O garoto verde, em algum outro lugar;

102 16 107
                                    

O garoto verde, em algum outro lugar

---

André encostou a bicicleta verde-água na calçada da floricultura "Jardim da Dora", retirando o capacete azul escuro e então limpando os sapatos no carpete antes de entrar.
O sino de aviso lhe recebeu com seu tilintar reconfortante.
André respirou o perfume suave do salão comercial, limpando o suor da testa com um papel descartável ao suspirar.
Não havia ninguém no balcão de cobrança, nem mesmo no entorno dos vasos centrais para mudas ou prateleiras cobertas por folhagens diferentes.
"Ravi?"
Chamou o colega de trabalho, limpando as mãos molhadas de álcool em gel nas calças jeans.
"André!"
A voz reconfortante do chefe chamou, ao mesmo tempo que o senhor de idade avançada abria a porta para o profundo quintal onde a maior parte das mudas era colhida.
Tinha olhos azulados brilhantes por trás dos óculos, um fiapo de grama preso à barba branca cheia.
"Acabei de chegar, o Ravi não veio?"
André sorriu, ajudando o senhor a retirar suas enormes luvas de jardinagem. Perguntava-se de onde vinha tanta energia para todos os afazeres e desprazeres da vida.
"Não, não, ele já chega, perdeu o horário."
Augusto revirou os olhos, rindo.
"O senhor tá com uma cara boa, Seu Augusto."
André sorriu com os lábios, colocando as luvas de lado.
"Boas notícias, caras boas! Um sorriso, menino!"
Pediu, e André forçou os dentes a aparecerem, envergonhado.
"Isso, isso, agora..."
Augusto olhou ao redor, como se preparado para lhe contar uma boa e indiscreta fofoca.
"Lembra daquele moço? O que passa aqui toda Santa manhã?"
O garoto assentiu, alongando as costas bem definidas.
"E não é que ele entrou logo depois que você saiu, André? Uma pena que você não 'tava, menino! Ele veio fazer um pedido de entrega 'pra hoje, deve ser algum almoço de família."
Elaborou, André arqueou as sobrancelhas.
"E isso é... Daqui quarenta minutos. Eram pra namorada dele, aparentemente, mas... Bom, eu coloquei você na entrega!"
André perdeu o sorriso por meio segundo, bochechas corando ao extremo.
"Senhor, ah, não!"
Exclamou, rindo nervosamente com os olhos castanho-esverdeados arregalados em alerta.
"Ah, sim, hoje é seu dia de entrega, André."
O chefe abanou as mãos rechonchudas inocentemente, afastando a ideia de que teria planejado qualquer coisa.
"O Ravi também entrega de sábado, Seu Augusto, o senhor me escolheu de propósito."
Reclamou o empregado, soltando a postura em derrota.
"Eu pensei que você fosse gostar da minha ideia."
O velhinho se lamentou de modo dramático, fingindo mágoa ainda que com olhos risonhos.
"Eu ia gostar se não fosse a quarta vez seguida que você faz isso. Eu acabei de entregar margaridas 'pro menino da padaria por sua causa."
André repreendeu mesmo que, com um sorriso envergonhado, desse a volta no balcão para checar o endereço da nova entrega.
"E eu vou falar mais."
Murmurou, anotando o nome da rua no celular.
"Eu não gosto só de caras, e você me empurra pra eles."
O senhor deu de ombros, sorrindo.
"As moças fazem muita frescura, não são todas as que vêm encomendar flores pros... Como vocês chamam? Crushes, né? Eu acho um absurdo, Andréco, no meu tempo..."
"Isso é longe pra caramba, Seu Augusto!"
André checou sua rota pelo guia da cidade, interrompendo o chefe sem perceber. O senhor deu de ombros ao recolher suas luvas de trabalho.
"Ah, sim, mas nada que as suas pernocas não aguentem!"
Voltando para o garoto, percebeu que falava sozinho; André já corria para o lado de fora, afivelando o capacete com dificuldade antes de partir.

André pedalou e pedalou, xingando todas as forças divinas mentalmente pela quantidade de morros que precisava subir de bicicleta na parte rica da cidade, onde tal "cliente bonitão" havia endereçado a encomenda.
Em tempo recorde, chegou dez minutos antes do horário pedido, permitindo-se descansar perto de uma árvore antes de continuar a pé até o portão branco número 196.
Suspirou, conferiu o endereço e apertou a campainha após colocar seus óculos de armação vermelha. Música vinha do lado de dentro. André sentiu cheiro de salgados típicos de aniversários infantis, engolindo com dificuldade.
Seu estômago roncou, ele ouviu risadas do lado de dentro. Odiava quando não lhe escutavam de primeira.
"Entrega!"
Projetou a voz trêmula para além dos portões, tocando a campainha mais uma vez.
A porta, recortada em um dos lados do metal pintado recentemente, abriu-se com um rangido dolorido quando o jovem conhecido arregalava seus olhos para o arranjo nos braços de André.
"Você é o menino da bicicleta!"
Exclamou com uma risada doce.
André sorriu de maneira educada, adicionando mais um ponto na lista que marcava quantas vezes pessoas mais novas ou consideravelmente mais baixas lhe chamavam de "menino".
"Sim, da bicicleta e das flores."
Riu, entregando o buquê de flores do campo com cuidado.
"Você pagou na compra, então eu só preciso que 'cê assine pra confirmar que recebeu."
André lhe entregou a prancheta e caneta esferográfica que carregava consigo nas entregas, tomando cuidado para evitar qualquer toque desnecessário.
Crianças passaram correndo por trás do rapaz, levando a atenção de André para o enorme jardim da frente, decorado com balões multicoloridos e repleto de mesas postas para convidados. Ele sorriu, perdendo-se no som de músicas pop tocando ao fundo enquanto observava cada detalhe da festa. Confetti se espalhava pela grama, um copo com refrigerante pela metade havia sido abandonado ao pé de uma cadeira.
Adultos conversavam e riam sem se preocuparem com o que as crianças planejavam sozinhas no esconderijo secreto entre um arbusto e a parede do muro mais afastado.

