"A casa é de quem vive nela!" Dito assim, parece óbvio. Mas para nós, "os meninos da Célia", não era. Nós achávamos que a casa era para ser cuidada, organizada e limpa pelas mães. Na vizinhança toda era assim. As mães cuidavam dos filhos, da casa e do marido. Era natural as mulheres passarem o dia inteiro cuidando das tarefas domésticas. Mas minha mãe dizia que não tinha nada de natural nessa história. E que nós, "os meninos dela", e o "pai de vocês", não tínhamos uma escrava dentro de casa. E exclamava: "Vocês têm de aprender a se virar! Na minha falta, como é que fica? Vão andar molambentos e viver num chiqueiro!?"
O argumento da mamãe nos convenceu da necessidade de nossa independência. Daí, aprendemos a pregar botões, fazer bainha e alinhavar as costuras. Arrumar cozinha, lavar e higienizar o banheiro, varrer e passar pano molhado na casa toda.
Lembro-me que todo final de ano, em dezembro, mamãe nos levava à cabeceira d'Água Limpa para arear vasilhas. Uma vez, a cada quinze dias, íamos com ela na Pedra para bater, esfregar, lavar, quarar e torcer as roupas de cama. Os cobertores grossos eram esfregados com as pisadas desencontradas de nossos pés. Para torcer, mamãe segurava numa ponta do cobertor e "os meninos dela", na outra. E aquilo tudo virava um cabo de guerra, uma grande brincadeira de meninos. Depois, cada um lavava seu próprio pijama.
A vizinhança achava um absurdo "aquela mãe" botar "aqueles três..." para fazer "coisas de menina". A gente nem se importava. Nós gostávamos da farra de pisar na água limpa da praia.
Anos mais tarde, depois da morte do "pai de vocês", "aquela mãe" também se foi embora.
Que eu me lembre, foi a partir dos treze anos de idade, que eu me enfiei dentro dos livros. Li toda a obra de José Mauro de Vasconcelos e todos os livros de José Lins do Rego. E depois, sem me fazer de rogado, fui morar no "Sítio..." do Monteiro Lobato. Os poemas de Cecília Meireles e as crônicas e romances de Raquel de Queiroz me alimentaram. E me sustentam até hoje.
Escrevo para preencher um desamparo e um vazio enorme que insistem em morar dentro de mim. Cada um de nós tem um jeito de afrontar e enfrentar a morte.
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NARCISO CEGO
Short StoryNARCISO CEGO: NÃO HÁ ESPELHO QUE NOS TIRE DE NÓS MESMOS É um livro de contos miúdos, de prosa fiada e tecida na roça. Tem cheiro de mato, flor de laranjeira, capoeira e mata nativa. Tem gosto de pasto, arado de terra, vara de pesca, barro, lagoa, r...