Calças velhas, amarrotadas, cheias de dobras, rasgos e remendos. Pés descalços e sujos de terra vermelha. Barbas enormes e corpo peludo. Cabelo grudado na cabeça e embrulhado por um tecido grosseiro de juta, feito turbante. Menos de 1 metro e 50 de altura. Negro retinto, magro e miúdo. Dono de uma voz grave, sonora e assombrosa. Pelos bairros, cidade afora, Zé Pedro, saco de esterco às costas, passava gritando impropérios. Todos os dias, nos mesmos horários, de ponta aponta da cidade.
- "O cavalo do Figueiredo virou Égua!"
E arrematava, fazendo troça:
"As anáguas do João perdeu as prega!"
"Maluco! Doido de pedra!", era o que, aos gritos, diziam dele. Pelo que se sabia ou se imaginava, desde que se entendeu por gente, Zé Pedro nunca bateu bem da cabeça. Em criança passava horas e horas no quintal de casa, agachado, "pensando na vida", em busca do pai que se separou da mãe por conta dele e de seus amigos imaginários. Amoroso, vivia dando tchauzinho e estendendo os bracinhos a todas as pessoas que passavam do lado de fora, no portão de casa. "Doidinho! "Escuridão!" "Anãozinho!" "Branca de Neve!", exclamavam.
Na rua, a molecada cuspia, escarrava e jogava pedra nele.
Alimentado das desatenções e ofensas dos colegiais, Zé Pedro "pegou medo de gente". E se guardou, bem guardado, dentro dele mesmo. E conversava, e ria, e brincava com seus "amigos imaginários". Em companhia deles, passava dia inteiro proseando, zombando e batendo palmas. E a eles, confiava sonhos, histórias e segredos seus.
Noite inteirinha, olhos arregalados, Zé Pedro plantava orelhas na parede do quarto, "escutando rádio". Ouvia a "voz do Brasil". Tagarela, dava notícia de tudo.
Andar, não andava, era carregado pela mãe, rua afora, num carrinho de mão. Franzino e lesado, demorou a se erguer do chão. Nera preguiça. Era fraqueza e bambeza nas pernas, mesmo. Engatinhou até os seis anos de idade. Aos sete, não quis saber de Escola. O "povo bulia dele" e de "seus amigos". A professora, também, "fez pouco caso" deles todos, desfeiteou, riu e achou graça de seus amigos idealizados.
Daí, homem já feito, depois que se pôs de pé, não parava quieto dentro de casa. Era só bater perna na rua e gritar impropérios.
- "O cavalo do Figueiredo virou Égua!
E arrematava, fazendo troça:
- "As anáguas do João perdeu as prega!"
Dizem as más línguas, não se sabe ao certo, que "deram um sumiço no Zé Pedro". "Gritava demais da conta!" "Incomodava a vizinhança!" "Assustava a criançada!" Enfim, "colocava em risco a segurança nacional, a moral e os bons costumes!"
Depois...
Onde já se viu um "doido varrido", um "maluco de pedra" fazer pouco e levantar falso da Égua do General!?
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NARCISO CEGO
Short StoryNARCISO CEGO: NÃO HÁ ESPELHO QUE NOS TIRE DE NÓS MESMOS É um livro de contos miúdos, de prosa fiada e tecida na roça. Tem cheiro de mato, flor de laranjeira, capoeira e mata nativa. Tem gosto de pasto, arado de terra, vara de pesca, barro, lagoa, r...