CAPÍTULO XXVII

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Tinha acabado; grossas lágrimas, retidas a custo enfim lhe rebentaram
dos olhos e rolaram pelo rosto abaixo do narrador. A comoção não  ficou só nele; os dois ouvintes a sentiram também. Acabara; e o pior
que podia acontecer, era isso mesmo. Uma vez finda a narração,
ficaram os dois calados e perplexos, sem que ousassem contradizê-lo.
Depois de curta pausa, Salvador rematou assim:

— De tudo o que lhes disse não tenho outras provas além destas
cartas, que seriam bastante, e de minhas lágrimas, que hão de ser
eternas. Mas, ainda quando haja outras, creio que não serão precisas.
Na situação em que estamos, só há duas soluções possíveis; ou nada
se altera do que o conselheiro estatuiu, e somente eu carregarei as
conseqüências da sorte, desaparecendo; ou a família rejeita Helena, e
eu a levarei comigo. Dir-se-á que a lei a protege a todo transe? Pois
ela assinará todas as desistências necessárias...

Estácio cortou-lhe a palavra, dizendo que oportunamente lhe dariam
resposta. Saíram logo depois; não trocaram uma só palavra; cada um
deles ia absorto. Contudo, o padre observava de quando em quando o
sobrinho de D. Úrsula, buscando adivinhar-lhe os pensamentos.

Chegando à porta da chácara, o padre perguntou ao moço:

— Que pretende fazer?

— Não sei ainda.

— Sei eu o que deve fazer: nada.

— Conservar esta situação?

— Decerto. Helena obedeceu à vontade de seus dois pais, aceitando o
equívoco em que ambos a vieram colocar. Obedeceu à força. Agora,
está reconhecida; é um fato que não podemos discutir nem alterar.

Estácio esteve silencioso alguns instantes.

— Mas, posso eu, à vista do que acabamos de ouvir, conservar a
Helena um título que rigorosamente lhe não pertence? Helena não é
minha irmã; é absolutamente estranha à nossa família; o título que
nos ligava, desaparece. Por que motivo continuaríamos nós uma
falsificação...

— De seu pai? atalhou Melchior.

— Padre-mestre!

— Aquele homem falou verdade; mas nem a lei nem a Igreja se
contentam com essa simples verdade. Em oposição a ela, há a
declaração derradeira de um morto. A justiça civil exige mais do que
palavras e lágrimas; a eclesiástica não extingue, com um traço de
pena, a afirmação póstuma. Demais, não se espera que esse homem
reproduza perante ninguém as declarações de há pouco; só o fará   quando perder a última esperança. É evidente que ele nada quer
alterar do que se pai estabeleceu, e antes se sacrificará do que
envergonhará a filha. Sente-se disposto a fazer o que ele recusa?

Estácio não respondeu; tinham entrado na chácara, e caminhavam
lentamente na direção da casa. Melchior deteve-o.

— Estácio! disse o padre, depois de olhar para ele um instante.
Compreendo, quisera despojar Helena do título que seu pai lhe deixou,
para lhe dar outro, e ligá-la à sua família por diferente vínculo...

Estácio fez um gesto como protestando.

— Esquece duas coisas graves: o escândalo e o casamento de um e
outro; já se não pertence, nem ela se pertence a si. Vamos lá; seja
homem. Sepultemos quanto se passou no mais profundo silêncio, e a
situação de ontem será a mesma de amanhã.

Quando Estácio e Melchior entraram em casa, já D. Úrsula sabia tudo;
lograra desatar a língua de Helena. Abatida com a leitura da carta, não
lhe levantara o ânimo a narração verbal da moça; preferia talvez que
Helena fosse verdadeiramente filha do conselheiro. Alguns meses de
espaço e a convivência afetuosa produziram a diferença de sentimento
entre o primeiro e o último dia.

— Nada podemos fazer já agora, disse o padre; provocaríamos um
escândalo sem esperança do resultado.

