CAPÍTULO IV

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As primeiras semanas correram sem nenhum sucesso notável, mas
ainda assim interessantes. Era, por assim dizer, um tempo de espera,
de hesitação, de observação recíproca, um tatear de caracteres, em
que de uma e de outra parte procuravam conhecer o terreno e tomar
posição. O próprio Estácio, não obstante a primeira impressão,
recolhera-se a prudente reserva, de que o arrancou aos poucos o
procedimento de Helena.

Helena tinha os predicados próprios a captar a confiança e a afeição da
família. Era dócil, afável, inteligente. Não eram estes, contudo, nem
ainda a beleza, os seus dotes por excelência eficazes. O que a tornava
superior e lhe dava probabilidade de triunfo, era a arte de acomodarse
às circunstâncias do momento e a toda a casta de espíritos, arte
preciosa, que faz hábeis os homens e estimáveis as mulheres. Helena
praticava de livros ou de alfinetes, de bailes ou de arranjos de casa,
com igual interesse e gosto, frívola com os frívolos, grave com os que
o eram, atenciosa e ouvida, sem entono nem vulgaridade. Havia nela a jovialidade da menina e a compostura da mulher feita, um acordo de
virtudes domésticas e maneiras elegantes.

Além das qualidades naturais, possuía Helena algumas prendas de
sociedade, que a tornavam aceita a todos, e mudaram em parte o teor
da vida da família. Não falo da magnífica voz de contralto, nem da
correção com que sabia usar dela, porque ainda então, estando fresca
a memória do conselheiro, não tivera ocasião de fazer-se ouvir. Era
pianista distinta, sabia desenho, falava correntemente a língua
francesa, um pouco a inglesa e a italiana. Entendia de costura e
bordados e toda a sorte de trabalhos feminis. Conversava com graça e
lia admiravelmente. Mediante os seus recursos, e muita paciência, arte
e resignação, — não humilde, mas digna, — conseguia polir os
ásperos, atrair os indiferentes e domar os hostis.

Pouco havia ganho no espírito de D. Úrsula; mas a repulsa desta já
não era tão viva como nos primeiros dias. Estácio cedeu de todo, e era
fácil; seu coração tendia para ela, mais que nenhum outro. Não cedeu,
porém, sem alguma hesitação e dúvida. A flexibilidade do espírito da
irmã afigurou-se-lhe a princípio mais calculada que espontânea. Mas
foi impressão que passou. Dos próprios escravos não obteve Helena
desde logo a simpatia e boa vontade; esses pautavam os sentimentos
pelos de D. Úrsula. Servos de uma família, viam com desafeto e ciúme
a parenta nova, ali trazida por um ato de generosidade. Mas também a
esses venceu o tempo. Um só de tantos pareceu vê-la desde princípio
com olhos amigos; era um rapaz de 16 anos, chamado Vicente, cria da
casa e particularmente estimado do conselheiro. Talvez esta última
circunstância o ligou desde logo à filha do seu senhor. Despida de
interesse, porque a esperança da liberdade, se a podia haver, era
precária e remota, a afeição de Vicente não era menos viva e sincera;
faltando-lhe os gozos próprios do afeto, — a familiaridade e o contato,
— condenado a viver da contemplação e da memória, a não beijar
sequer a mão que o abençoava, limitado e distanciado pelos costumes,
pelo respeito e pelos instintos, Vicente foi, não obstante, um fiel
servidor de Helena, seu advogado convicto nos julgamentos da
senzala.

As pessoas da intimidade da casa acolheram Helena com a mesma
hesitação de D. Úrsula. Helena sentiu-lhes a polidez fria e
parcimoniosa. Longe de abater-se ou vituperar os sentimentos sociais,
explicava-os e tratava de os torcer em seu favor, — tarefa em que se
esmerou, superando os obstáculos na família; o resto viria de si
mesmo.

Uma pessoa, entre os familiares da casa, não os acompanhou no
procedimento reservado e frio; foi o padre-mestre Melchior. Melchior
era capelão em casa do conselheiro, que mandara construir alguns
anos antes uma capelinha na chácara, onde muita gente da vizinhança
ouvia missa aos domingos. Tinha sessenta anos o padre; era homem
de estatura mediana, magro, calvo, brancos os poucos cabelos, e uns
olhos não menos sagazes que mansos. De compostura quieta e grave,
austero sem formalismo, sociável sem mundanidade, tolerante sem  fraqueza, era o verdadeiro varão apostólico, homem de sua Igreja e de
seu Deus, íntegro na fé, constante na esperança, ardente na caridade.
Conhecera a família do conselheiro algum tempo depois do consórcio
deste. Descobriu a causa da tristeza que minou os últimos anos da
mãe de Estácio; respeitou a tristeza, mas atacou diretamente a
origem. O conselheiro era homem geralmente razoável, salvo nas
coisas do amor; ouviu o padre, prometeu o que este lhe exigia, mas foi
promessa feita na areia; o primeiro vento do coração apagou a
escritura. Entretanto, o conselheiro ouvia-o sinceramente em todas as
ocasiões graves, e o voto de Melchior pesava em seu espírito. Morando
na vizinhança daquela família, tinha ali o padre todo o seu mundo. Se
as obrigações eclesiásticas não o chamavam a outro lugar, não se
arredava de Andaraí, sítio de repouso após trabalhosa mocidade.

