Tinha acabado; grossas lágrimas, retidas a custo enfim lhe rebentaram
dos olhos e rolaram pelo rosto abaixo do narrador. A comoção não ficou só nele; os dois ouvintes a sentiram também. Acabara; e o pior
que podia acontecer, era isso mesmo. Uma vez finda a narração,
ficaram os dois calados e perplexos, sem que ousassem contradizê-lo.
Depois de curta pausa, Salvador rematou assim:— De tudo o que lhes disse não tenho outras provas além destas
cartas, que seriam bastante, e de minhas lágrimas, que hão de ser
eternas. Mas, ainda quando haja outras, creio que não serão precisas.
Na situação em que estamos, só há duas soluções possíveis; ou nada
se altera do que o conselheiro estatuiu, e somente eu carregarei as
conseqüências da sorte, desaparecendo; ou a família rejeita Helena, e
eu a levarei comigo. Dir-se-á que a lei a protege a todo transe? Pois
ela assinará todas as desistências necessárias...Estácio cortou-lhe a palavra, dizendo que oportunamente lhe dariam
resposta. Saíram logo depois; não trocaram uma só palavra; cada um
deles ia absorto. Contudo, o padre observava de quando em quando o
sobrinho de D. Úrsula, buscando adivinhar-lhe os pensamentos.Chegando à porta da chácara, o padre perguntou ao moço:
— Que pretende fazer?
— Não sei ainda.
— Sei eu o que deve fazer: nada.
— Conservar esta situação?
— Decerto. Helena obedeceu à vontade de seus dois pais, aceitando o
equívoco em que ambos a vieram colocar. Obedeceu à força. Agora,
está reconhecida; é um fato que não podemos discutir nem alterar.Estácio esteve silencioso alguns instantes.
— Mas, posso eu, à vista do que acabamos de ouvir, conservar a
Helena um título que rigorosamente lhe não pertence? Helena não é
minha irmã; é absolutamente estranha à nossa família; o título que
nos ligava, desaparece. Por que motivo continuaríamos nós uma
falsificação...— De seu pai? atalhou Melchior.
— Padre-mestre!
— Aquele homem falou verdade; mas nem a lei nem a Igreja se
contentam com essa simples verdade. Em oposição a ela, há a
declaração derradeira de um morto. A justiça civil exige mais do que
palavras e lágrimas; a eclesiástica não extingue, com um traço de
pena, a afirmação póstuma. Demais, não se espera que esse homem
reproduza perante ninguém as declarações de há pouco; só o fará quando perder a última esperança. É evidente que ele nada quer
alterar do que se pai estabeleceu, e antes se sacrificará do que
envergonhará a filha. Sente-se disposto a fazer o que ele recusa?Estácio não respondeu; tinham entrado na chácara, e caminhavam
lentamente na direção da casa. Melchior deteve-o.— Estácio! disse o padre, depois de olhar para ele um instante.
Compreendo, quisera despojar Helena do título que seu pai lhe deixou,
para lhe dar outro, e ligá-la à sua família por diferente vínculo...Estácio fez um gesto como protestando.
— Esquece duas coisas graves: o escândalo e o casamento de um e
outro; já se não pertence, nem ela se pertence a si. Vamos lá; seja
homem. Sepultemos quanto se passou no mais profundo silêncio, e a
situação de ontem será a mesma de amanhã.Quando Estácio e Melchior entraram em casa, já D. Úrsula sabia tudo;
lograra desatar a língua de Helena. Abatida com a leitura da carta, não
lhe levantara o ânimo a narração verbal da moça; preferia talvez que
Helena fosse verdadeiramente filha do conselheiro. Alguns meses de
espaço e a convivência afetuosa produziram a diferença de sentimento
entre o primeiro e o último dia.— Nada podemos fazer já agora, disse o padre; provocaríamos um
escândalo sem esperança do resultado.D. Úrsula fez um gesto de assentimento. Chamada a ouvi-los, Helena
desceu daí a alguns minutos. A cor da vergonha tingiu-lhe a face, logo
que ela deu com Estácio, que a esperava, ao lado de Melchior, ambos
calados, mas sem nenhum vislumbre de irritação. Após um silêncio
longo e abafado, Estácio comunicou a Helena a resolução da família e
seus sentimentos de generosidade e confiança; concluiu dizendo que,
sobre todas as coisas, prevalecia a vontade derradeira de seu pai.
