CAPÍTULO XIX

1 1 1
                                    

No momento em que Estácio proferia estas palavras, transpunha
Mendonça a porta do jardim do capelão. Preocupado com a frieza de
Estácio, lembrara-lhe falar a Melchior e pedir-lhe conselho. Melchior ia
responder ao sobrinho de D. Úrsula, quando ouviu rumor de passos na
areia do jardim.

— Aí vem o noivo, disse ele.

Estácio deu dois passos para pegar no chapéu; reconsiderou e foi
sentar-se ao pé da mesa redonda. Havia ali um exemplar das
Escrituras. Abriu-as ao acaso; a página acertou ser um capítulo dos
Provérbios; leu este versículo: "Quem quer abrir mão de seu amigo,
busca-lhe as ocasiões; ele será coberto de opróbrio”. Envergonhado,
voltou a folha. Mendonça entrara na sala. Não contava com Estácio,
mas estimou vê-lo ali.

— Venha, disse Melchior; tratávamos justamente do seu casamento.

Estácio lançou ao padre um olhar de exprobração. O padre não o viu;
olhava para Mendonça, que imediatamente lhe respondeu:

— Não venho cá para outra coisa. Uma vez que a fortuna o fez
confidente, desejo constituí-lo meu conselheiro e diretor.

— Antes de tudo, sou advogado da sua causa, disse Melchior; estava
expondo agora as vantagens dela.

Mendonça olhou fixamente para o amigo, e, depois de curta pausa:

— Rejeitas ou aceitas o noivo? perguntou ele.

Posto entre a espada e a parede, Estácio não soube logo que
respondesse; ficou a olhar para a lauda aberta, receoso de encontrar a
vista dos dois. O silêncio era pior que a resposta; e nem o caso nem as
pessoas permitiam tão grande pausa. Estácio fechou de golpe o livro e
ergueu-se.

— Discutia somente as vantagens do casamento, disse ele.

— E qual é a tua opinião?

— Minha opinião é que Helena está ainda muito menina. Mas não é só
essa, nem é a principal; o voto, em todo caso, é a favor do casamento.
A principal razão é o teu próprio crédito.

— Meu crédito?

Helena pode vir a amar-te como lhe mereces; a verdade é que não
sente ainda hoje igual paixão à tua; foi o padre-mestre que mo disse.
Estima-te, é certo; mas a estima é flor da razão, e eu creio que a flor
do sentimento é muito mais própria no canteiro do matrimônio...

— Há muita flor nesse ramalhete de retórica, interrompeu
benevolamente o padre. Falemos linguagem singela e nua. Não creia
literalmente o que lhe diz este filósofo, prosseguiu ele, voltando-se
para Mendonça; ele gosta de ambos e quer vê-los felizes; é o próprio
zelo que lhe faz falar assim. Numa palavra, deseja que o senhor a
conquiste, depois de campanha formal...

Mendonça respondeu ao capelão com um sorriso pálido, que lhe
arrebitou um pouco as pontas do bigode, recolhendo-se logo medroso
e frio. O rosto ficara carregado e pensativo; a língua de Estácio tocaralhe
o coração. Disposto a aceitar a estima e a simpatia de Helena com
a esperança de converter esse pequeno dote em avultado capital, não
lhe ocorrera que, a olhos estranhos, podia parecer que o fim exclusivo
era a riqueza da moça. Estácio rompera o véu a essa probabilidade.
Uma só palavra desfizera a ilusão de poucos dias.

— Vamos lá, disse o padre, abracem-se como irmãos.

Nenhum deles se mexeu. Melchior sentiu toda a gravidade da situação;
viu perdidos os esforços, desfeita a união assentada, um abismo
cavado entre os dois amigos, incerto o destino de Helena. Interveio
outra vez com palavras de brandura, que os dois ouviram sem
interromper. Quando acabou:

Machado de Assis - HelenaOnde histórias criam vida. Descubra agora