Milhões de pensamentos passaram por mim de uma vez, não pareciam pensamentos meus, alguns deles gritaram em desespero, mas eu apenas encarava o ladrilho que me mataria. A queda pareceu lenta, minha cabeça logo estaria em contato com o chão, esmagada. Ou talvez eu apenas quebrasse um braço como daquela vez. No ângulo em que descia talvez até batesse a espinha dorsal e nunca mais andasse de novo.
Senti o ar sendo retirado de mim pelo impacto, minha visão ficou escura, deixei de ouvir os grilos da noite, era como se meus ouvidos estivessem embaixo da água. Pensar que estava mergulhada me fez sufocar mais ainda.
Visualizei um vulto acima de meu corpo e esperei que meu pai me socorresse, não conseguia me mexer com coerência, senti meu braço se erguendo, mas minha mão permanecia retorcida para baixo. Tentei falar, mas a falta de fôlego me proporcionou apenas grunhidos. A dor inundou meus membros, minha cabeça parecia pesar como se uma abóbora estivesse no lugar.
Mãos tocaram em mim e um formigamento agressivo tomou conta do local. Minha respiração estabilizou aos poucos e chamei meu pai porque ainda estava com medo do que estava acontecendo comigo. Não sabia se ia morrer ali, se minha visão voltaria ao normal.
— Me ajuda... – no entanto o vulto se afastou. – Pai...?
Esforcei-me para me sentar, percebendo a dor sumindo, as cores voltando. Olhei ao redor procurando auxílio, não havia ninguém, apenas os grilos que voltavam com a cantoria em volta de mim no jardim. Coloquei-me em pé, algumas flores tinham sido tristemente esmagadas.
Não havia nenhuma perseguição por perto nem na sacada de meu quarto. Não mais. Mas isso não me convencia a voltar para dentro. Uma sensação insólita ainda me acompanhava e não havia lugar melhor para lavá-la embora que as ondas do mar. Meu pai poderia surtar se me visse fora de casa àquela hora da noite, atravessando a floresta sozinha no escuro indo em direção à praia. Mas a caminhada me acalmou de diversas formas, me concentrei nos meus passos, meio irregulares por conta das raízes que cobriam o solo. De repente ouvi um choro por perto vindo de cima das árvores. Era triste como se chorasse por alguém que estivesse morrendo. Mas não havia motivo para mais sustos naquela noite. O pássaro que chora se chamava Urutau.
Ele cantou de novo tentando fazer uma melodia, mas apenas chorou, rouco. Eu ainda o escutava quando desci a primeira pedra da trilha que levava até a praia. Obviamente desci carregando meu medo nos braços e foi isso que me atrapalhou no lugar em que a terra se transformava em areia, escorreguei. Para quem tinha acabado de voar da própria sacada, cair sentada em outra pedra não foi tão pavoroso. Meu cotovelo acabou arranhado, mas não era nada fatal. Nunca fiz aquilo sozinha, sempre desci até a praia com meu pai ou outra pessoa, na maioria das vezes de carro, tínhamos que dar quase uma volta inteira pela cidade para chegar ali.
Enfim coloquei os pés na areia, estava quente ainda e seca na superfície por vários metros com o recuo do nível do mar. O reflexo da lua tremeluzia sem cessar, apenas ela para orientar todo meu caminho até ali. Parei de andar chutando um pouco de areia no último passo ao avistar alguém sentado adiante. Ele olhava para mim, mas a silhueta escura ainda estava longe para ser reconhecida.
Engoli em seco quando o homem se levantou. Eu não tinha porque temer as pessoas, o mundo era tão pacífico, mas meu pai sempre me ensinou a desconfiar de todos. Eu me perguntava qual era o trauma dele para que temesse tanto por mim. Quando o homem começou a vir em minha direção, reconheci seu andar. Afinal, quem mais estaria na praia naquele horário se não fosse Alec? Lembrei-me das madrugadas em que ele me pedia companhia para descer ali, eu sempre ia, meu pai nunca soube. Eu criava minha liberdade quando era mais jovem e agora eu apenas aceitava o muro ao meu redor porque queria, ou talvez não fosse uma vontade, mas uma necessidade do medo.
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A Rainha dos Anjos
FantasyDisponível na Amazon Kindle e Kindle Unlimited Apoie uma escritora independente! Um novo mundo se reergueu após a Grande Devastação com a chegada dos Anjos. Esses seres raramente eram vistos pelos humanos. Alice, no auge dos dezoito anos, vive no e...