Camargo ia sentar-se à mesa quando lhe entregaram a carta de
Estácio; leu-a para si, mas a filha leu-a nos olhos dele. Uma aura de
bem-aventurança desrugou a fronte do médico; seus lábios – coisa
pasmosa! – abriram-se num sorriso franco, sorriso que chegou a
desabrochar em gargalhada, a primeira que D. Tomásia lhe ouviu.
Acabado o jantar, Camargo deu conta do pedido à mulher, e os dois
pais chamaram a filha à sala. Eugênia ouviu a notícia sem baixar os
olhos nem corar. Interrogada, respondeu que era muito do seu gosto o
casamento.— Sim? perguntou Camargo, simulando espanto.
Eugênia fez uma leve inclinação de cabeça, com certo ar de quem dizia
não acreditar no espanto do pai. Este pegou nas mãos da filha e
puxou-a para si.— Assim, pois, meu anjo, disse ele, casas-te por tua livre vontade?
Estácio é o eleito de teu coração? Louvo a escolha, que não podia ser
mais digna. Serás herdeira das virtudes de tua mãe, que te proponho
como o melhor modelo da Terra.— O mais consciencioso pelo menos, acudiu D. Tomásia, satisfeita e
vaidosa do louvor do marido. Há de ser boa esposa, modesta, solícita e
econômica.— Econômica, sem avareza, emendou Camargo. A riqueza não deve
ser dissipada, mas é certo que impõe obrigações imprescindíveis, e
seria da maior inconveniência viver a gente abaixo de seus meios. Não
farás isso nem cairás no extremo oposto; procura um meio-termo, que
é a posição do bom senso. Nem dissipada, nem miserável.D. Tomásia concordou com esta explicação do marido, enquanto
Eugênia, olhando alternadamente para um e outro, parecia não lhes
dar a mínima atenção. O pensamento estava em Andaraí; ela via já na
imaginação a cerimônia do consórcio, as carruagens, o apuro do noivo,
a sua própria graça, a coroa de flores de laranjeira, que a havia de
adornar; enfim talhava já o vestido branco e pregava as rendas de
Malines com que havia de levar os olhos a ambas as metades do
gênero humano. Daquele sonho foi despertada pelo pai, que lhe
imprimiu na testa o seu segundo beijo. O primeiro, como o leitor se há
de lembrar, foi dado na noite da morte do conselheiro. O terceiro seria
provavelmente no dia em que ela se casasse.— Sabes que te amo, Eugênia? disse Camargo olhando para ela.
— Papai!
Camargo não pôde dizer mais nada. O amor, um instante expansivo,
volveu a aninhar-se no fundo do coração, onde sempre estivera. A
satisfação do médico precisava do silêncio e do recolhimento para
saborear-se. Foi então que Eugênia passou às mãos de D. Tomásia. A
mulher do Dr. Camargo via aquele casamento com olhos diferentes do
marido. O que ela sobretudo via, eram as vantagens morais da filha.
Sentou-a ao pé de si e recitou-lhe um catecismo de deveres e
costumes, que Eugênia interrompia de quando em quando, com
exclamações de obediência filial:— Sim, mamãe!... Deixe estar!... Mamãe há de ver!...
D. Tomásia sentia-se feliz. O rosto, cuja expressão era vulgar, tinha
naquela ocasião alguma coisa que o tornava sublime. Ela fez que a
filha se lhe sentasse no regaço; e esta, sentindo que a molestava,
deixou-se lentamente cair de joelhos, ficando entre os dela, a olhar
para ela.Camargo, entretanto, já não era daquele mundo. Passeava de um para
outro lado, com as mãos para trás, a morder a ponta do bigode. De
quando em quando parava e olhava para o grupo das duas senhoras,
mas era só maquinalmente; o seu olhar baço indicava que ele ia
mergulhado em profundas cogitações.Naquele homem cético, moderado e taciturno, havia uma paixão
verdadeira, exclusiva e ardente: era a filha. Camargo adorava
Eugênia: era a sua religião. Concentrara esforços e pensamentos em
fazê-la feliz, e para o alcançar não duvidaria empregar, se necessário
fosse, a violência, a perfídia e a dissimulação. Nem antes nem depois
sentira igual sentimento; não amou a mulher; casou porque o
matrimônio é uma condição de gravidade. O maior amigo que teve foi
o conselheiro do Vale; mas essa mesma amizade que o ligara ao pai de
Estácio, nunca recebera a contraprova do sacrifício; aliás apareceria
em toda a sinceridade a natureza do médico. Ele só conhecia os afetos,
por assim dizer, caseiros e inertes, os que não sabem nem podem
afrontar as intempéries da vida. Nas relações morais dos homens
possuía somente o troco miúdo da polidez; a moeda de ouro dos
grandes afetos nunca lhe entrara nas arcas do coração. Um só existia
ali: o amor de Eugênia.
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Machado de Assis - Helena
Lãng mạnHelena é um romance de Machado de Assis. Foi publicado em 1876. Aqui pouco temos da sutileza psicológica dos dois primeiros romances, verdadeiros estudos de mulheres, ou da sutileza filosófica dos romances da fase madura de Machado. ESSA OBRA NÃO É...