O doce-amargo de amores em tons de sépia

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Capítulo Dezenove: O doce-amargo de amores em tons de sépia

"Você já... Já pensou em trabalhar com outra coisa? Tipo, não trabalhar na floricultura, entregando, uh flores."
Gio perguntou com a mesma entoação insegura de um adolescente apresentando um trabalho para o qual não havia se preparado. André sorriu em resposta, assentindo ao estender seu garfo com um tomate cereja espetado até os lábios do outro, que o recebeu após um momento de hesitação.
"Já, sim.
Mas eu decidi que gosto desse emprego. Da estabilidade, e da rotina, sabe? Não é o que eu imaginei que ia acabar fazendo, mas eu gosto."
Com a marmita de André posta entre os dois, dividiam o almoço numa das mesas externas do Café, num jardim pouco espaçoso e com apenas uma árvore mal podada.
"E você, Gio? Pensa em sair daqui?"
O amigo de infância retrucou sua pergunta, seus olhos esverdeados se estreitando quando lhe deu um sorriso terno e educado, ainda que parecesse inquieto.
Gio levou o olhar para trás de André, até as portas de vidro que separavam o interior do Café e o jardim apertado. Do lado de dentro, Mel, Leah e Thiago se apoiavam uns nos outros como três personagens de desenho animado, tentando espiar o almoço não programado e o que aconteceria entre o par.
"Eles nem tentam ser discretos."
Pensou com um suspiro decepcionado.
"Acho que não é uma coisa que vai durar 'pra sempre, trabalhar aqui. E nem algo que eu tenho qualquer paixão sobre.
...Mas ao mesmo tempo, eu não vou dizer que não me divirto."
Respondeu em tom sincero, voltando a se focar na figura sorridente de André, que claramente tentava abstrair a presença da plateia, uma de suas sobrancelhas tremendo vez ou outra.
Ao redor do Café, as ruas da cidade barulhenta foram tomadas por um silêncio visceral, como se entendessem e respeitassem a intimidade do momento.

No pequeno jardim, pássaros observavam dos galhos da única árvore ali plantada, abelhas aconchegavam-se em suas flores e caramujos espiavam debaixo de vasos, todos parecendo assistir a dupla tão intensamente quanto os três amigos que fingiam não estar encarando.
"E... O que exatamente você tem paixão sobre?"
André perguntou de modo terno, ajeitando os óculos de hastes remendadas contra seu nariz reto.
"Ou quem, também serve."
Pensou, ainda com um sorriso paciente repousado nos lábios.
"Acho que música, tipo a minha irmã. Mas ela meio que já 'tá ocupando esse espaço na família, então não tem muito como competir ou se equiparar."
Gio confessou após alguns momentos em silêncio, umedecendo seus lábios antes de continuar.
"Eu sou bom no violão, mas só. Fora que eu não tenho muita motivação 'pra parte social que vem com isso."
Ele deu de ombros, delicadamente passando uma das mãos pela franja azul-desbotado, um suspiro quase imperceptível deixando seus lábios entreabertos.
"Entre uma gêmea musicista e um melhor amigo streamer, acho que eu acabei como o barista mesmo."
Gio forçou uma risada fraca, ruminando um bolinho de arroz frito como quem aprecia o sabor amargo de sua última refeição.
"E só. Não é como se fosse um trabalho ruim, ou que não vale a pena se orgulhar sobre, mas... É difícil não se comparar."
Seus olhos azuis opacos analisaram a expressão sem graça de André, as sardas que salpicavam sua pele beijada pelo sol e o modo que ele lhe fitava; Como se tentasse enxergar cada fuzil queimado dentro de Gio para substituir, polir e reencaixar, e assim fazer com que voltasse a ter o mínimo de luz em seu semblante melancólico.
"Eu imagino."

