Capítulo 18 - Pai

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Meu pai apareceu no meu quarto mais tarde depois que já tinha avisado que o almoço estava pronto. Eu ainda não tinha descido nenhuma vez, ele perguntou se eu não ia comer nada, então deixei meu caderno de lado para olhá-lo, mas meu pai já tinha saído deixando um prato de comida na mesa de cabeceira. Deveríamos conversar, mas eu não tinha coragem e tampouco parecia que ele teria. Ao menos ele admitiu o que sabe, e isso era importante para começarmos.

Nunca fiquei por tanto tempo sem falar com meu pai, já estava bem tarde quando tomei a decisão. Mesmo que ele estivesse dormindo, ia acordá-lo e conversar com calma.

Batidas na porta da sacada me impediram assim que toquei na maçaneta da porta oposta. Miguel se afastou para se empoleirar na balaustrada quando saí. Sorri por ele me lembrar uma ave de fato.

— Então... Você acha que Alec vai ficar feliz agora?

— Ele vai melhorar. Porque se preocupa?

— Fui eu quem mandou um anjo caído queimar a igreja depois que você saiu...

— Miguel...

— Eu sei, perdão. As ordens vieram de cima, era minha chance de mostrar que estava do lado que ela queria. – ele colocou as mãos na cabeça, tão desesperado como um humano. – Não consegui admitir isso pra ele, não tenho dignidade...

— Não se culpe mais... – segurei sua mão. – Me conta sobre ela. A mulher das estátuas.

— Ela é a rainha dos anjos. Ela e seus conselheiros organizaram como o planeta Terra deveria ficar. Eu era considerado um anjo muito jovem, ainda sou... então fazia parte da guarda, não podia opinar nem me intrometer, só fiquei sabendo das ilhas um pouco depois, quando os anjos começaram a vir pra cá sem serem mandados. Eram anjos apaixonados cometendo desatinos. Isso saiu do controle da rainha, então ela optou pelas ilhas para colocar os descendentes e pelo castigo dos anjos que caíram nos prazeres humanos. As asas de todos foram arrancadas.

Suspirei com um arrepio que me percorreu. Aquela história não era uma boa de ser ouvida antes de dormir.

— Isso pode acontecer com você também?

— Talvez não, eu jamais me submeteria a algo assim com uma humana, seria muito arriscado.

— Mas por você estar aqui, já não é punível?

— Eu quero acreditar que a rainha terá piedade de mim por que temos parentesco em comum. – sentindo sua mão na minha, a sensação de formigamento voltou, como quando toquei sua pena. – O que está pensando?

— Acho que estou sentindo meus poderes correspondendo a você. Ah! Meus olhos devem... – Miguel me impediu de ir buscar o colírio.

— Não fique escondendo quem você é. Você é linda assim.

Soltei um riso olhando para baixo. Então eles tinham senso estético ou Miguel só queria que eu me aceitasse?

— Só não quero te deixar assustado.

— Não me assusto.

— Eu sinto quando você fica com medo. Todas as vezes que nos encontramos no passado você teve receio, com minhas memórias de volta deu pra perceber.

— Não é assim. – mas era. Ele desceu da balaustrada.

— Tudo bem, não fico chateada com isso. Entendo que eu não tenho tanto controle...

— Acho que agora você tem. – coloquei a mão em seu peito como se aquele gesto fosse a prova de que ele não tinha medo e eu possuía controle. – Viu?

Assenti sem me afastar. No instante seguinte uma flecha foi cravada no ombro de Miguel disparada diretamente de dentro do meu quarto. Olhamos para o escuro do cômodo e meu pai saiu de lá segurando aquela arma que ele tinha levado quando foi me encontrar na floresta. Lembrei-me do nome, era uma besta.

— Pai?

Miguel, sem demonstrar dor nenhuma, arrancou a flecha de seu ombro e jogou no chão, um líquido semelhantemente vermelho escorreu pelo seu manto.

— Eu disse pra ficar longe da minha filha.

— Se eu tivesse cumprido isso, ela já teria sido encontrada.

— Não vou te agradecer, vá embora. Você não quer se corromper nesse mundo, não é? – meu pai não tinha intenção de baixar a guarda.

— Isso nunca aconteceria, tenho sensatez.

— Então o que está fazendo aqui?!

— Alice merece saber o que você não está contando. – Miguel mexeu o ombro desconfortavelmente e cobriu o ferimento com a mão, um resquício de dor passou por seus olhos. – O que você colocou nessa flecha?

— Vá embora se não quiser uma dessa na testa.

— Eu vou se você contar.

— Cale a boca.

— Ela já sabe bastante, vai compreender isso também.

— O que mais preciso saber? – olhei para os dois.

— Você não tem direito de intervir depois do que fez com Ellen.

— Vocês concordaram! Porque insistem em me culpar? Foi você quem caiu e condenou a própria filha a nascer.

Meu pai mirou no antebraço de Miguel e atirou novamente.

— Pai!

— Estou sendo muito bom até agora. – mirou em sua cabeça. – Some.

Miguel subiu na balaustrada arrancando a outra flecha. A mira da besta o acompanhou.

— Ellen está voltando.

— O que? – finalmente meu pai pareceu rendido, mas Miguel já tinha sido mandado embora vezes suficientes para simplesmente ficar e responder. Ele voou para longe segurando o braço ferido.

— Ele vai ficar bem?

Meu pai recolheu as flechas do chão, as gotas de sangue ficaram.

— Entra.

— Pai... – obedeci, mas dando passos para trás enquanto falava com ele.

— Desde quando... você se lembra de conhecer ele? – entramos de volta em meu quarto, meu pai fechou as portas, trancou e puxou as cortinas apressadamente.

— Eu tinha seis anos...

— Ele está estragando tudo! Vai te colocar contra mim.

— Miguel não quer isso. E eu nunca ficaria contra você, pai.

— Mesmo que eu tenha pedido a ele que apagasse suas memórias?

— Eu não sabia disso... – meu pai se sentou em minha cama abandonando a arma no chão.

— Eu não fiz tudo o que fiz pra aquele idiota desfazer tudo agora. Eu queria que você vivesse em paz, com tudo o que lhe fosse necessário, uma vida longe do ódio deles. Eu e sua mãe achamos que íamos conseguir manter a família unida, sonhamos muito alto... Mas eles descobriram... e agora você sabe... e... Ellen está voltando...? – ele esfregou o rosto, fui me sentar ao seu lado.

— É verdade. Eu falei com ela na minha cabeça.

Ele fitou o tapete em silêncio.

— Então se você vai conhecer sua mãe, é melhor que saiba tudo...

Meu pai se levantou e tirou sua camiseta de costas para mim. Duas marcas salientes quase varavam suas costas, algumas veias escuras se enraizavam ao redor. Parecia que aquela cicatriz guardava a história de uma dor profunda, sem limites, era como se um par de asas tivesse sido arrancado dele.

A Rainha dos AnjosOnde histórias criam vida. Descubra agora