Helena leu e releu a carta. Depois ficou silenciosa, a olhar para as
folhas da trepadeira, que do lado de fora viera a subir pela muralha da
varanda e a debruçar-se enfim do parapeito para dentro. A carta ficara
aberta sobre os joelhos da moça. Mendonça, a poucos passos, olhava
para esta, sem ousar falar-lhe.Goethe escreveu um dia que a linha vertical é a lei da inteligência
humana. Pode dizer-se, do mesmo modo, que a linha curva é a lei da
graça feminil. Mendonça o sentiu, contemplando o busto de Helena e a
casta ondulação da espádua e do seio, cobertos pela cassa fina do
vestido. A moça estava um pouco inclinada. Do lugar em que ficava,
Mendonça via-lhe o perfil correto e pensativo, a curva mole do braço, e
a ponta indiscreta e curiosa do sapatinho raso que ela trazia. A atitude
convinha à beleza melancólica de Helena. O rapaz olhava para ela sem
movimento nem voz.A tarde expirava; a cor verde do morro fronteiro ia tomando o aspecto
cinzento-escuro que precede a cor fechada da noite. A própria noite
desceu, e um escravo entrou na varanda a acender as duas lâmpadas
que pendiam do teto. Esta circunstância acordou a moça, e bastou-lhe
voltar um pouco a cabeça para ver o amigo de Estácio a alguns passos
de distância.— Estava aí? perguntou Helena, estremecendo.
— D. Úrsula não voltou, respondeu Mendonça com timidez; não quis
interromper a leitura que a senhora fazia.— A leitura? A leitura acabou há muito tempo.
— Mas também se lê de cor.
Helena lançou-lhe um olhar suspeitoso.
— Não sei ler de cor, disse ela, erguendo-se e saindo da varanda.
Mendonça ficou aturdido. Que lhe dissera ele tão grave que a pudesse
ofender? Repetiu as próprias palavras e não lhes achou sentido mau.
Certo, porém, de que a molestara, ali ficou aborrecido de si mesmo,
desejoso de lhe explicar tudo, se alguma coisa houvesse explicável.
Após alguns instantes, resolveu entrar também. Entrou; Helena não
estava nem na sala de jantar, nem na do jogo, onde achou D. Úrsula
com o Dr. Matos e o coronel-major. Dali passou à sala de visitas.
Helena não o viu entrar; estava mergulhada numa poltrona com a
cabeça nas mãos. Comovido, deteve-se alguns instantes a contemplála;
depois caminhou para ela e falou-lhe.Helena ergueu a cabeça.
— Perdoe-me, disse ele, se alguma coisa lhe disse que a magoou.
Confesso que não sei o que poderia haver em minhas palavras. Ficou
triste por isso?A moça cravou nele um olhar ainda suspeitoso, e não lhe respondeu
logo. Mendonça adotou o melhor dos alvitres naquela ocasião;
inclinou-se e recuou para sair. Helena chamou-o; ele aproximou-se
outra vez, com um ar de tão doce resignação que lisonjearia o mais
levantado orgulho. Helena estendeu-lhe a mão; ele apertou-a e teve
ímpetos de a beijar uma e muitas vezes, triunfando naquele único
instante da hesitação de todos os dias; faltou-lhe resolução. Helena
mostrou-lhe o trecho da carta em que Estácio se referia a ele; falaram
dos ausentes e dos presentes, de todos e de tudo, menos do assunto
que exclusivamente preocupava o moço. Ele saiu dali sem haver dito
nada de seu coração. Chegando à rua, achou-se poltrão e ridículo,
disse mil nomes feios a si próprio; enfim, prometeu declarar tudo a
Helena no dia seguinte.No dia seguinte, que era domingo, Helena dirigiu-se à capela a ouvir a
missa do Padre Melchior. Acabada a cerimônia, não seguiu para casa,
com D. Úrsula, mas foi ter à sacristia, onde o padre acabava de tirar
os paramentos. Melchior, logo que soubera da carta de Estácio, nessa
manhã, pedira a Helena que lha deixasse ver.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Machado de Assis - Helena
RomanceHelena é um romance de Machado de Assis. Foi publicado em 1876. Aqui pouco temos da sutileza psicológica dos dois primeiros romances, verdadeiros estudos de mulheres, ou da sutileza filosófica dos romances da fase madura de Machado. ESSA OBRA NÃO É...