Sobre os Sonhos

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—Desculpe pelo atraso, já estou chegando.

— Tudo bem, Yonos. Só não deixe que se repita...

Eu estava no meio da ligação enquanto andava para o trabalho quando um rapaz de bicicleta pegou o celular de minha mão e saiu pedalando. Eu corri atrás dele e surpreendentemente consegui alcançá-lo. Peguei meu celular de volta. Então ele saiu de cima de bicicleta, se aproximou e desferiu um fortíssimo soco no meu maxilar. Caí no chão.

Quando abri os olhos, estava tudo escuro, não conseguia ver nada. Tentei levantar uma mão. Também não consegui. Meu corpo todo estava paralisado. Será que um soco fez tudo isso comigo? Apertei bem os olhos e tentei enxergar alguma coisa, sem sucesso.

Só então lembrei da minha situação. Era um pobre cego, surdo e tetraplégico. Preferiria ter apenas perdido meu celular a viver nessa situação. Preferiria mil vezes.

Os sonhos, mesmo os ruins, eram uma escapatória do mundo monótono e incapacitante no qual me encontrava enquanto acordado. Nos sonhos, conseguia me mover e captar informações do mundo exterior, em contraste com a vida real, onde ficava preso em minha cabeça o dia inteiro.

Mesmo na vez que tive paralisia do sono, foi melhor do que estar acordado. Eu estou paralisado de qualquer jeito, e pelo menos na paralisia do sono eu tinha alucinações visuais e sonoras. Fiquei com medo dos sons e dos vultos que vi, achando que alguém havia invadido a casa, mas pelo menos alguma coisa parecia estar acontecendo.

Após lembrar da minha situação, caí no choro. Sentia saudades de ir ao trabalho. Sentia saudades de falar ao telefone. Sentia saudades de ver, de ouvir e de andar...

Me recompus. E comecei a pensar sobre a próxima história que contaria ao Erick. O diálogo que aconteceu em minha mente foi mais ou menos assim:

— Ok. Comecemos pensando sobre o ponto central da história. Pode ser um personagem, um lugar, um acontecimento, qualquer coisa.

— Vamos com um personagem mesmo. Pode ser sobre um estudante que gosta de sopas...

—Não, parece chato. Depois podemos explorar essa ideia, mas eu pensei em ser um cara que do nada vira chefe de uma tribo e tem que lidar com o poder e influência recém adquiridos.

— É uma boa. Aí ele pode começar sendo bonzinho e acabar sendo mal. Mas como ele vai chegar à essa posição?

— Ele pode ter conseguido... Não, deixa pra lá...

— Ele pode ter sido atingido por um raio e ficado com aquelas cicatrizes na forma do raio. Aí a tribo pode interpretar essas cicatrizes como um sinal divino...

Senti Hanna acordando ao meu lado. Ela tinha o costume de me beijar antes de ir ao trabalho, mas dessa vez não o fez. Logo Erick chegou. Depois de mais alguma tempo pensando, contei minha ideia para ele.

Erick já estava cuidando de mim há uma semana, me alimentando, trocando minha fralda e passando o tempo ao meu lado, mas, naquele dia, ele também me deu banho. Essa costumava ser uma tarefa de Hanna.

— Por que você está me dando banho, e não a Hanna?

Foi embora. Eu dormir aqui — respondeu ele, pacientemente.

Fiquei em choque. Ele "disse" poucas palavras, mas o que eu "ouvi" foi bem completo:

— Hanna te abandonou. Eu vou morar aqui para poder cuidar de você 24 horas por dia.

No final do dia, Hanna não apareceu. Nem no dia seguinte, nem no próximo ou em qualquer um dos que se seguiram. Ela realmente me abandonara. Já devia estar planejando isso há algum tempo. Por isso não me beijou ao sair. Já não me amava mais.

Cego, Surdo e TetraplégicoOnde histórias criam vida. Descubra agora