Naquela mesma noite, D. Úrsula, que não havia de todo melhorado,
adoeceu deveras. A família, mal convalescida da perda do velho chefe,
via-se agora ameaçada de uma nova dor, em todo o caso, exposta a novos receios. O Dr. Camargo declarou que o caso era grave, e deu
princípio a rigoroso tratamento.Helena era naquela ocasião a natural enfermeira. Pela primeira vez
patenteou-se em todo o esplendor a dedicação filial da moça. Horas do
dia, e não poucas noites inteiras, passava-as na alcova de D. Úrsula,
atenta a todos os cuidados que a gravidade da enferma exigia. Os
remédios e o pouco alimento que esta podia receber, não lhe eram
dados por outras mãos. Helena velava à cabeceira, durante o sono
leve e interrompido da doente, achando em suas próprias forças a
resistência que a natureza confiou especialmente às mães. Quando
dava algum repouso ao corpo, não era ele ininterrupto nem longo; e
mais de uma vez, alta noite, erguia-se do leito, colocado
provisoriamente no quarto contíguo, para ir espreitar a mucama que,
em seu lugar, acompanhava a enferma. As prescrições do médico era
ela que as recebia e cumpria. A voz seca e dura com que Camargo lhe
falava, não era própria a torná-lo amável e aceito; mas Helena cerrava
os ouvidos à antipatia do homem para só obedecer ao médico. Este
não tinha outra pessoa a quem interrogasse acerca dos fenômenos da
doença, nem podia achar quem melhor os observasse e referisse;
força lhe era aceitá-la. Assim, essas duas pessoas que se repeliam e
detestavam, iam de acordo, desde que se tratava da vida de um
terceiro.O que completava a pessoa de Helena, e ainda mais lhe mereceu o
respeito de todos, é que, no meio das ocupações e preocupações
daqueles dias, não fez padecer um só instante a disciplina da casa. Ela
regeu a família e serviu a doente, com igual desvelo e benefício. A
ordem das coisas não foi alterada nem esquecida fora da alcova de D.
Úrsula; tudo caminhou do mesmo modo que antes, como se nada
extraordinário se houvesse dado. Helena sabia dividir a atenção sem a
dispersar.De si é que ela não curou muito. O vestido era singelo. Os cabelos,
colhidos à pressa e presos por um pente no alto da cabeça, não
receberam, em todo aquele tempo, a forma elegante e graciosa com
que ela os sabia realçar. Acrescia o abatimento, que era impossível
evitar no meio de tanta fadiga, certo cansaço dos olhos, que os fazia
moles e talvez mais adoráveis, um rosto sem riso nem viveza, um
silêncio atento e laborioso.A doença durou cerca de vinte dias. Afinal, venceu a própria natureza
de D. Úrsula, robusta apesar dos anos. A convalescença começou; com
ela volveu a satisfação da família. O papel de Helena não estava
acabado; diminuía, contudo, e Estácio interveio para que a irmã
tivesse, enfim, alguns dias de absoluto repouso. Ela recusou, dizendo
que o repouso perdido aos poucos seria aos poucos recuperado.Havia no coração de D. Úrsula uma fonte de ternura, que Helena devia
tocar, para jorrar livre e impetuosamente. A dedicação, em tal crise,
foi a vara misteriosa daquele Horebe. A afeição da tia era até então
frouxa, voluntária e deliberada. Depois da moléstia, avultou espontânea. A experiência do caráter da moça dera esse resultado
inevitável. Toda a prevenção cessou; a gratidão da vida ligou
fortemente o que tantas circunstâncias anteriores pareciam separar.
Não o ocultou a irmã do conselheiro; já não tinha acanhamento nem
reserva, as palavras subiam do coração à boca sem atenuação nem
cálculo; fez-se carinhosa e mãe.No dia em que ela pôde sair do quarto pela primeira vez, Helena deulhe
o braço e levou-a até à sala de costura e das reuniões íntimas.
Estácio amparou-a do outro lado. Ali chegando, foi ela sentada numa
poltrona. Estácio abriu um pouco a janela, para penetrar, além da luz,
um pouco de ar. D. Úrsula respirou à larga, como lavando o pulmão
com aquela primeira onda de vida. Depois, segurando as mãos de
Helena, que ficara de pé a seu lado, fê-la inclinar a fronte, e imprimiulhe
um beijo longo e verdadeiramente maternal. Estácio aproximarase;
aquela manifestação encheu-o de júbilo.
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Machado de Assis - Helena
Roman d'amourHelena é um romance de Machado de Assis. Foi publicado em 1876. Aqui pouco temos da sutileza psicológica dos dois primeiros romances, verdadeiros estudos de mulheres, ou da sutileza filosófica dos romances da fase madura de Machado. ESSA OBRA NÃO É...