Com um tilintar do sino posicionado sobre as portas de vidro, duas pessoas entraram e foram cumprimentadas por Thiago. De longe, André podia ver uma silhueta alta e outra mais baixa, ambos conversando com Mel e Leah, que repentinamente pareciam ter perdido o interesse em assistir o almoço semi-romântico.
Gio, ao notar que sua companhia parecia interessada no interior do Café, voltou seu olhar por cima do ombro, imediatamente arregalando os olhos azuis com uma careta quase assombrada.
Perto do balcão de tortas e salgados, Guilherme se curvava sobre o vidro de amostras para conversar com Mel, sorrindo torto conforme falava algo e apontava para seu parceiro, um jovem de cabelos escuros e olhos castanhos simpáticos.
Leah parecia tentar seu melhor para impedir a visão de Guilherme ao seu ex no jardim do café, as mãos apoiadas no ombro do amigo enquanto tagarelava sem parar.
"Ele... Não sabe que eu trabalho aqui, né? Não. Eu não contei, pelo menos. E a Leah não faria isso comigo."
Gio pensou, voltando-se para André outra vez e lhe forçando um sorriso atordoado.
"Meu ex."
Balbuciou como quem aponta um tsunami que se aproxima ao longe. André piscou algumas vezes, confuso.
"Seu... Ex? O alto?"
Gio assentiu em resposta, pousando uma mão trêmula sobre seu rosto gelado.
"Tomara que não pareça que eu não quero que eles se vejam.
Eu que não quero ter que olhar 'pra cara dele. Com aqueles olhos castanhos que me afogam, o nariz meio torto, as sobrancelhas grossas e aquela franja sempre maior do que deveria.
Eu não quero ter que lembrar o quanto amo cada detalhe dele.
...Já basta tudo o que a gente passou no natal e depois.
Fora que eu não respondo por mim quando descobrir quem é esse banana que 'tá ali do lado dele."
André o observou em silêncio, como se esperasse o que Gio decidiria fazer sobre a situação.
"'Cê... Quer dar uma volta? Sair daqui, de repente?"
Perguntou após alguns momentos, percebendo que Gio estava a cada segundo mais distante, perdido dentro de sua própria cabeça.
Gio voltou os olhos azuis tristonhos para o amigo de infância, então assentindo ao umedecer seus lábios.
"Quero. Quero sim."
Murmurou.
André sorriu de forma paciente, levantando-se da mesa e rapidamente recolhendo o que havia trazido.
"Dá 'pra sair pelos fundos ou algo assim? 'Pra... 'Cê não precisar passar por lá?"
Perguntou em tom suave, uma mão pousada sobre o ombro de Gio para lhe oferecer apoio. Gio negou com um gesto tímido, coçando seus pulsos com as pontas das unhas até que sua pele ameaçasse sangrar.
"Eu reconheço ele.
Eu vendi uma suculenta 'pra ele no natal. Lembro por causa do medalhão de lua.
...São Paulo realmente é um ovo, quando 'cê para 'pra pensar."
André tinha os olhos voltados para o interior do Café, inspecionando Guilherme com um semblante desconfiado.
"Em pensar que era seu ex. Talvez eu não tivesse embrulhado o vaso com tanto capricho se soubesse disso na época."
Pensou ao ajeitar os óculos de hastes vermelhas contra o nariz reto.
Do lado de dentro, Guilherme pareceu perceber a presença de Gio no jardim, imediatamente deixando de prestar atenção no que Leah dizia e fitando o ex com a cabeça tombada, como um cãozinho vira-lata que implorava para ser adotado.
"Merda. Não me olha assim..."
Com o peso de uma dúzia de sacos de areia que o olhar de Guilherme adicionava aos seus ombros, Gio tomou a mão de André, puxando-o consigo para o lado de dentro.
"Licença."
Murmurou ao ignorar uma provocação baixa feita por Mel.
Passando diretamente entre Guilherme e Aquiles, Gio trombou o ombro com o de seu ex enquanto guiava o caminho para o vestuário dos funcionários.
André tropeçou atrás do mais baixo sem protestar, ainda que com dificuldades de acompanhar seu ritmo frustrado de passos largos.
Assim que fechou a porta, Gio empurrou André contra um dos armários de metal, o estrondo do impacto sendo abafado pelas batidas inconstantes e aceleradas de seu coração.
"Gio, tudo-"
A pergunta de André foi interrompida quando Gio agarrou a gola de sua camisa, puxando-o nas pontas dos pés para um beijo necessitado.
Como da primeira vez, no ano novo, borboletas explodiram pelo estômago do mais alto, roçando suas asas no caminho à garganta e se transformando num suspiro apaixonado que deixou seus lábios assim que se afastaram novamente.
Gio grunhiu baixo, murmurando um pedido de desculpas ao se sentar no único banco disponível ali. Ao redor dos dois, partículas de poeira eram visíveis atravessando o feixe de luz que entrava pela janela mais próxima, trazendo a paz silenciosa de uma manhã de domingo em tempos distantes.
Curvado, Gio tinha o rosto coberto pelas mechas tingidas de azul desbotado, os dedos ossudos fincados nos próprios joelhos.
"...Tudo bem?"
André retomou sua pergunta em tom terno, sentando-se no espaço disponível ao lado de Gio e se inclinando para que o outro pudesse ver seu rosto.
