DONA CLARA, NOSSA PROFESSORA DO PRIMÁRIO

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Em menino, aos 7 anos de idade, fui o centro das atenções no Primário.

Enquanto a professora dona Clara ainda se apresentava para a nossa turma, a diretora da escola entrou de forma grosseira na sala. À sua frente ela trazia um envelope de papel pardo, cuidadosamente enrolado em forma de um canudo. E esse canudo de papel estava na sua mão direita e era batido feito martelo na sua mão esquerda. De modo a fazer bastante barulho e assustar as crianças. Ela entrou invadindo a sala de aula, literalmente. E nos encarando a todos bem no fundo dos olhos. Pigarreou; fechou bem a cara; chibatou o canudo de papel no tampo da mesa e perguntou, usando de muita firmeza e ironia: "Quem é esse Mário Márcio de Quadros, filho ILEGÍTIMO de...?", E soletrou, aos gritos e desrespeitosamente, o nome do meu pai e o nome da minha mãe. Depois abandonou o canudo de papel sobre a mesa, de modo abrasivo e atrevido. E saiu correndo fila, pisando duro no chão.

À época, como era costume, levantei o dedo e coloquei-me de pé ao lado da carteira. E de cabeça baixa, encarando o chão, dei ouvidos à diretora. E ela, dirigindo-se a mim como se eu fosse um delinquente, desabafou interrogativa: "Pois é, Seu Mário!" Deu um tempo para o silêncio, voltou-se para mim e agastada gritou: "Levanta essa cabeça, menino!" E depois me encarou firme nos olhos. E repetiu, enojada com minha presença: "Pois é, Seu Mário!", elevando novamente e de forma hostil e deselegante o tom de sua voz. Mas agora, à procura de aprovação da professora. Dona Clara, assim como nós, não fazia ideia do que se tratava. E aquele arranhado e grave "Pois é, Seu Mário!" foi plantado no ar, de novo. Daí ela exigiu que eu olhasse fundo nos olhos dela. Incomodada, apontou seu dedo indicador no meu nariz. E desabafou: "Eu estou de olho no senhor, viu!?" Voltou-se para a nossa turma e advertiu: "Aliás, estou de olho em todos os pardinhos e ilegítimos da escola, ouviram?" Em marcha militar, correndo fila, saiu da sala de aula fazendo crítica:

- "Ilegítimo! era só o que me faltava!" Bateu firme a porta. E desguardou o silêncio.

Assim que a diretora saiu da sala de aula, nossa turma se agitou. Levantamos de nossas carteiras e disparamos a falar todos ao mesmo tempo, sem dar ouvidos a ninguém. Barulhentos, meninos e meninas saíram de suas fileiras e se ajuntaram no centro da sala à procura de uma explicação da professora. Afinal, o que aquela palavra "i-le-gí-ti-mo" tinha de tão ruim assim? Aliás, como se escrevia aquele adjetivo carregado de vogais? Particularmente, eu nem sabia que suportava o peso daquele Atlas nas minhas costas. E ignorava o que aquela palavra dizia das pessoas que a carregavam. Humilhado, não levantei da minha carteira. E nem queria saber o que aquela expressão: filho ilegítimo, estabelecia. Nem conhecer o tamanho, dimensão e peso dela, dentro e fora da escola.

A primeira atitude da dona Clara foi bater firme aquele canudo de papel pardo no tampo da mesa, que se desfez em pedaços e caiu pelo chão. Voltamos todos para os nossos lugares. E nos guardamos dentro de nós. Assentamos nossas cabeças no tampo da mesa. Devoramos a agitação, mas nossos corações batiam em disparo. Daí, dona Clara pediu que ficássemos todos de pé ao lado das carteiras e a acompanhasse no exercício de relaxamento. Assim fizemos. Assim ficamos por um bom tempo. Até desguardar a paz e replantar o silêncio dentro de nós. Ao final do exercício, dona Clara pediu que ocupássemos nossos lugares de novo.

E de pé, no centro da sala, nossa professora disse que a primeira missão dela ali naquela escola era despertar em nós a gentileza, o cuidado e o respeito entre todos. Aprender a ler e a escrever; decorar a tabuada e desenvolver as 4 operações era muito fácil. O difícil era ser gente melhor a cada dia. E tratar todas as pessoas com deferência, respeito e cordialidade. E evitar rotular e a criar barreiras e distâncias ou diferenças entre as criaturas de Deus. Dar ouvidos é se fazer ouvir. Enxergar as pessoas é ser visto por elas. Acolhê-las é ser abraçado e acolhido. Legítimos ou ilegítimos éramos todos filhos de nossos pais. A vida é um milagre a ser celebrado. E não caberia a nenhum de nós julgar ou condenar as pessoas por suas escolhas.

E completou:

O que a nossa diretora fez hoje foi muito feio. Não se entra numa sala de aula sem bater na porta; ou sem pedir a permissão da professora para entrar. A sala de aula de aula é um lugar sagrado. Não se embarca num barco sem ser convidado. E pior, desrespeitar as crianças e ignorar a presença e a autoridade máxima de uma professora dentro de sala, é uma transgressão grave. De nada valerá a nossa educação se ela não transformar nosso modo de ser e nosso jeito de agir no mundo. Educado e elegante é quem sem importa com o outro. E se coloca no lugar dele. E vive e sofre a sua dor. Eu me importo com vocês todos. E que fique bem claro a partir de hoje: não vou tolerar e nem permitir que ninguém, seja quer for, venha desrespeitar vocês na minha presença.

Sem nos falar nada de si mesma, dona Clara disse quem era. E o que queria e esperava de nós.  

NARCISO CEGOOnde histórias criam vida. Descubra agora