CAPÍTULO XIV

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Camargo ia sentar-se à mesa quando lhe entregaram a carta de
Estácio; leu-a para si, mas a filha leu-a nos olhos dele. Uma aura de
bem-aventurança desrugou a fronte do médico; seus lábios – coisa
pasmosa! – abriram-se num sorriso franco, sorriso que chegou a
desabrochar em gargalhada, a primeira que D. Tomásia lhe ouviu.
Acabado o jantar, Camargo deu conta do pedido à mulher, e os dois
pais chamaram a filha à sala. Eugênia ouviu a notícia sem baixar os
olhos nem corar. Interrogada, respondeu que era muito do seu gosto o
casamento.

— Sim? perguntou Camargo, simulando espanto.

Eugênia fez uma leve inclinação de cabeça, com certo ar de quem dizia
não acreditar no espanto do pai. Este pegou nas mãos da filha e
puxou-a para si.

— Assim, pois, meu anjo, disse ele, casas-te por tua livre vontade?
Estácio é o eleito de teu coração? Louvo a escolha, que não podia ser
mais digna. Serás herdeira das virtudes de tua mãe, que te proponho
como o melhor modelo da Terra.

— O mais consciencioso pelo menos, acudiu D. Tomásia, satisfeita e
vaidosa do louvor do marido. Há de ser boa esposa, modesta, solícita e
econômica.

— Econômica, sem avareza, emendou Camargo. A riqueza não deve
ser dissipada, mas é certo que impõe obrigações imprescindíveis, e
seria da maior inconveniência viver a gente abaixo de seus meios. Não
farás isso nem cairás no extremo oposto; procura um meio-termo, que
é a posição do bom senso. Nem dissipada, nem miserável.

D. Tomásia concordou com esta explicação do marido, enquanto
Eugênia, olhando alternadamente para um e outro, parecia não lhes
dar a mínima atenção. O pensamento estava em Andaraí; ela via já na
imaginação a cerimônia do consórcio, as carruagens, o apuro do noivo,
a sua própria graça, a coroa de flores de laranjeira, que a havia de
adornar; enfim talhava já o vestido branco e pregava as rendas de
Malines com que havia de levar os olhos a ambas as metades do
gênero humano. Daquele sonho foi despertada pelo pai, que lhe
imprimiu na testa o seu segundo beijo. O primeiro, como o leitor se há
de lembrar, foi dado na noite da morte do conselheiro. O terceiro seria
provavelmente no dia em que ela se casasse.

— Sabes que te amo, Eugênia? disse Camargo olhando para ela.

— Papai!

Camargo não pôde dizer mais nada. O amor, um instante expansivo,
volveu a aninhar-se no fundo do coração, onde sempre estivera. A
satisfação do médico precisava do silêncio e do recolhimento para
saborear-se. Foi então que Eugênia passou às mãos de D. Tomásia. A
mulher do Dr. Camargo via aquele casamento com olhos diferentes do
marido. O que ela sobretudo via, eram as vantagens morais da filha.
Sentou-a ao pé de si e recitou-lhe um catecismo de deveres e
costumes, que Eugênia interrompia de quando em quando, com
exclamações de obediência filial:

— Sim, mamãe!... Deixe estar!... Mamãe há de ver!...

D. Tomásia sentia-se feliz. O rosto, cuja expressão era vulgar, tinha
naquela ocasião alguma coisa que o tornava sublime. Ela fez que a
filha se lhe sentasse no regaço; e esta, sentindo que a molestava,
deixou-se lentamente cair de joelhos, ficando entre os dela, a olhar
para ela.

Camargo, entretanto, já não era daquele mundo. Passeava de um para
outro lado, com as mãos para trás, a morder a ponta do bigode. De
quando em quando parava e olhava para o grupo das duas senhoras,
mas era só maquinalmente; o seu olhar baço indicava que ele ia
mergulhado em profundas cogitações.

Naquele homem cético, moderado e taciturno, havia uma paixão
verdadeira, exclusiva e ardente: era a filha. Camargo adorava
Eugênia: era a sua religião. Concentrara esforços e pensamentos em
fazê-la feliz, e para o alcançar não duvidaria empregar, se necessário
fosse, a violência, a perfídia e a dissimulação. Nem antes nem depois
sentira igual sentimento; não amou a mulher; casou porque o
matrimônio é uma condição de gravidade. O maior amigo que teve foi
o conselheiro do Vale; mas essa mesma amizade que o ligara ao pai de
Estácio, nunca recebera a contraprova do sacrifício; aliás apareceria
em toda a sinceridade a natureza do médico. Ele só conhecia os afetos,
por assim dizer, caseiros e inertes, os que não sabem nem podem
afrontar as intempéries da vida. Nas relações morais dos homens
possuía somente o troco miúdo da polidez; a moeda de ouro dos
grandes afetos nunca lhe entrara nas arcas do coração. Um só existia
ali: o amor de Eugênia.

Machado de Assis - HelenaOnde histórias criam vida. Descubra agora