Das outras pessoas que freqüentavam a casa e residiam no mesmo
bairro de Andaraí, mencionaremos ainda o Dr. Matos, sua mulher, o
Coronel Macedo e dois filhos.

O Dr. Matos era um velho advogado que, em compensação da ciência
do direito, que não sabia, possuía noções muito aproveitáveis de
meteorologia e botânica, da arte de comer, do voltarete, do gamão e
da política. Era impossível a ninguém queixar-se do calor ou do frio,
sem ouvir dele a causa e a natureza de um e outro, e logo a divisão
das estações, a diferença dos climas, influência destes, as chuvas, os
ventos, a neve, as vazantes dos rios e suas enchentes, as marés e a
pororoca. Ele falava com igual abundância das qualidades terapêuticas
de uma erva, do nome científico de uma flor, da estrutura de certo
vegetal e suas peculiaridades. Alheio às paixões da política, se abria a
boca em tal assunto era para criticar igualmente de liberais e
conservadores, — os quais todos lhe pareciam abaixo do país. O jogo e
a comida achavam-no menos cético; e nada lhe avivava tanto a
fisionomia como um bom gamão depois de um bom jantar. Estas
prendas faziam do Dr. Matos um conviva interessante nas noites que o
não eram. Posto soubesse efetivamente alguma coisa dos assuntos
que lhe eram mais prezados, não ganhou o pecúlio que possuía,
professando a botânica ou a meteorologia, mas aplicando as regras do
direito, que ignorou até a morte.

A esposa do Dr. Matos fora uma das belezas do primeiro reinado. Era
uma rosa fanada, mas conservava o aroma da juventude. Algum
tempo se disse que o conselheiro ardera aos pés da mulher do
advogado, sem repulsa desta; mas só era verdade a primeira parte do
boato. Nem os princípios morais, nem o temperamento de D. Leonor
lhe consentiam outra coisa que não fosse repelir o conselheiro sem o
molestar. A arte com que o fez iludiu os malévolos; daí o sussurro, já
agora esquecido e morto. A reputação dos homens amorosos parecese
muito com o juro do dinheiro: alcançado certo capital, ele próprio se
multiplica e avulta. O conselheiro desfrutou essa vantagem, de
maneira que, se no outro mundo lhe levassem à coluna dos pecados
todos os que lhe atribuíam na Terra, receberia dobrado castigo do que
mereceu.
O Coronel Macedo tinha a particularidade de não ser coronel. Era
major. Alguns amigos, levados de um espírito de retificação,
começaram a dar-llhe o título de coronel, que a princípio recusou, mas
que afinal foi compelido a aceitar, não podendo gastar a vida inteira a
protestar contra ele. Macedo tinha visto e vivido muito; e, sobre o
pecúlio da experiência, possuía imaginação viva, fértil e agradável. Era
bom companheiro, folgazão e comunicativo, pensando sério quando
era preciso. Tinha dois filhos, um rapaz de vinte anos, que estudava
em São Paulo, e uma moça de vinte e três, mais prendada que
formosa.

Nos primeiros dias de agosto a situação de Helena podia dizer-se
consolidada. D.Úrsula não cedera de todo, mas a convivência ia
produzindo seus frutos. Camargo era o único irreconciliável; sentia-se,
através de suas maneiras cerimoniosas, uma aversão profunda,
prestes a converter-se em hostilidade, se fosse preciso. As demais
pessoas, não só domadas, mas até enfeitiçadas, estavam às boas com
a filha do conselheiro. Helena tornara-se o acontecimento do bairro;
seus ditos e gestos eram o assunto da vizinhança e o prazer dos
familiares da casa. Por uma natural curiosidade, cada um procurava
em suas reminiscências um fio biográfico da moça; mas do inventário
retrospectivo ninguém tirava elementos que pudessem construir a
verdade ou uma só parcela que fosse. A origem da moça continuava
misteriosa; vantagem grande, porque o obscuro favorecia a lenda, e
cada qual podia atribuir o nascimento de Helena a um amor ilustre ou
romanesco, — hipóteses admissíveis, e em todo o caso agradáveis a
ambas as partes.

Machado de Assis - HelenaOnde histórias criam vida. Descubra agora