Mesmo contrariando todo senso de sobrevivência, Melissa não hesitou em acolher Jessie. Era mais uma boca para alimentar, mas era a melhor amiga de sua filha.
Desde que Jessie chegou, Melissa não perguntou nada. Ficava sempre distante, pensativa, fazendo sabe-se lá o que.
A casa adentrou em estado de silêncio profundo. Charlie e Melissa foram fazer algo na lavanderia e deixaram Jessie sozinha na sala. Ela fitava o vazio, estava longe da realidade. Havia algo turbulento em sua cabeça, algo macabro, desconhecido.
Um som esquisito veio da lavanderia. Quando Jessie pensou em verificar, Charlie surgiu de costas da cozinha. Seu cabelo estava preso atrás da cabeça e ela vestia uma camisa branca levemente grande para seu tamanho. Um objeto grande surgiu em suas mãos, e Charlie estava com dificuldades para carrega-lo.
- Cuidado com a curva! - Disse Melissa com uma voz sufocada.
A anfitriã transpareceu a parede da cozinha, distribuindo o peso do objeto para as duas.
- Querem ajuda? - Perguntou Jessie.
- Não, não. - Respondeu Melissa. - Estou velha, mas nem tanto! - Ela riu de si mesma.
Era uma cama, ou o suporte empoeirado de uma. Com esforço, estavam levando-a para o quarto de Charlie.
- Não entendo porque a senhora guarda uma cama no quarto de tranqueiras! - Comentou Charlie. - Ela é meio inútil, não?
- Não agora. - Respondeu Melissa com um riso ameno e indicando Jessie com gesto de cabeça. - Aliás, seu quarto era de hóspedes, se lembra?
Charlie teria dito algo inteligente, mas preferiu poupar o fôlego. Com a ajuda de Jessie, passaram o suporte pela porta com imensa dificuldade, e então largaram o peso num baque surdo.
Melissa deu dois toques no sopé da cama e perguntou:
- Acho que vocês não se incomodariam se eu juntasse as duas camas, né?
Melissa jogou o corpo para trás, fazendo alguns ossos de sua coluna estralarem. Sim, aquilo doeu.
- O quarto tem pouco espaço, então acho que é o único jeito. - Completou.
Por um segundo, Jessie ficou fora da realidade. Piscou algumas vezes e então respondeu:
- Tanto faz... Mas meu lado é o direito, sem discussão.
Charlie sorriu e esboçou um quase riso.
Jessie era uma das poucas pessoas que conseguiam fazer Charlie rir. Tinha um dom especial para isso.
Melissa foi pegar o colchão no quarto de tranqueiras, deixando Jessie e Charlie a sós. O clima parecia mais favorável se comparado a momentos anteriores. Estranhamente, como se nada tivesse ocorrido, Jessie não esboçava traço de fadiga ou dor. Bom, era melhor do que vê-la chorando na mesa da sala.
- Sua mãe é muito gentil. Sério, obrigada. - Comentou Jessie, jogando o cabelo para trás.
- Ah... também não é a primeira vez que dormimos na mesma cama. - Comentou Charlie. - Se lembra daquela vez em que fomos à praia e dividimos uma cama pequena? Você ficava se mexendo a noite inteira reclamando que estava com calor!
- Não tenho culpa se você emite muito calor...
Como se tivesse tomado um susto, Jessie ergueu as sobrancelhas e corou. Ficou agitada por dois segundos e se acalmou.
A casa ficou em silêncio. Curiosamente, Jessie já esteve ali dois anos atrás, nas férias de verão. Mas, em alguns momentos, Jessie aparentava não conhecer o lugar. Observava cada canto como se fosse novo, mesmo que a casa não tivesse mudado nada nesse intervalo de tempo. Jessie não tinha uma memória muito boa, de qualquer forma.
- Cuidado, estou chegando! - Disse Melissa, vindo com um colchão nos braços.
Melissa erguia o colchão com dificuldade, arrastando-o no chão enquanto reproduzia o som de uma ambulância com a boca sem motivo algum. Aquilo era tudo, menos o som de uma ambulância.
