anos gastei-o em luta áspera e desigual. Uma
compensação havia, a mais doce de todas: era o amor e o
contentamento de Ângela, a igualdade do ânimo com que ela encarava
todas as vicissitudes. Pouco tempo depois da nossa fuga, havia outra
compensação mais: era Helena. Essa menina nasceu em um dos
momentos mais tristes da minha vida. Os primeiros caldos da mãe
foram obtidos por favor de uma mulher da vizinhança. Mas nasceu em
boa hora, e foi um laço mais que nos prendeu um ao outro. A presença
de um ente novo, sangue do meu sangue, fez-me redobrar de energia.
Trabalhava com alma, lutava resoluto contra todas as forças adversas,
certo de encontrar à noite a solicitude da mãe e as ingênuas carícias
da filha. Os senhores não são pais; não podem avaliar a força que
possui o sorriso de uma filha para dissolver todas as tristezas
acumuladas na fronte de um homem. Muita vez, quando o trabalho me
tomava parte da noite, e eu, apesar de robusto, me sentia cansado,
erguia-me, ia ao berço de Helena, contemplava-a um instante e
parecia cobrar forças novas. Se o próprio berço era obra de minhas
mãos! Fabriquei-o de alguns sarrafos de pinho velho; obra grosseira e
sublime; servia a adormecer metade da minha felicidade na Terra.

Salvador interrompeu-se comovido.

— Perdoem-me, continuou ele, depois de alguns instantes, se estas
memórias me abalam o coração. Eu era pobre, tão pobre como hoje.
Desse tempo só resta um eco doloroso e consolador. Crescia Helena e
cresciam suas graças. Era o encanto e a esperança do meu albergue.
Quando pode aprender os rudimentos da leitura, dei-lhe as primeiras
lições; assisti pasmado à aurora daquela inteligência que os senhores
vêem hoje tão desenvolvida e lúcida. Aprendia com facilidade, porque   estudava com amor. Ângela e eu construíamos os mais lindos castelos
do mundo. Nós a víamos já mulher, formosa como viria a ser, porque
já o era, inteligente e prendada, esposa de algum homem que a
adorasse e elevasse. Vivíamos dessa antecipação, que era apenas um
sonho, e não sentíamos os golpes da fortuna.

— Por que razão, perguntou Melchior, dado esse amor e nascida uma
filha, não santificou o senhor a situação em que se achavam?

— A curiosidade é justa, replicou Salvador, mas a resposta é decisiva.
Casar era a nossa justificação; era um argumento contra o
ressentimento de meu pai. Nos primeiros dias da nossa fuga do Rio
Grande, a própria embriaguez da felicidade desviou qualquer idéia de
santificar e legalizar uma união consentida pela natureza. Depois
vieram os trabalhos e as necessidades. Como eu tinha certeza de não
fugir ao dever que tomara em meus ombros, ia adiando o ato de mês
para mês, de ano para ano. Afinal o projeto esvaiu-se de todo.
Estávamos ligados pela miséria e pelo coração, não pretendíamos o
respeito da sociedade; triste desculpa; e ainda mais triste recordação,
porque o casamento teria talvez obstado os acontecimentos
posteriores. Helena contava seis anos. Minha fortuna, adversa sempre,
com intermitências favoráveis, parecia abrandar um pouco. Ia encetar
um novo meio de vida, quando uma circunstância grave me chamou
ao Rio Grande. Meu pai adoecera; mandava-me o seu perdão,
ordenando-me que o fosse ver sem demora. Obedeci prontamente. Do
que ele me remeteu para as despesas de viagem e outras, deixei
alguma coisa a Ângela e Helena, e parti. Vinte e quatro horas depois
de ver meu pai, tive a dor de o perder. A liquidação dos negócios foi
curta; os bens todos ficaram pertencendo aos credores; restavam-me
alguns patacões. Recebi esse golpe novo com a filosofia da
insensibilidade. Quem sabe se não era eu o culpado do acontecimento?
Os negócios entretanto, apesar de curtos, demoraram-me mais do que
eu pretendia e convinha. A ânsia de voltar cresceu, desde que não
recebi a resposta das últimas cartas que escrevi a Ângela. Enfim, pude
regressar ao Rio de Janeiro com um luto mais e uma esperança a
menos. Neste ponto entra a pessoa de seu pai.

Machado de Assis - HelenaOnde histórias criam vida. Descubra agora