CAPÍTULO IX

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Naquela mesma noite, D. Úrsula, que não havia de todo melhorado,
adoeceu deveras. A família, mal convalescida da perda do velho chefe,
via-se agora ameaçada de uma nova dor, em todo o caso, exposta a  novos receios. O Dr. Camargo declarou que o caso era grave, e deu
princípio a rigoroso tratamento.

Helena era naquela ocasião a natural enfermeira. Pela primeira vez
patenteou-se em todo o esplendor a dedicação filial da moça. Horas do
dia, e não poucas noites inteiras, passava-as na alcova de D. Úrsula,
atenta a todos os cuidados que a gravidade da enferma exigia. Os
remédios e o pouco alimento que esta podia receber, não lhe eram
dados por outras mãos. Helena velava à cabeceira, durante o sono
leve e interrompido da doente, achando em suas próprias forças a
resistência que a natureza confiou especialmente às mães. Quando
dava algum repouso ao corpo, não era ele ininterrupto nem longo; e
mais de uma vez, alta noite, erguia-se do leito, colocado
provisoriamente no quarto contíguo, para ir espreitar a mucama que,
em seu lugar, acompanhava a enferma. As prescrições do médico era
ela que as recebia e cumpria. A voz seca e dura com que Camargo lhe
falava, não era própria a torná-lo amável e aceito; mas Helena cerrava
os ouvidos à antipatia do homem para só obedecer ao médico. Este
não tinha outra pessoa a quem interrogasse acerca dos fenômenos da
doença, nem podia achar quem melhor os observasse e referisse;
força lhe era aceitá-la. Assim, essas duas pessoas que se repeliam e
detestavam, iam de acordo, desde que se tratava da vida de um
terceiro.

O que completava a pessoa de Helena, e ainda mais lhe mereceu o
respeito de todos, é que, no meio das ocupações e preocupações
daqueles dias, não fez padecer um só instante a disciplina da casa. Ela
regeu a família e serviu a doente, com igual desvelo e benefício. A
ordem das coisas não foi alterada nem esquecida fora da alcova de D.
Úrsula; tudo caminhou do mesmo modo que antes, como se nada
extraordinário se houvesse dado. Helena sabia dividir a atenção sem a
dispersar.

De si é que ela não curou muito. O vestido era singelo. Os cabelos,
colhidos à pressa e presos por um pente no alto da cabeça, não
receberam, em todo aquele tempo, a forma elegante e graciosa com
que ela os sabia realçar. Acrescia o abatimento, que era impossível
evitar no meio de tanta fadiga, certo cansaço dos olhos, que os fazia
moles e talvez mais adoráveis, um rosto sem riso nem viveza, um
silêncio atento e laborioso.

A doença durou cerca de vinte dias. Afinal, venceu a própria natureza
de D. Úrsula, robusta apesar dos anos. A convalescença começou; com
ela volveu a satisfação da família. O papel de Helena não estava
acabado; diminuía, contudo, e Estácio interveio para que a irmã
tivesse, enfim, alguns dias de absoluto repouso. Ela recusou, dizendo
que o repouso perdido aos poucos seria aos poucos recuperado.

Havia no coração de D. Úrsula uma fonte de ternura, que Helena devia
tocar, para jorrar livre e impetuosamente. A dedicação, em tal crise,
foi a vara misteriosa daquele Horebe. A afeição da tia era até então
frouxa, voluntária e deliberada. Depois da moléstia, avultou  espontânea. A experiência do caráter da moça dera esse resultado
inevitável. Toda a prevenção cessou; a gratidão da vida ligou
fortemente o que tantas circunstâncias anteriores pareciam separar.
Não o ocultou a irmã do conselheiro; já não tinha acanhamento nem
reserva, as palavras subiam do coração à boca sem atenuação nem
cálculo; fez-se carinhosa e mãe.

No dia em que ela pôde sair do quarto pela primeira vez, Helena deulhe
o braço e levou-a até à sala de costura e das reuniões íntimas.
Estácio amparou-a do outro lado. Ali chegando, foi ela sentada numa
poltrona. Estácio abriu um pouco a janela, para penetrar, além da luz,
um pouco de ar. D. Úrsula respirou à larga, como lavando o pulmão
com aquela primeira onda de vida. Depois, segurando as mãos de
Helena, que ficara de pé a seu lado, fê-la inclinar a fronte, e imprimiulhe
um beijo longo e verdadeiramente maternal. Estácio aproximarase;
aquela manifestação encheu-o de júbilo.

Machado de Assis - HelenaOnde histórias criam vida. Descubra agora