— És forte? perguntou o padre.
— Sou.
— Crês em Deus?
Estácio estremeceu e olhou para o ancião, sem responder. Melchior
insistiu:— Crês?
— Essa pergunta...
— É menos ociosa do que parece. Não basta supor que se crê; nem
basta crer à ligeira, como na existência de uma região obscura da Ásia,
onde nunca se pretende por os pés. O Deus de que te falo, não é só
essa sublime necessidade do espírito, que apenas contenta alguns
filósofos; falo-te do Deus criador e remunerador, do Deus que lê no
fundo de nossas consciências, que nos deu a vida, que nos há de dar a
morte, e, além da morte, o prêmio ou o castigo. Crês?— Creio.
— Pois bem, tu transgrediste a lei divina, como a lei humana, sem o
saber. Teu coração é um grande inconsciente; agita-se, murmura,
rebela-se, vaga à feição de um instinto mal expresso e mal
compreendido. O mal persegue-te, tenta-te, envolve-te em seus
liames dourados e ocultos; tu não o sentes, não o vês; terás horror de
ti mesmo, quando deres com ele de rosto. Deus que te lê, sabe
perfeitamente que entre teu coração e tua consciência há como um
véu espesso que os separa, que impede esse acordo gerador do delito.— Mas que é, padre-mestre?
Melchior inclinou-se e encarou o moço. Os olhos, fitos nele, eram como
um espelho polido e frio, destinado a reproduzir a imagem do que lhe
ia dizer.— Estácio, disse Melchior pausadamente, tu amas tua irmã.
O gesto mesclado de horror, assombro e remorso com que Estácio
ouvira aquela palavra, mostrou ao padre, não só que ele estava de
posse da verdade, mas também que acabava de a revelar ao
mancebo. O que a consciência deste ignorava, sabia-o o coração, e só
lho disse naquela hora solene. A consciência, depois de tatear nas
trevas, recuou apavorada, como afastando de si o clarão súbito que
acendera nela a palavra do sacerdote. Estácio não respondeu nada;
não podia responder nada. Com que vocábulo e em que língua humana
exprimiria ele a comoção nova e terrível que lhe abalara a alma toda?
que fio pudera atar-lhe as idéias rotas e dispersas? Nem falou, nem se
atreveu a erguer os olhos; ficou como estúpido e morto. Melchior
contemplou-o alguns minutos, silencioso e compassivo. Os olhos, que
eram de águia para os mistérios da vida, eram de pomba para os
grandes infortúnios. Abaixo da cabeça máscula, havia um coração
feminino.A mudez de Estácio cessou enfim; o corpo agitou-se; o lábio articulou
algumas frases desconcertadas. Vago era o sentido delas; podia
concluir-se que ele não cria na revelação de Melchior, que o suposto
sentimento era tão absurdo e desnatural que só a maus instintos devia
ser atribuído. Melchior ouviu-o, sorriu com satisfação. Não era aquilo
mesmo um protesto de consciência honrada?— Maus instintos, não, respondeu Melchior; um desvio da lei social e
religiosa, mas desvio inconsciente. Entra em teu coração, Estácio; revolve-lhe os mais íntimos recantos, e lá acharás esse gérmen
funesto; lança-o fora de ti,que é o preceito do Eterno Mestre. Não o
sentiste nunca; a tentação usa essa tática serpentina e dolorosa; é
insinuante com a calúnia, e pertinaz como a suspeita. Mas eu sou a
verdade que afirma, e a caridade que consola. Digo-te, não que
pecaste, mas que ficaste à beira do pecado, e estendo-te a mão para
que recues do abismo.— Padre-mestre! murmurou Estácio, cujo coração recebia a influência
da palavra de Melchior, a um tempo severa e meiga.— Não fales, continuou o padre; negá-lo é mentir; confessá-lo é
ocioso. Como nasceu em teu coração semelhante sentimento? Quis a
fortuna que entre vocês dois não houvesse a imagem da infância e a
comunhão dos primeiros anos; que, em plena mocidade, passassem,
do total desconhecimento um do outro, para a intimidade de todos os
dias. Esta foi a raiz do mal. Helena apareceu-te mulher, com todas as
seduções próprias da mulher, e mais ainda com as de seu próprio
espírito, porque a natureza e a educação acordaram em a fazer
original e superior. Não sentiste a transformação lenta que se operou
em ti, nem podias compreendê-la. São Paulo o disse: para os corações
limpos, todas as coisas são limpas. Vias a afeição legítima naquilo que
era já feição espúria; daí vieram os zelos, a suspicácia, um egoísmo
exigente, cujo resultado seria subtrair a alma de Helena a todas as
alegrias da Terra, unicamente para o fim de a contemplares sozinho,
como um avaro.
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Machado de Assis - Helena
RomantikHelena é um romance de Machado de Assis. Foi publicado em 1876. Aqui pouco temos da sutileza psicológica dos dois primeiros romances, verdadeiros estudos de mulheres, ou da sutileza filosófica dos romances da fase madura de Machado. ESSA OBRA NÃO É...