D. Úrsula fez um gesto de assentimento. Chamada a ouvi-los, Helena
desceu daí a alguns minutos. A cor da vergonha tingiu-lhe a face, logo
que ela deu com Estácio, que a esperava, ao lado de Melchior, ambos
calados, mas sem nenhum vislumbre de irritação. Após um silêncio
longo e abafado, Estácio comunicou a Helena a resolução da família e
seus sentimentos de generosidade e confiança; concluiu dizendo que,
sobre todas as coisas, prevalecia a vontade derradeira de seu pai.
Helena empalideceu e cerrou os olhos; D.Úrsula correu a ampará-la. O
organismo debilitado pelas vigílias e comoções das últimas horas não
pudera resistir; mas o delíquio foi leve e curto. Voltando a si, Helena
beijou ardentemente as mãos de D. Úrsula e as do padre, estendeu a
sua a Estácio, que a apertou; depois, com voz trêmula, disse:

— Meu coração ficará eternamente grato ao resto de estima que não
perdi; a situação mudou, e força é mudar com ela. Não quero a
proteção da lei, nem poderia receber a complacência de corações
amigos. Cometi um erro, e devo expiá-lo. Enquanto a vergonha vivia
só comigo, era possível continuar nesta casa; eu atordoava-me para
esquecê-la; mas agora que é patente, vê-la-ei nos olhos de todos e no
sorriso de cada um. Peço-lhes que me perdoem e me deixem ir! Não
devera ter entrado, é certo. Expio a fraqueza de um coração que eu
me habituara a amar de longe, com o prestígio do mistério e o encanto
do fruto proibido. De hoje em diante, amá-los-ei de longe ou de perto,
mas estranha... e perdoada!

Dizendo isto, Helena abraçou D. Úrsula, como a pedir o benefício da
sua intervenção. D. Úrsula abraçou-a igualmente, mas fez com a
cabeça um gesto negativo. Melchior observou que a repulsa era pelo
menos um sintoma de desprendimento pouco explicável em relação à
família que, sem embargo dos últimos sucessos, não lhe retirara a
estima nem a proteção.

— Herdou o orgulho do pai! murmurou Estácio.

A frase foi dita em voz baixa, mas Helena ouviu-a, e seus olhos
fulgiram de momentânea satisfação. Atribuir a orgulho o que era
vergonha e remorso, dava-lhe certa superioridade que a moça julgava
não ter naquele lance. Protestou em favor de seus sentimentos de
gratidão, com a palavra viva, animada, cordial que todos três lhe
conheciam, interrompida a intervalos pela comoção interior, e pelas
lágrimas que lhe escorriam dos olhos, quase exaustos de chorar.
Estácio pôs termo a todas as hesitações.

— Pois bem, disse ele, será isso mais tarde; a lei é por nós; e nossa
vontade é que nos obedeça.

Helena mordeu o lábio com desesperação, mas não respondeu. A
cabeça descaiu-lhe lentamente como ao peso de uma idéia, a mais e
mais opressora. Depois, ergueu-a; os olhos tristes, mais animados dos
últimos raios de uma esperança, dirigiram-se para os de Estácio, que
nessa ocasião pareciam falar as dores todas da paixão sufocada e
rebelde. Ambos eles os baixaram à terra, medrosos de si mesmos.

— Não creio que ela aceite facilmente a sua decisão, disse Melchior a
Estácio, logo que pôde achar-se só com ele. Acautele-se; é capaz de
fugir-nos.

— Crê?

— Não a conhece ainda? A posição em que estes acontecimentos a
deixaram, repugna-lhe mais que tudo. Prefere a miséria à vergonha, e
a idéia de que interiormente não a absolvemos, é o verme que lhe fica
no coração.

De noite, recebeu Estácio uma carta de Salvador, acompanhada de um
pacote.

“Refleti muito durante estas duas horas, dizia ele, e cheguei a uma
conclusão única. Elimino-me. É o meio de conservar a Helena a
consideração e o futuro que lhe não posso dar. Quando esta carta lhe
chegar às mãos, terei desaparecido para sempre. Não me procure, que
é inútil. Irei abençoá-lo de longe. Recaia, entretanto, sobre mim todo o
ressentimento; eu só o mereço, porque só eu o provoquei. Vão as
cartas de Helena; guardo três apenas, como recordação da felicidade
que perdi”.

Estácio teve vontade de ler as cartas de Helena, mas a tempo recuou;
mandou-as dar à moça. Helena, que estava com D. Úrsula, entregouas
a esta.

— São a minha história, disse ela; peço-lhe que as leia e me julgue.

Havia em seus olhos uma expressão que não era usual. Recolheu-se
imediatamente a seu quarto, onde jazeu longo tempo, calada, quieta,
sinistra, o corpo atirado em um sofá, a alma sabe Deus em que
regiões de infinito desespero.

Machado de Assis - HelenaOnde histórias criam vida. Descubra agora