Capítulo 12 - Altitude

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Então era noite. Ele desceu sem cerimônia. Mas eu faria uma se ele pedisse. Desviei os olhos tentando impor insignificância em meus sentimentos. Todos os encontros seriam assim? Eu teria que me controlar para não sorrir mecanicamente e não pedir para tocar suas asas?

Os cachos longos estavam presos dessa vez. O resto parecia igual, mas continuava surpreendente. Tentei imitar sua elegância me vestindo com roupa azul escuro, mas o resultado da combinação das peças me deu impressão de que eu estava de pijama. Não mudei as roupas, sempre me vesti sem pensar em impressionar ninguém, eu gostava de saias e sapatilhas em mim. Mas nada estético devia importar para ele, parecia uma coisa unicamente humana. Eu não tinha certeza disso, esperava poder perguntar a ele eventualmente.

— Você disse que podia me levar pra algum lugar. – retomei o assunto me admirando por falar primeiro. Ele me deixava imprevisível, seu sorriso também foi um pouco, além de genuinamente belo e gentil.

O anjo me estendeu a mão. Eu ainda não consegui associar o nome com o qual se apresentou à sua divindade, parecia um nome mais comum de um humano apesar da origem ser outra. Talvez acontecesse se eu começasse a vê-lo mais como uma pessoa. Peguei sua mão e subi no parapeito ao seu lado. Olhei ao redor, mas não senti medo, afinal já tinha caído dali.

— Espero conseguir começar e terminar uma conversa com você hoje.

— Na primeira vez você parecia com pressa. – acusei discretamente.

— É que o tempo aqui é diferente. – ele passou um braço pela minha cintura como um gesto automático. – Acho fascinante que ele realmente passa.

— Onde você vive não passa?

— Acho que onde vivo o tempo não existe. – eu nem conseguia imaginar como seria tal coisa. – Pise nos meus pés.

— O que?

— Vamos, você não tem medo de altura.

Nós íamos voar de verdade. Para muito além do telhado. Coloquei meus pés descalços sobre os seus e me segurei em seu pescoço. O impulso foi mínimo para subirmos vários metros acima de minha casa. Ele só parou quando a altitude deixou as coisas lá embaixo realmente pequenas. Maravilhada, minhas mãos quase se soltaram dele como se a capacidade de voar fosse minha. Eu estava fazendo exatamente o que meu pai temia: voando com um anjo.

— O que achou?

— Nada.

— Nada?

— Não consigo colocar em palavras o que estou sentindo... – acabei escolhendo uma definição diferente. – É como ouvir uma música boa pela primeira vez, alguma coisa é liberta nesse processo.

— Música foi uma das melhores invenções humanas.

Era uma pena que foram perdidos muitos arquivos de antes da Grande Devastação. A história da música estava toda nos séculos passados e tínhamos pouquíssimos exemplos da evolução musical. Normalmente quando algum cantor encontrava uma música antiga, simplesmente a recriava como se fosse original, até alguém descobrir que não era.

— Você ouve?

— Já ouvi algumas, o que sobrou. Mas prefiro o canto dos pássaros, não é gravado e cheio de efeitos sonoros.

— Vocês prezam muito mesmo pela natureza. – falei com admiração, eu me identificava apesar de nunca ter pensado naquele detalhe.

— É por ela que viemos.

— E pelo que ficaram? – ele afastou um pouco o rosto para olhar para mim, desfazendo minimamente nosso abraço aéreo. Suas asas se mexiam devagar, não precisavam de muito esforço para nos manter no ar.

— O que quer dizer?

— O mundo já está reflorestado, porque ainda estão aqui?

— Pra manter as coisas no controle.

— É, também acredito que não conseguiríamos sozinhos.

Ele subiu um pouco mais se inclinando para o lado.

— Posso te levar ao topo de uma Cariniana legalis? – era uma das árvores mais altas da região, seria um sonho ver a vista de cima de uma delas.

— Por favor?

Partimos para a floresta e localizei a Cariniana legalis facilmente, era maior que todo o resto da vegetação, havia outras pela extensão, mais afastadas como se a distância tivesse sido medida de acordo com algum design. Ele se embrenhou em meio às folhas e assim que toquei os pés em um galho mais grosso que minha circunferência corporal, ele me soltou ali. Apoiei-me no tronco e em vez de me preocupar em ser deixada sozinha, apreciei a paisagem anoitecida. Era possível ver o mar, a quantidade infindável de estrelas e nuvens que se tornavam poderosas ao longe. Não sei por quanto tempo fiquei apenas absorvendo cada elemento até me lembrar do responsável por me trazer até ali. O anjo me olhava como se eu fosse o elemento belo na paisagem, logo do outro lado do tronco em outro galho, seu manto tinha escurecido mostrando mais folhas do que um céu estrelado. Sorri olhando para baixo. Encarei a altura e por um segundo senti vertigem, olhei novamente para ele e agora seu olhar estava alerta, pernas em posição de impulso.

— Se eu me jogasse daqui, você conseguiria me pegar?

— Não precisamos testar isso.

— Mas se me deixou ficar aqui, é porque consegue, não?

— Consigo. – ele respondeu com relutância como se realmente acreditasse que eu fosse louca para me jogar. Sentei-me no galho devagar e balancei os pés livremente.

O anjo deu a volta por trás do tronco para se sentar ao meu lado.

— Porque "Miguel"?

— Escolhi esse nome pelo que ele representava na mitologia bíblica. Meu nome de verdade não é pronunciável nesse mundo.

— Então é realmente tudo um mito?

— Os mitos têm que vir de algum lugar, eu acredito que meus ancestrais encontraram os seus algum dia e depois de irmos embora viramos mitos porque deixamos de fazer parte da sua realidade. Mas faz muito tempo, nós também fazemos teorias sobre o início do universo, não sabemos de tudo. Além disso, eu sou da última geração de anjos.

— Quantos anos você tem então?

— Em anos terrestres duzentos e vinte e dois. – decidi ignorar a parte dos duzentos, vinte e dois estava ótimo nele.

— Me conta mais, onde fica seu mundo, como funcionam as asas, do que é feita sua roupa...

Ele ficou pensativo.

— Tem outra coisa que preciso te mostrar antes. Algumas respostas você já tem.

— Então me mostre.

O anjo desceu do galho e estendeu os braços para mim, me agarrei a ele e subimos em direção ao céu de novo.

— Antes de você saber a verdade, saiba que eu sinto muito.

— Por quê?

Ele tocou minha têmpora e senti meus pés sendo puxados para baixo enquanto tudo sumia dentro do abismo que mergulhei.

A Rainha dos AnjosOnde histórias criam vida. Descubra agora