Helena empalideceu e cerrou os olhos; D.Úrsula correu a ampará-la. O
organismo debilitado pelas vigílias e comoções das últimas horas não
pudera resistir; mas o delíquio foi leve e curto. Voltando a si, Helena
beijou ardentemente as mãos de D. Úrsula e as do padre, estendeu a
sua a Estácio, que a apertou; depois, com voz trêmula, disse:— Meu coração ficará eternamente grato ao resto de estima que não
perdi; a situação mudou, e força é mudar com ela. Não quero a
proteção da lei, nem poderia receber a complacência de corações
amigos. Cometi um erro, e devo expiá-lo. Enquanto a vergonha vivia
só comigo, era possível continuar nesta casa; eu atordoava-me para
esquecê-la; mas agora que é patente, vê-la-ei nos olhos de todos e no
sorriso de cada um. Peço-lhes que me perdoem e me deixem ir! Não
devera ter entrado, é certo. Expio a fraqueza de um coração que eu
me habituara a amar de longe, com o prestígio do mistério e o encanto
do fruto proibido. De hoje em diante, amá-los-ei de longe ou de perto,
mas estranha... e perdoada!Dizendo isto, Helena abraçou D. Úrsula, como a pedir o benefício da
sua intervenção. D. Úrsula abraçou-a igualmente, mas fez com a
cabeça um gesto negativo. Melchior observou que a repulsa era pelo
menos um sintoma de desprendimento pouco explicável em relação à
família que, sem embargo dos últimos sucessos, não lhe retirara a
estima nem a proteção.— Herdou o orgulho do pai! murmurou Estácio.
A frase foi dita em voz baixa, mas Helena ouviu-a, e seus olhos
fulgiram de momentânea satisfação. Atribuir a orgulho o que era
vergonha e remorso, dava-lhe certa superioridade que a moça julgava
não ter naquele lance. Protestou em favor de seus sentimentos de
gratidão, com a palavra viva, animada, cordial que todos três lhe
conheciam, interrompida a intervalos pela comoção interior, e pelas
lágrimas que lhe escorriam dos olhos, quase exaustos de chorar.
Estácio pôs termo a todas as hesitações.— Pois bem, disse ele, será isso mais tarde; a lei é por nós; e nossa
vontade é que nos obedeça.Helena mordeu o lábio com desesperação, mas não respondeu. A
cabeça descaiu-lhe lentamente como ao peso de uma idéia, a mais e
mais opressora. Depois, ergueu-a; os olhos tristes, mais animados dos
últimos raios de uma esperança, dirigiram-se para os de Estácio, que
nessa ocasião pareciam falar as dores todas da paixão sufocada e
rebelde. Ambos eles os baixaram à terra, medrosos de si mesmos.— Não creio que ela aceite facilmente a sua decisão, disse Melchior a
Estácio, logo que pôde achar-se só com ele. Acautele-se; é capaz de
fugir-nos.— Crê?
— Não a conhece ainda? A posição em que estes acontecimentos a
deixaram, repugna-lhe mais que tudo. Prefere a miséria à vergonha, e
a idéia de que interiormente não a absolvemos, é o verme que lhe fica
no coração.De noite, recebeu Estácio uma carta de Salvador, acompanhada de um
pacote.“Refleti muito durante estas duas horas, dizia ele, e cheguei a uma
conclusão única. Elimino-me. É o meio de conservar a Helena a
consideração e o futuro que lhe não posso dar. Quando esta carta lhe
chegar às mãos, terei desaparecido para sempre. Não me procure, que
é inútil. Irei abençoá-lo de longe. Recaia, entretanto, sobre mim todo o
ressentimento; eu só o mereço, porque só eu o provoquei. Vão as
cartas de Helena; guardo três apenas, como recordação da felicidade
que perdi”.Estácio teve vontade de ler as cartas de Helena, mas a tempo recuou;
mandou-as dar à moça. Helena, que estava com D. Úrsula, entregouas
a esta.— São a minha história, disse ela; peço-lhe que as leia e me julgue.
Havia em seus olhos uma expressão que não era usual. Recolheu-se
imediatamente a seu quarto, onde jazeu longo tempo, calada, quieta,
sinistra, o corpo atirado em um sofá, a alma sabe Deus em que
regiões de infinito desespero.
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Machado de Assis - Helena
RomanceHelena é um romance de Machado de Assis. Foi publicado em 1876. Aqui pouco temos da sutileza psicológica dos dois primeiros romances, verdadeiros estudos de mulheres, ou da sutileza filosófica dos romances da fase madura de Machado. ESSA OBRA NÃO É...