Olhos brilhantes, muito longe da Rua Cintilante

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Capítulo Quinze: Olhos brilhantes, muito longe da Rua Cintilante

Gio possuía completa noção de que o silêncio abafado de seu quarto havia deixado de ser acolhedor muitos anos atrás.
Tedioso, sufocante. Quase dolorido.
Era frio, com seu ar parado e o eco de memórias inalcançáveis assombrando Gio toda vez que deitava a cabeça para dormir.
Durante os anos isolado, sua visão foi se tornando cada vez mais cinzenta e borrada até que não pudesse ver nada além de suas próprias mãos, pés descalços e o uniforme da escola que frequentava com Victor, já mais velho, iluminados precariamente pela luz nublada de seu dia a dia repetitivo.
"São blocos inteiros de memória que eu simplesmente nunca vou conseguir alcançar. Pelo menos não consciente, ou sem uma boa hipnose."
Assim descrevia os primeiros doze anos de sua vida.

Já era madrugada na Rua Cintilante.
Do lado de fora, o orvalho da noite tilintava finas camadas de brilhante pelos jardins e asfalto da vizinhança, trazendo consigo o ar úmido ausente durante os dias de calor escaldante em São Paulo.
André se esforçou para enxergar Gio através da escuridão do antigo quarto dividido pelos gêmeos.
Dormia em um colchão entre as duas camas paralelas, onde Lê roncava de um lado e Gio se encolhia contra a parede de outro.
Nas estantes acima, brinquedos e pelúcias empoeiradas decoravam o ambiente que mesclava tons de azul e branco, guardando os três meninos com suas sombras amedrontadoras sempre que um carro passava na rua pacata.
Sem os barulhos da cidade movimentada, o matagal do jardim ganhava vida. André ouvia insetos e animais não identificados rastejando, grunhindo e acompanhando todos os seus movimentos, produtos de sua imaginação fértil.
"Ele já dormiu?"
Atentou-se à respiração silenciosa de Gio, abafada pelos roncos e grunhidos de Lê, na cama oposta.
André levantou a cabeça de seu travesseiro, apertando os olhos esverdeados e fitando a figura pequena do amigo encolhido em seus cobertores, abraçado ao cachorrinho de pelúcia emprestado.
Devagar, estendeu uma mão, esticando-se e contorcendo o corpo para, por um breve momento, afagar os cabelos loiros de Gio.
"Durma bem."
Então, voltou ao seu colchão com o coração martelando contra as costelas.
"Ah, Deus..."
Lamentou-se, quase sendo acertado pelo pé de Lê, que se revirava em mais um sonho agitado.
André puxou os cobertores até sua testa, escondendo-se da realidade que queimava seu peito e subia à garganta como se fosse chacoalhado pelos pés após um enorme prato de sopa.
"Gosto dele. Acho que gosto dele."

Fogos de artifício seriam muito clichê, principalmente em pleno réveillon.
Um mergulho do alto de um penhasco diretamente para a água gelada e escura do mar, talvez nem tanto.
"Como sequer descrever o que eu sinto sem ter que criar uma comparação poética?"
André e Gio fitaram um ao outro pelo que pareceu uma eternidade.
Ainda tentavam absorver os últimos acontecimentos variando desde o nervosismo de André, o beijo ao som dos fogos e então o silêncio constrangedor que veio a seguir, alimentado pela impressão de que todos na rua e bares ao redor pareciam comemorar de modo mais apaixonado, ou feliz, que os dois.
"Cores.
'Pra um exercício de aquecimento de escrita, eu descrevi uma vez que a sensação do amor à primeira vista é... É como se você visse o mundo inteiro em preto e branco, por toda a sua vida.
E então, de repente, alguém força o caminho 'pra dentro da sua cabeça e tinge cada pedaço do seu mundo.
De dentro 'pra fora.
E a pessoa se agarra ali, 'pra não sair pelo resto do dia. De repente, você continua colorido até o seu último suspiro, dependendo de você.
Se aquele for seu primeiro amor. Infantil, nostálgico e dolorido.
Seria muita sorte, no entanto."
André quis desviar o olhar, encontrando-se preso nos olhos de Gio enquanto sentia o rosto esquentar junto de sua garganta.
"Seria muita sorte encontrar todas essas cores de novo, principalmente se quem causou isso agora vive num mundo tão cinza."
A sensação de, por um segundo sequer, permitir a si mesmo imaginar o encontro entre almas gêmeas era extasiante. Deixou que aquele formigamento continuasse, suavizando a expressão apreensiva e relaxando seu corpo tenso de postura sempre perfeita.
Um jovem qualquer esbarrou contra Gio ao passar, fazendo com que fosse lançado diretamente aos braços de André, o rosto quente e uma das sobrancelhas tremendo.
"Babaca."
Sibilou irritado, o mais alto o ajudando a recobrar seu equilíbrio nos coturnos de plataforma, o coração outra vez acelerado e retumbando como tambores cerimoniais contra os ouvidos.
"Tudo bem?"
André perguntou em tom suave, as pontas dos dedos ainda delicadamente roçando nos cotovelos de Gio, parecendo sentir medo de que o outro caísse sem seu apoio.
"Você não prefere entrar no bar?"
Gio interrompeu, os olhos azuis afiados fitando cada detalhe da expressão gentil de André, que assentiu, sorrindo de forma educada e confusa.
Antes de atravessarem, Gio segurou seu pulso, puxando-o para que cruzassem mais rápido por fora da faixa de pedestres.

Beijos na esquina da Rua CintilanteOnde histórias criam vida. Descubra agora