Seus olhos esverdeados permaneciam carinhosos e preocupados, tão pacientes como sempre foram.
"Sei lá."
Gio reclamou baixo.
Evitava seu olhar, as bochechas formigando pela proximidade de André.
"Bom, pelo menos não é um não."
O outro trombou o ombro com o seu, tentando lhe arrancar um sorriso.
Gio não respondeu, o rosto baixo e as mãos juntas, outra vez arranhando seus pulsos por debaixo das pulseiras.
André gentilmente retirou as mãos de Gio de seu colo, segurando-as entre as suas e impedindo que continuasse a se machucar em silêncio.
"Quer falar sobre o seu ex?"
Perguntou quase num sussurro.
Gio negou com a cabeça.
"Dá no mesmo que ir adotar um cachorro e falar 'pros donos do abrigo que o seu pet antigo morreu de fome."
Ele murmurou em tom sombrio, levantando os olhos exaustos para André, suas olheiras ainda mais escuras por conta do lápis de olho borrado e misturado com lágrimas repentinas.
"Gio, eu não sou um pet."
André disse de modo carinhoso.
"E eu não dependo de você 'pra viver. Acho que o seu ex também não, já que ele 'tá ali fora."
Continuou, usando seus polegares para acariciar as costas das mãos de Gio em movimentos circulares e constantes.
"Mas eu fico feliz de já estar sendo considerado o suficiente 'pra ser comparado com ele."
Brincou, assistindo conforme um sorriso leve surgia nos lábios do outro.
"É, eu sei. Eu não quis dizer isso."
Gio desculpou-se baixo, as mãos ainda juntas das de André, suas várias pulseiras vez ou outra tilintando com os carinhos.
"Eu entendi. E também, uh, acho que não é bem assim.
Às vezes as pessoas não dão certo, e não é necessariamente culpa de alguém.
Eu não sei realmente o que aconteceu, mas... Você parece ter carinho por ele, pelo jeito que isso acabou virando tristeza. Faz sentido?"
André pausou e umedeceu seus lábios, respirando fundo antes de continuar.
"Acho que 'cê não tem cara de quem machucaria outra pessoa de propósito.
Isso não quer dizer que não tenha machucado, só... Não de propósito."
Gio ouviu em silêncio, os olhos baixos outra vez, como se esperasse uma bronca ou um adeus.
Uma pancada, talvez.
De repente, um beijo na nuca.
"Quer falar alguma coisa?"
André perguntou baixo, fitando-o com o semblante paciente habitual.
"Eu não sei.
Eu nem sequer sei explicar tudo o que aconteceu sem fazer parecer que eu sou a pior pessoa 'pra você ter reencontrado. A pior pessoa, num geral."
Pensou, levantando seu rosto para se encontrar refletido nos olhos esverdeados de André.
"Eu queria me enxergar do jeito que você parece me ver.
Imperfeito e imaturo, mas por ainda ser aquele menino loiro que era seu vizinho.
Queria ter tempo de mudar o que eu fiz com esse menino."
Silenciosamente, Gio apoiou as mãos nas coxas de André para se inclinar na sua direção, oferecendo-lhe um beijo demorado no canto dos lábios antes de se afastar outra vez.
André respirou fundo antes de envolver o rosto de Gio entre as mãos, apertando suas bochechas magras para que fizesse um bico, seu coração palpitando dolorosamente ao decidir ignorar o gesto do outro, por hora.
"É como se a dor dele fosse palpável, e mesmo assim..."
André limpou as lágrimas que ameaçavam pingar dos cílios compridos de Gio, acabando com os dedões borrados de maquiagem antiga.
"Gio, você precisa aprender a falar.
Aprender a botar 'pra fora todo esse... Mar que 'cê tem aí dentro.
Dá 'pra ver você se afogando no que sente, sem colete salva-vidas e sem pedir ajuda."
Disse com os olhos fixos nos do mais baixo, os óculos escorregando até a ponta do nariz por estar curvado para que seus rostos ficassem próximos.
Gio não respondeu, sentindo um gosto amargo subir de sua garganta até o fundo da língua.
"'Cê precisa de terapia. Urgente."
André acrescentou num sussurro firme, ainda que amoroso, mantendo suas testas encostadas por alguns segundos antes de lhe dar um sorriso compreensivo.
"E também de, tipo, uma faxina nessa sala. Mal dá 'pra respirar aqui."
Ambos levantaram os rostos, olhando ao redor do depósito empoeirado que servia de vestiário. Gio entortou o nariz, quase ofendido ao voltar as mãos para seu próprio colo.
Seus pulsos ardiam debaixo das pulseiras apertadas.
Seu coração parecia estar comprimido numa pequena pílula pulsante, recostada no canto de seu peito para ser ingerida junto de um copo cheio de vodka quando voltasse para casa.
"Eu limpei o melhor que deu 'pro tempo que eu tive. Quando eu comecei a trabalhar aqui, tinha gozo seco nesse banco."
Reclamou, então sorrindo quando André se levantou num tropeço.

"Reclamou, então sorrindo quando André se levantou num tropeço

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Leah, por Tsunyoi no IG 🪻💜

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⏰ Última atualização: Jul 22, 2023 ⏰

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