Largado sobre o suporte, o colchão levantou uma fina camada de poeira. Algumas batidas de leve e o colchão estava pronto. Então Melissa pediu que Charlie a ajudasse a reposicionar as camas no quarto.
- Jessie. - Chamou Melissa, erguendo a cama.
Ela teve sua atenção.
- Pegue a capa do colchão no armário de Charlie, por favor. Está na parte de baixo.
Jessie assentiu.
No armário, encontrou várias roupas causais em cabides e, embaixo destas, algumas pilhas de itens organizados. Vasculhou um pouco e encontrou uma capa de colchão branca. Haviam algumas calças aqui, algumas camisas ali, algumas... (ops).
Mas algo em específico chamou a atenção de Jessie.
Do lado direito, um tecido se destacava entre as cores de tom frio. Um cachecol vermelho. Aquilo já passara pela sua vista milhares de vezes, mas ela nunca deu atenção. Por que Charlie sempre o usava no colégio? Ela nunca perguntou. Jessie quis tocá-lo, por curiosidade.
- Jessie? - Chamou Melissa.
Ela tomou um susto, como se tivesse sido pega no flagra.
- Sim?
- A capa do colchão.
- Ah, foi mal... me distraí. - Respondeu.
Charlie ignorou, mas não lhe passou despercebido. Ela já havia falado a Jessie sobre o cachecol.
Reposicionaram a cama de tal forma que ficasse paralela à janela. Melissa saiu do quarto e, novamente, tudo ficou em silêncio. Jessie por algum motivo começou a andar em círculos.
"Ela tem agido meio estranho desde que chegou...", pensou Charlie. Claro, ela não esperava algo normal de alguém que acabou de perder os pais.
Quando notou, Jessie estava em frente a sua estante de livros. Ela procurava de ponta a ponta, fitando a prateleira como se ela pudesse sumir num piscar de olhos.
Por um instante, ela se interessou em um livro de capa marrom, pouco vistoso. Charlie não sabia qual era o gosto de Jessie por livros, até porque nunca a viu lendo um.
- Eu posso pegar? - Perguntou.
- Sim, claro.
Jessie esboçou um sorriso descontraído e puxou o livro da estante. Curiosamente, aquele era um dos poucos livros da estante que Charlie não se lembrava de ter lido. O livro não chamava muito sua atenção.
O livro não era velho, mas estava bastante desgastado, como se alguém o tivesse lido várias vezes. Jessie mal havia fuçado as páginas quando algo de dentro do livro caiu no chão. Jessie recolheu aquilo do chão e olhou um pouco surpresa. "Uma foto", constou em voz baixa.
Charlie pegou o papel e olhou o conteúdo. A foto foi tirada uns dez anos atrás, mas estava bem conservada. A imagem mostrava Marques sorrindo segurando Charlie nos braços. Atrás deles estava sua casa, que não havia mudado muito desde então.
Charlie permaneceu fitando a foto por tempo suficiente para esquecer que Jessie estava ali.
- Sabe me dizer em que página essa foto estava?
- Não... ela apenas caiu. - Respondeu Jessie. - Se quiser, eu coloco o livro no lugar.
- Não, não. Pode ficar com ele. Obrigada.
Ela devia ter quase quatro anos naquela foto. Seus olhos se destacavam com o brilho do sol, que parecia incomoda-la. Marques usava uma camisa de manga longa e calças jeans. Charlie trajava o uniforme de sua antiga escola; uma saia que chegava aos joelhos e uma camisa social branca. Eram tempos felizes, tempos em que ela costumava sorrir mais.
Charlie se sentiu triste, conturbada. Aquele tempo nunca mais voltaria.
Nunca.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Dark Place - The Madhouse
Terror[Volume 1 da saga "Dark Place" concluído] Dark Place narra sobre um mundo completamente arruinado. Todos os governos do mundo foram derrubados e uma quantidade incalculável de pessoas foram mortas em questão de poucos meses. O cerne da discórdia é c...