Nem arranhou a superfície
Penso que mereço o sonho, mas não mereço o sofrimento
Eu quero a chama sem o queimar
Mas não consigo achar meu propósito já que não sei qual é o meu valor
Deep Water – American Authors (Acoustic)
Volto a consciência, mas não abro os olhos. Tiro as cobertas de cima de mim enquanto decido se levanto ou não, mas quando meu estômago ronca de fome vejo que não tenho mesmo muita escolha. Jogo os pés para fora da cama e finalmente me sento. Vou até o banheiro que se conecta a outro quarto e passo a mão pelo rosto.
A barba por fazer arranha a palma da minha mão e tomo coragem para ver o reflexo que vai me encara. O homem apático que me tornei só me faz perceber que estou em pedaços por causa dela outra vez.
Depois que Sabrina me disse, naquela noite, que queria o divorcio e senti o mundo girar para fora do eixo, ela colocou algumas mudas de roupa numa pequena mala e saiu de casa. Isso foi há duas semanas e quando vi o fim de semana se aproximar uma segunda vez, sem que atendesse minhas ligações ou mandasse algum aviso de que conversaríamos sobre aquilo, não consegui mais ficar no apartamento.
Não sem Sabrina ali também. Aquele espaço é nosso, não dá para apenas um.
Pego o aparelho para fazer a barba logo depois de passar a espuma de barbear e dou um jeito no meu rosto. Quando enxugo o rosto, percebo que fazer a barba não melhora o estado real em que me encontro.
Como algumas torradas com café puro e pego minha companheira, a única que me restou para expressar o que sinto, minha câmera. Todas as fotos que tirei desde ontem, quando cheguei a casa de praia, parecem tão nostálgicas, tristes... Refletem exatamente meus sentimentos. Passo pelas fotografias que registrei e começo a pensar que as vezes precisamos de grandes impactos para entender que devemos seguir em frente novamente.
Paro quando me sinto ser observado. Olho para o lado e vejo Sabrina parada, me olhando da entrada. Está de botas de cano curto, o tipo que adora, um jeans surrado e uma blusa branca de botões. Seu jeito despojado, mas bem arrumado, tão característico desde que a conheço.
Quero dar-lhe as costas, entretanto, ao mesmo tempo, quero ir até ela e abraça-la, porque veio até aqui. Porque, assim como eu, há semanas atrás, sabia exatamente onde tinha vindo me refugiar.
— Não consegui ficar no apartamento — digo ainda que não tenha perguntado nada. — Não consegui ficar lá, parecia...
— Solitário demais — termina e assente. — Eu sei. Também não consegui ficar lá da outra vez.
— Sempre que olhava para a parede da sala lembrava de você — abro um sorriso, triste.
O sorriso que me oferece há compreensão e um toque de tristeza também.
— A parede que você nunca terminou de pintar e escondeu o que restava com o móvel — comenta e ergo as sobrancelhas, porque não sabia que ela havia descoberto e ela revela: — Eu vi quando tentei mudar os móveis de lugar, mas resolvi fingir que não tinha visto nada, para você não se sentir mal.
Lembro que realmente houve um período que Sabrina cismou que queria dar uma "repaginada" no apartamento, mudar os móveis de lugar para abrir mais espaço ou qualquer coisa do tipo e, de repente, como que do dia para a noite, simplesmente não falou mais nada.
Quando perguntei naquele momento o porquê ela não havia mudado nada de lugar, Sabrina apenas deu de ombros e sorriu dizendo que tudo parecia perfeito do jeito que estava, pois era uma perfeita imperfeição que fazia parte da nossa história. Não havia entendido o que quis dizer e havia colocado a culpa nas fases da lua.

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Doce Amargo
Historia CortaDoce Amargo - Parte I Com mais de sete anos ao lado da mesma pessoa, é possível pensar que a conhece. Mas Cézar jamais imaginou que estava tão enganado quanto a isso. Não passava por sua cabeça que Sabrina, a mulher que aceitou construir um futuro a...