André fechou os olhos, coração retumbando até a garganta pelo desespero instintivo causado em momentos como aquele. Encolheu os pés para perto do corpo, os botões de seu macacão tilintando no escuro.
Escondia-se no vão da escadaria principal, na casa dos gêmeos. Seu porte ainda relativamente pequeno era perfeito para se encaixar entre bicicletas e caixas empoeiradas no jogo de esconde-esconde.
Abaixou a cabeça até os joelhos, controlando a respiração com um sorriso. Ouviu passos apressados subindo as escadas e então o silêncio novamente.
"Ah!"
Ofegou em susto e quase se jogou contra uma das pilhas de caixas quando Gio derrapou para dentro de seu esconderijo, também surpreso ao perceber que André havia chegado antes.
Encararam um ao outro, os óculos enormes de Gio refletindo a luz da lua, que entrava pela pequena janela circular acima dos dois.
"Você não 'tava lá fora?"
O garoto gesticulou, olhos azuis brilhando em desespero.
"Você 'tava lá fora, eu entrei quando te vi!"
André sussurrou de volta.
Ambos encolheram os pescoços ao ouvir Lê cantarolar no corredor do segundo andar.
Adultos riram na sala de jantar. André arquejou.
O guarda noturno soprou seu apito na rua, os primeiros degraus rangeram acima dos dois.
Desesperado para não entregar o esconderijo duplo, puxou Gio pelo braço, jogando-o contra uma das bicicletas, a mão apoiada em seu peito como sinal de "não se mexe, ou vai ser culpa sua!" conforme os passos voltavam a se aproximar da escadaria.

"Leva uns salgadinhos, viu?"
A voz do jovem lhe trouxe de volta à realidade, colocando uma trouxinha de guardanapos repleta de salgadinhos assados e alguns doces de festa.
André sorriu e piscou algumas vezes, ainda processando suas palavras.
"Leva um salgado, uns brigadeiros também. Divide lá com aquele senhor que me atendeu, é o seu chefe né?"
O rapaz completou casualmente.
André não sabia quando havia recebido sua prancheta de volta, muito menos havia visto o outro se afastar para buscar o mimo.
"Ah, não, não precisa."
Gaguejou, mesmo que não planejasse devolver o presente.
"Tá quente pra cacete e já passou da hora do almoço, a gente vai ter comida de festa por, tipo, três semanas, eu te imploro pra levar."
O outro interrompeu, rindo.
André deu um sorriso trêmulo, assentindo timidamente.
"Obrigado. E... Pela encomenda também! Sua namorada vai ficar feliz."
Agradeceu, tentando guardar a comida em sua bolsa estilo carteiro sem sujar seu interior.
"Namorada? Ah, não, as flores são pra minha sobrinha."
O cliente gargalhou ao apontar para uma das crianças correndo no jardim.
A garotinha parecia ter seus seis anos, cabelos loiro-escuros presos em chiquinhas que balançavam conforme se apressava atrás dos amigos.
"Ah. Ah, céus, me desculpa, o meu chefe disse... Ah, não..."
Gaguejou André, corado até as pontas das orelhas quando finalmente percebeu o discreto bóton em formato de coração com as cores distribuídas entre tons de laranja, azul e uma faixa branca no meio.
"O seu chefe deve ter confundido."
Disse com um sorriso torto.

"Aroace, Augusto, seu..."
Xingou em pensamento, caminhando pela vizinhança, a bicicleta ao seu lado.
"Pelo menos eu garanti uns salgados antes dessa humilhação... Ah, cara."
Ele mordeu uma mini-coxinha com um suspiro, misturando seus lamentos ao alívio de matar a fome.
O celular vibrou dentro da bolsa, anunciando a mensagem de toque personalizado enviada por Ravi.
"Eu perdi ohorário de movo já tô no .balcão!!!!!!!!!! Vemn com cuidado!! Traz um refri!!!!!!!!"
"Ele escreveu isso correndo na rua."
Murmurou com um sorriso entretido.
"Levando salgado e brigadeiro, vc almoçou pelo menos?"
André enviou, recostado contra uma árvore para aguardar a resposta.
"Nao fiz nem.xixi saindo de c.asa Dreco"
Ravi se lamentou com mais erros de digitação.
"Te vejo lá então:)"
Retirou seus óculos de hastes vermelhas e os colocou dentro da bolsa antes de montar na bicicleta e seguir de volta à floricultura.

Beijos na esquina da Rua CintilanteOnde histórias criam vida. Descubra agora