Capítulo 48 - Preparação

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Meu primeiro voo foi acima do mar. Não precisei aprender como fazia, era como respirar, simplesmente soube o que mover quando tomei impulso. Aproveitei a brisa ao mesmo tempo em que procurava pela asa cortada de Miguel. Ele estava andando no meio das pedras, não parecia muito empenhado na tarefa, ele olhava para cima o tempo todo. Desci porque já estávamos há bastante tempo em nossa busca.

— O mar deve ter levado. – ele disse.

— Então vou procurar mais longe.

— Espera. – ele segurou meu tornozelo antes que eu me elevasse.

— O que?

— Só espera.

Pousei em sua frente tentando decifrá-lo. Miguel me encarava como se visse através de mim, seus olhos me admiravam exatamente como eu sempre o admirei.

— Estou tão diferente assim?

— Sim, agora você não tem nenhum cheiro estranho.

Dei risada por estar esperando de verdade algo romântico.

— Estou desesperada pra você voar comigo. Preciso de suas asas inteiras, Miguel. Principalmente porque fui eu que a cortei.

Afastei-me dele para pegar impulso. Sobrevoei por toda a região e finalmente encontrei uma mancha escura no mar. Conforme me aproximava logo distingui as penas impermeáveis, a asa boiava fechando e abrindo na articulação que tinha sido cortada com a movimentação da água. Voltei para as pedras com meu melhor sorriso, Miguel estava cabisbaixo, sentado com as mãos de apoio para a cabeça. Fiz uma de suas mãos se erguer e a agarrei para levá-lo voando dali.

Quando voltamos para casa, Alec tinha ido buscar mais pedras a pedido de meu pai. Uma delas foi derretida como a anterior, meu pai jogou um retrós de linha nela e aplicou o líquido restante entre os cortes da asa. Eu a segurei no lugar enquanto Areia dava os pontos. A asa pareceu estável ao fim da operação, não sabíamos em quanto tempo se regeneraria, mas tínhamos altas esperanças.

Era bem desconfortável estar dentro de casa com um par de asas nas costas. Eu as encolhia e ainda assim conseguia esbarrar nas coisas. Se Miguel estivesse pronto pela manhã, nós voltaríamos para a ilha. Pensar em ir para lá de novo me trazia uma sensação avessa, mas não me dava o calafrio que eu esperava ter se não tivesse aura angelical agora. Mas também me trazia esperança, pensei em Clara e em seu bebê. Nunca vi sentido em minha vida monótona e reclusa, finalmente um propósito me encontrou, não era minha intenção que fosse ajudar o mundo em grande proporção, mas eu estava imensamente feliz por ter essa capacidade. Enquanto eu me enchia de ambições, tentava preparar uma roupa ideal para quem possuía asas. Não tinha jeito, precisaria rasgar alguma peça. Peguei um de meus vestidos brancos, era levemente rodado e tinha gola alta. Com uma tesoura recortei as costas dele, ou acabei picotando de um jeito infantil. Esperava mais de minhas habilidades celestiais.

— Precisa de uma costureira? – Areia entrou no quarto.

— Da melhor que conheço.

Ela também tinha adquirido roupas diferentes. Uma calça preta esportiva, botas e uma blusa mostarda.

— Tem certeza que vai querer ir comigo? – perguntei enquanto Areia consertava o vestido.

— Quero te ver ganhando pessoalmente. Não vou ser um estorvo pra vocês só porque não consigo voar. Eu sou forte, sei lutar, dei conta daquele ruivo com menos ajuda de Miguel do que você pensa. Sinto que preciso seguir adiante com vocês.

Então assim seria. Passei minha primeira noite como anjo acordada, claro. Não havia sono nem cansaço, nada. Era até esquisito não sentir absolutamente nada em meu corpo. Desci para a sala usando o vestido que Areia cuidadosamente costurou uma barra para não deixar os fiapos do recorte soltos. Ele ficou com a abertura na medida certa para as asas começando dos meus ombros que acabaram à mostra também. Miguel estava no sofá proibido de se mexer. As asas esticadas dominavam o cômodo.

Meu pai tinha preparado um novo manto mágico para Miguel, ele estivera colaborando bastante para nossa partida, mas estava calado desde minha transformação. Sentei-me ao lado de Miguel esticando as minhas asas sobre as dele, a diferença de tamanho me espantava, não pareciam tão pequenas enquanto faziam uma sombra enorme atrás de mim. Ele acariciou minhas penas e apreciei a nova sensação ao receber carinho em um membro que eu não tinha até pouco tempo. Passamos o restante da madrugada conversando sobre nossa humanidade deixada para trás e nossa força sobre humana. Contei-lhe como estava sendo para mim, minhas inseguranças, minhas certezas, ele se identificou em muitas.

— Já estamos indo. – falei quando meu pai desceu as escadas pela manhã.

— A asa está boa então? – assenti.

— Mais um trabalho seu bem feito, pai. – sorri, mas ele não. – Eu vou voltar assim que eu resolver tudo.

— Você acha que vai ser simples assim?

— Eu não disse que voltarei logo. Só estou te assegurando, não vou cair. Eu permitiria que você se preocupasse se eu ainda fosse apenas um demônio, mas agora sou um anjo também.

— Vou me preocupar de qualquer jeito, você é minha filha.

— Não vai, não. – toquei sua testa para aliviar seus sentimentos, testando meus poderes benéficos.

— O que você fez...?

— Te dei paz. – o abracei.

— Tenho uma coisa para te dar também.

Fomos ao laboratório, onde ele pegou um manto de uma das prateleiras, era aquele que já cobriu as costas dele para camuflá-lo em sua vida de anjo, aquele que foi usado para embrulhar uma recém nascida Alice, aquele que minha mãe tocou. Meus olhos se encheram de lágrimas, achei que minhas emoções estariam mais fortes, pelo visto minha sensibilidade não foi afetada pela imortalidade. Meu pai o abriu e o colocou em minhas costas, instantaneamente minhas asas se tornaram nulas para o manto e adquiriram a transparência nas penas.

— Agora você está pronta.

Despedimo-nos lá fora. Laura e Alec me abraçaram juntos, senti como se estivesse abandonando minha vida antiga para sempre. Eu nunca mais voltaria à escola, ou faria uma atividade tão comum como assistir a filmes e ler livros. Por último, me lembrei de Julia, eu disse a Laura que contasse a ela tudo que não pude e que eu lamentava não termos nos visto durante minha volta para casa. Pedi que ela explicasse que o que eu estava fazendo ajudaria pessoas como o padrasto dela. Agora não me recordava se ele tinha me encontrado naquela noite, eram muitos para ouvir os pensamentos separadamente, mas esperava que ele tivesse conseguido sua libertação.

— Obrigado por fazer isso por todo mundo. – Alec expressou a gratidão em suas palavras. – Eu sabia que você ia se libertar.

Toquei em seu cabelo deixando-o confortável com seus sentimentos também. Eu sabia que Alec tinha aquela vontade há muito mais tempo que eu e por isso me apoiava tanto. Ele nunca hesitaria ou levaria o tempo que levei para ser convencida apenas quando vivi o terror na pele. Fiz o mesmo com Laura. Ela sinalizou amor para mim, lhe devolvi o sinal. Meu pai ainda sem resistir a mais um abraço, me ergueu do chão de tanto que me apertou.

Areia prendeu a mochila que ela carregaria nas costas com tudo que lhe foi necessário, era por ali que eu a levaria. Segurei a alça dela e olhei para Miguel. Juntos, pegamos o impulso.

A Rainha dos AnjosOnde histórias criam vida. Descubra agora