CAPÍTULO XXVI

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— Seu pai, continuou Salvador dirigindo-se a Estácio, que, para acabar
de compor o rosto, tinha ido até à janela e voltara a sentar-se, — seu
pai era honrado e cavalheiro. Arrebatando-me Ângela, não me traiu,
porque não me vira nunca; não contribuiu diretamente para a traição
dela, porque supunha cortadas nossas relações. Soube depois que
Ângela, quando eles se apaixonaram um pelo outro, lhe ocultara
completamente o motivo da minha viagem; dera-se como separada de
mim. Mentiu, como mentiu mais tarde, dizendo que eu havia morrido.
O conselheiro não sabia sequer o meu nome. A mentira no primeiro
caso não teve fim nenhum; não houve cálculo; foi uma sugestão de
amor ou um esquecimento; foi, talvez, um modo de respeitar-me; no
segundo caso, houve cálculo: era o de redobrar o afeto que o
conselheiro tinha a Helena. Assim aconteceu, porque o conselheiro
sentiu-se pai de Helena, e assumiu esse caráter desde aquela tarde.
Do contrato, feito ali entre o homem e a criança, cumpriu ele todas as
cláusulas com generosa pontualidade. Pode crer que lhe fiquei   profundamente grato. Uma vez, passando por uma litografia, vi um
retrato dele; comprei-o e conservo-o ali ao lado do de Helena.

Melchior e Estácio olharam para a parede, onde pendiam dois
quadrinhos, ainda cobertos, conforme Estácio os vira, no primeiro dia
em que ali foi.

— Os meses e os anos passaram, continuou Salvador. Helena deu
entrada em um colégio de Botafogo, onde recebeu apurada educação.
O conselheiro a levou ali, dando-a como órfã de um amigo de Minas;
Ângela, que se dera por sua tia, ia buscá-la aos sábados. Omito mil
circunstâncias intermediárias, e as vezes, poucas, em que pude ver
minha filha, de passagem e a ocultas. Se o tempo houvesse produzido
em mim os seus naturais efeitos, se a natureza não se ajustasse em
fazer contraste com a fortuna, conservando-me o vigor e o viço da
mocidade, é possível que eu achasse meio de empregar-me no colégio
ou nas imediações, a fim de ver mais freqüentemente Helena. Mas eu
era o mesmo; passado o primeiro abalo, voltaram-me as carnes,
voltou-me a cor, e eu era o mesmo que antes de partir para o Rio
Grande. Helena podia reconhecer-me; e eu faltava à convenção tácita
que fizera com o conselheiro. Um sábado, porém, tinha Helena doze
anos, vindo ambas do colégio, parou o carro defronte do Passeio
Público. Vi-as descer e entrar. Levado por um impulso irresistível,
entrei também. Queria contemplá-las de longe, sem lhes falar; mas a
resolução estava acima das minhas forças. Que pai não faria outro
tanto? No lugar mais solitário do Passeio, corri para Helena. Vendome,
a menina pareceu não reconhecer-me logo; mas atentou um
pouco, recuou espavorida e agarrou-se à mãe, abraçando-a pela
cintura. Conheci que não estava ali um pai, mas um espectro que
regressava do outro mundo. Ia afastar-me, quando ouvi a voz de
Helena perguntar à mãe: "Papai?" Voltei-me. Ângela envolvera o rosto
da criança entre os vestidos. O gesto equivalia a uma confissão; mas
esta foi ainda mais clara quando a mãe, cedendo à boa parte da sua
natureza, ergueu resoluta os ombros, descobriu rosto da filha, pousoulhe
um beijo na testa, fitou-a e fez com a cabeça um gesto afirmativo.
A menina não exigiu mais; correu para mim e atirou-se-me nos
braços. Ângela não se atreveu a impedir o movimento da filha; o
passado e o sacrifício falavam em meu favor. Abracei Helena e beijei-a
como doido. Ângela interveio: "Basta!" disse ela. Pegou na mão da
filha e estendeu-me a sua. Apertei-a maquinalmente; meus olhos
estavam pregados na criança. Era tão gentil, com o vestido rico que
trazia, os cabelos enlaçados com fitas azuis, um chapelinho de palha e
os pezinhos calçados com botinas de seda! "Fez bem, disse eu a
Ângela, depois de alguns instantes; deu-lhe um pai melhor do que
eu”.Reparei então que ela própria se transformara; trajava com
elegância e estava superiormente bela. A abastança aperfeiçoara a
natureza. Olhei-a sem inveja nem cólera, — mas com saudade, —
dessa vez deliciosa, porque rememorei os bons tempos da nossa
ebriedade e loucura. O passado é um pecúlio para os que já não
esperam nada do presente ou do futuro; há ali sensações vivas que
preenchem as lacunas de todo o tempo. "Fez mal", disse-me ela
baixinho. E suspirou."Sei que morri, disse eu, e não pretendo
ressuscitar”.Depois voltei-me para Helena: — "Minha filha, faze de  conta que não me viste; morri para ti e para o mundo. Teu pai é outro.
Prometes que não dirás nada?" Helena fez um leve sinal de cabeça e
beijou-me a mão a furto, como se não quisesse ser vista de Ângela.
Nesse simples gesto reconheci que ela ia obedecer-me; mas a tristeza
que lhe ficou, foi o castigo de sua mãe. Pedíamos à natureza mais do
que ela podia dar.

Machado de Assis - HelenaOnde histórias criam vida. Descubra agora