Na casa da vovó Alice, tia Dodora cuidava das flores, hortaliças e plantas exóticas. Hortava condimentos, frutas, legumes e ervas medicinais. Volta e meia, em companhia da mamãe, Dodora andava pelas matas e capoeiras à caça do carapiá, cipó milome, capim cidreira, douradinha do campo e samambaia chorona.
No quintal da vovó, servida de enxada e enxadão, titia cavoucava o terreiro e desfazia os torrões. Arava e afofava os canteiros, arredando pedras e entulhos. Depois, alisava tudo com o ancinho, estercava e fazia a rega da terra, antes de cultivar o solo. Por cerca de três meses tudo aquilo ficava em repouso. E só depois do "pousio", caberia a nós, os meninos da Célia, o trabalho de capinar e dar cabo das ervas daninhas. Aliás, de quinze em quinze dias, arrumávamos uma bagunça danada nos canteiros da vovó Alice. Titia vestia as calças do vovô Geraldo e nos fazia companhia na capina das ervas. Virava "moleca de novo", dizia.
Tia Dodora, feito vovó Alice, nos seduzia a todos com seu sorriso e contação de histórias.
Lembro-me de quando ela nos contou a historieta do nascimento repentino da velha mangueira nos fundos do quintal da vovó. Titia dizia que aquela árvore era "encantada e tomada de Primavera". E que foi um Sabiá Laranjeira, no passamento de sua consorte, o responsável pelo mantra do "eu morro ontem, mas nasço amanhã".
Tudo começou quando o Sabiá contratou os serviços funerários de um velho João-de-barro. O mestre de obras passarinheiro, fertilizando o solo com o colorido de suas asas, semeou aquele pé de manga na cova da sabiá. E assim, planta e semente, "tomadas de primavera", brotou, se fez árvore, floriu e deu frutos da noite para o dia, no desnascer daquela lua cheia.
Lembro-me de que as folhas, flores e frutos daquela mangueira enorme, viviam sob os cuidados de um velho galo índio.
Aliás, não me saem da memória as dificuldades que enfrentamos com aquele galo preto do pescoço pelado. Assim que abrimos o portão do galinheiro, fomos transformados em seus inimigos. Em defesa de seu território, ele nos enfrentou a todos nós com bicadas, cacarejos, esporadas e voos rasantes. Nos enxotou do galinheiro, sem nos deixar fazer a limpeza do poleiro, colher os ovos, lavar o coxo e trocar a água do bebedouro. O galo nos machucou muito. Ficamos com os braços e as pernas seriamente arranhados.
Daí, só nos foi possível chupar aquelas mangas ("madurinhas...") quando aquele galo velho e territorialista virou canja de galinha no caldeirão de barro da vovó. Assustados, nem quisemos dar notícia daquele ensopado. Aliás, ficamos muito abatidos e assombrados com o destino trágico do "nosso inimigo". E foi justamente depois do ataque inesperado que sofremos, que a vovó Alice havia prometido dar cabo do "galo velho". Nós, os meninos da Célia, perdemos completamente o apetite, a disposição e o rebolado pra fazer qualquer coisa naquela semana.
Aliás, por um bom tempo ficamos assim, cabisbaixos, numa espécie de luto, nos sentindo os responsáveis pelo passamento do bicho. Até que um dia, para nos tirar do desassossego do dolo, tia Dodora nos propôs a brincadeira da esfinge. E se não soubéssemos desvendar o enigma, estaríamos proibidos de guardar tristeza: "Eu morro ontem, nasço amanhã; meu tempo é quando...".
Nenhum de nós matou a charada. E o tempo passou ligeiro. E os meninos da Célia, conforme o combinado, não guardou tristeza, não. Guardou saudade e lembrança boa da tia Dodora. "Um dia, vamos todos embora", ela dizia. E completava: "não importa "quando". O importante é dar notícia que temos todos os outros dias pra viver, ser feliz, inventar e contar histórias."
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NARCISO CEGO
Historia CortaNARCISO CEGO: NÃO HÁ ESPELHO QUE NOS TIRE DE NÓS MESMOS É um livro de contos miúdos, de prosa fiada e tecida na roça. Tem cheiro de mato, flor de laranjeira, capoeira e mata nativa. Tem gosto de pasto, arado de terra, vara de pesca, barro, lagoa, r...