Capítulo 1 - piloto

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O sangue escorria como se ainda não tivesse sido coagulado, como se há poucos instantes o pedaço de carne tivesse sido retirado do ser que usava aquele músculo para se movimentar. Pendurada em um gancho, o sangue pingava entre mais carne e gordura triturada embalada em tripas. Uma mosca pousou na carne iniciando sua exploração.

— Vai querer o que, moça? – perguntou o açougueiro atrás da vitrine.

— Não queremos, nada, obrigado. – meu pai passou o braço pelos meus ombros e me arrastou pelo mercado. Ele sempre respondia perguntas de estranhos por mim como se eu fosse incapaz de me comunicar. Às vezes eu achava que realmente era.

— O cheiro...

— O que tem o cheiro?

Neguei com a cabeça seguindo adiante com ele. Fazia algum tempo que eu não saía de casa e as coisas estavam me fascinando como se eu fosse um bebê vendo o mundo pela primeira vez.

Enquanto voltávamos de carro para casa, contei alguns postes de luz, eles pareciam os mesmos, a rua parecia a mesma até que reparei nas crianças com mochilas nas costas fazendo fila em frente à creche. Uma garotinha que eu conheci sorriu para mim. As aulas tinham voltado então, e meu pai não me contou, eu sabia que ele só queria me proteger, mas eu gostaria de saber pelo menos o calendário escolar.

— Você vai me deixar voltar pra escola? – ele mexeu a cabeça ponderando sobre minha pergunta.

— Se você achar que está pronta.

— Sinto falta das minhas amigas, meus professores...

— Eu sei, mas não gosto que você tenha tido... que aconteceu aquilo, sem eu saber a causa.

— Só porque tive um ataque epilético na escola, não significa que alguém lá foi responsável. – mexi no cinto de segurança que sempre me sufocava em consequência de minha baixa estatura. Não entendia porque papai evitava falar as palavras correspondentes, não era como se fosse acontecer porque foi falado.

— Eu sei, Alice. Mas tenho medo que alguém faça mal a você agora.

— Por quê?

— Porque humanos são naturalmente ruins.

— Tem filósofos que discordam disso. – porque devíamos ser defeituosos para sermos humanos? Seria tão digno se nossa espécie fosse reconhecida pela bondade. – Você faria algo ruim pra me proteger, pai?

— Sim, e é isso o que me torna humano. – a forma como ele não hesitou em responder me trouxe segurança e medo pela pessoa que sofresse do ato ruim de meu pai.

Apenas os anjos possuíam proximidade com aquele termo. Os comandantes de nosso mundo vivem em uma terra celestial que nenhuma criatura mortal pode encontrar. Eles deviam ser seres fascinantes, as poucas fotos deles que rodeiam a internet não mostram todo o poder que devem emanar. Tenho costume de ler livros antigos sobre eles e o que nossos antepassados pensavam deles. Há teorias de que eles assumem essa forma humanoide para se apresentar a nós, mas enquanto vagam pela própria terra, são apenas borrões de luz.

Em meu quarto havia alguns desenhos deles que eu fazia desde os seis anos, todo ano no meu aniversário eu desenhava como os imaginava, às vezes na forma humana, às vezes em luz. Apenas os três últimos estavam pendurados em meu guarda roupa, meus traços tinham se aperfeiçoado bastante, mas não passavam de rascunhos, nunca desenhei outra coisa. Passei a mão por eles, de certa forma me orgulhavam. Aproximei-me de minha escrivaninha onde ficava o aquário da Wendy e seus machos. Ela estava esperando por comida, a tirei do aquário com cuidado e a deixei em cima da mesa, sua cabeça acompanhou meus movimentos enquanto eu pegava o pote com gafanhotos, era difícil pegá-los com a pinça enquanto pulavam para todo lado.

A Rainha dos AnjosOnde histórias criam vida. Descubra agora