Capítulo 20 - Retorno

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Não dormi. Fiquei a maior parte do início da noite sentada na cama depois que Alec já tinha dormido no sofá do meu quarto. Ele estava tão encolhido que parecia com frio, mas não era possível com o cobertor felpudo que lhe emprestei. Fui até ele para ter certeza, devia ser apenas sua forma estranha de dormir. Eu contei a ele sobre meu pai ter sido um anjo e que ele ficou doente por minha causa. Conversar me ajudou a pôr em ordem cronológica tudo o que eu sabia. Ainda assim não entendi o que eu era, olhando no espelho desejei ver meus olhos escuros e eles apareceram para mim. Da mesma maneira consegui fazer com que voltassem ao normal. Ou à minha máscara humana, Miguel aprovaria mais esse termo.

Fui até o aquário onde Brás dormia e o descolei do vidro. O levei comigo até lá embaixo no jardim. Ia amanhecer logo, não queria que ele ficasse com fome quando acordasse se eu demorasse a voltar.

Fiz o caminho usual para a floresta até a árvore que me lembrava que Miguel tinha ficado. Chamei seu nome. O nome que ele escolheu, mas que não era verdadeiramente dele. Parei de chamar assim que o pressenti. Não estava longe. Continuei a caminhada pela trilha e antes que chegasse ao final vi através das folhagens o esboço de asas majestosamente fechadas.

— Miguel...

Ele se virou e pareceu realmente feliz em me ver, logo notei que seu braço estava em uma tipóia improvisada com seu manto. Sentei-me ao seu lado ainda observando-o.

— O que isso fez com você? – indaguei.

— Eu acho que é como uma infecção.

— E porque não está curando?

— Seu pai deve ter usado alguma parte de você para criar algo que pudesse banhar as flechas. Deve ser seu cabelo, se fosse seu sangue eu estaria morto.

— Não é possível que cause esse efeito... – passei a mão no cabelo involuntariamente como se fosse machucar Miguel sem motivo.

— Ele te contou?

— Sim...

— Então você sabe que seu poder é mais forte que dos outros. É como se você tivesse herdado duas partes demoníacas. Da sua mãe que poderia não vir e do seu pai.

— Isso quer dizer que não tenho humanidade em mim?

— Não tem que se incomodar se não tiver.

— Posso ver seu braço?

Ele desamarrou o manto lentamente, observei onde as duas flechas tinham o atingido, estava meio pretejado, os furos ainda muito abertos.

— E se eu puder te curar?

— Não sei se é possível.

— Vocês passaram tanto tempo com medo de como poderíamos adoecer vocês que esqueceram de tentar fazer o inverso. Eu quero propor isso à rainha.

— O que?

— Meu pai também está muito doente por minha causa... se eu puder reverter, podemos conversar com a rainha, dizer que não precisa ter medo de nós, s...

— Eu permito que você me use como cobaia. – interrompeu. – Mas não vamos falar com ela.

— Porque, Miguel?

— Ela não vai ouvir. Estamos sozinhos nisso.

— Não deveríamos tentar?

— Não. Vamos, veja se consegue. – ele me estendeu o braço.

Assim que aproximei a mão de seu ferimento, um leve vapor escuro subiu em direção aos meus dedos. Eu não tinha desejado nada, parecia que o que envenenara Miguel ia em direção a minha mão por vontade própria. Assim que os sintomas da inflamação sumiram, o ferimento começou a fechar até sumir. Miguel olhou para mim coberto de surpresa, sorri e coloquei a mão sobre seu ombro absorvendo o mal dali também.

— É possível reverter... – ele se levantou analisando o braço, não era apenas um braço, era um braço totalmente desejado pelos homens humanos, assim como seu peitoral. Miguel não estava usando o manto, então eu poderia ver suas asas saindo diretamente de suas costas se ele não estivesse de frente sorrindo para mim, exatamente onde o sol começava a lançar seu brilho atrás dele. Ele pareceu confuso com meu olhar silencioso. Ele não tinha ideia de que era lindo.

Levantei-me também, enfim.

— A dor física é... estranha.

— É a primeira vez que sentiu?

— Não, mas fazia algum tempo... – eu ia perguntar quando ou como aconteceu, mas ele se apressou em segurar minhas mãos. – Quer dar uma volta?

— Mas o sol...

— Dá tempo.

Segurei-me nele então. O nascer do sol pareceu mais lento de lá de cima e aproveitamos aquele ângulo diferente de luz olhando o mar. Passei a mão por suas costas até o meio das asas. Eu não estava criando um fetiche por anjos, eu só me fascinava pelas articulações. Descemos em espiral lentamente fazendo com que meu cabelo voasse para cima.

Quando pousamos nas pedras logo notei Alec sentado naquela em que estávamos antes. Com os cotovelos apoiados nos joelhos, sua cabeça descansava em uma das mãos, infinitamente entediado. O manto de Miguel ainda ao lado.

— Bom dia? – disse Alec.

— Não quis te acordar. – ele deu de ombros.

— Parece que não teria lugar pra mim no passeio.

Miguel pegou o manto, mas parte dele estava preso sob Alec que nem tinha olhado onde sentou.

— Ah, desculpa. – ele ergueu um pouco a perna e Miguel pôde puxar para vesti-lo. Ele encarou a própria pena na orelha de Alec e não pareceu se incomodar com o uso que ela estava tendo.

— Cuidado aonde vai exibindo isso. – recomendou Miguel.

— Não frequento lugares tumultuados.

— É, a pessoa que ele persegue é uma estátua. – falei.

— Mas acho que não vou prosseguir por enquanto.

— As estátuas da rainha? O que quer com elas? – Miguel pareceu alerta e desconfiado.

— A pedra do cetro, eu coleciono.

— Você o que?! – por fim ele tinha conseguido irritar alguém.

— Qual o problema?

— Têm muitas dessas espalhadas por aí, você não pensou que poderia ter um motivo?

— Sim? Eu só não tenho ideia de qual.

— Elas são para emergência. Se vocês saírem do controle, as estátuas liberam um gás que adormece todo mundo. A pedra evapora, se está fora da base pode acontecer inesperadamente.

— O que poderíamos fazer para ficar descontrolados ao ponto de precisarem de uma saída de emergência?

— Quantas você tem?

— Umas quinze.

— Devolva todas. Me entregue, eu mesmo coloco no lugar.

— Você não vai jogar fora?

— Não tem lugar para descartar isso, o lugar mais seguro é onde elas estavam.

— Eu posso não ser o único fazendo isso.

— Você pode ir buscar agora, por favor?

Alec soltou um suspiro e se levantou.

— Vou demorar porque estou com fome.

Eu também não tinha tomado café da manhã, mas antes que meu estômago se lembrasse da fome, senti uma dor de cabeça latejante, durou alguns segundos em que ouvi uma voz feminina que se tornava cada vez mais familiar. Apertei as mãos nas laterais da cabeça reprimindo um grito.

— Alice?

— Eu ouvi minha mãe...

— O que ela disse?

— Ela está aqui... na cidade.

A Rainha dos AnjosOnde histórias criam vida. Descubra agora