Igreja Canibal

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- Ceia? O que é isso?

- Shhhhh! - Natalia chiou sem olhar pra mim, mantendo os olhos fixos no pastor.

Eu abaixei um pouco e bati meu quadril no dela, pude vê-la sorrir, mas ainda assim não se virou.

- Pra que serve esse suco vermelho e esse pão amassado? - sussurrei.

Ela se virou tão rápido que nossos rostos ficaram muito próximos. Senti um calor fumegar minha pele, subindo pelo pescoço até a face e me afastei sem raciocinar. Ela pareceu não perceber aquele pequeno e estranho momento, apenas semicerrou os olhos e me repreendeu mais uma vez.

- Fique quieto! Eu te explico depois!

- Tudo bem. - disse eu, trêmulo. Minhas mãos suavam.

Que idiotice, não podia ser nada demais! Acho que eu estava sem beijar a tanto tempo que qualquer garota que se aproximasse daquele jeito me causaria calafrios.
O pastor falou um pouco sobre uma reunião que os discípulos fizeram antes de Jesus ser crucificado. Eles jantaram. Daí eu entendi que "ceia" devia ser sinônimo de janta, lembrei da "ceia de natal", etc. Mas por que a janta só tinha um copo de vinho e um pedaço murcho de pão?
O pastor continou falando e falando, eu viajei um pouco, depois me esforcei pra me concentrar e não peguei a explicação do vinho. Antes de tomarem os copinhos de vinho (ou melhor, suco da uva, pra ninguém ficar bêbado, eu acho), as pessoas da igreja trocaram os copos entre si, sorrindo, alguns se abraçavam, vi uma criança derramando seu copinho no chão. Natalia saiu de perto de mim e sumiu na multidão. Fiquei ali, em pé, parado, observando tudo. Uma senhora passou por mim, me encarou e começou a vir na minha direção. Me cumprimentou e disse, toda feliz:

- Mesmo que você ainda não ceie, receba a bênção de Deus no seu coração.

E saiu quase saltitante, no troca-troca de copinhos. Depois a situação foi voltando ao normal, Natalia já estava ao meu lado novamente e, quando o pastor ordenou, todos viraram o copinho de uma só vez (no bom sentido). E então consegui pegar a explicação do pão. O pastor leu um versículo que mencionava uma fala de Jesus, afirmando que o pão era o corpo dele, devíamos comer a sua carne, e que se não comessemos, "não teríamos parte com ele". Meu estômago se remoeu. Olhei o pão entre os dedos de Natalia e me perguntei se aquilo viraria carne quando ela comesse. Carne humana! Eles fizeram a mesma coisa de antes, saíram para trocar os pães. O pão de Natalia voltou mais amassado ainda, e eu imaginei por quantas mãos ele havia passado. Quando ela comeu, eu fechei os olhos com muita força pra não dar na cara que eu estava com nojo. Me senti culpado por aquilo. Mas infelizmente, nada disso fazia sentido pra mim.

...

- Então, desenrola aí!

- Desenrolar o que?

- Esse ritual canibal que aconteceu lá dentro! Me diz o que foi aquilo, Natalia!

- Como assim canibal? - William deu uma gargalhada alta, apoiando-se no ombro de Vinicius, que tentava segurar o riso.

Estávamos todos voltando da igreja, e por acaso eles moravam para o mesmo lado que Natalia e eu.
As mãos de William se desgrudaram dos ombros de Vinicius e se apoiaram em mim, enquanto a risada continuava.

- Cara, é serio isso? Você não entendeu a ceia?

- Não. - respondi, me desvencilhando. Não gostava daquela proximidade repentina.

- Calma cara, não me leve a mal. Eu já ouvi muitas dúvidas, mas nunca essa parada de ceia canibal. Imagina, Primeira Igreja Tribo Kosnaná! - ele fez um gesto como se estivesse escrevendo numa placa.

- Vocês falaram que o pão era a carne de Jesus!

- Nããão! - Natalia levou a mão na testa, massageando as têmporas. - Que idioti....que imaginação boa você tem, hein! São metáforas, Joe. Metáforas!

-Ah, me desculpe por ser burro! - bufei.

- Calma, calma. - William tentou esfriar nossas cabeças. - Joe tá começando agora, pode ter a dúvida que quiser, cara. Nós vamos sempre tentar responder, né Natalia?

- Claro. - ela revirou os olhos.

Não entendi essa mudança repentina dela. De manhã ela dava pulos no evangelismo, e agora essa crise de nervos igual o meu pai quando eu perguntava alguma coisa que pra ele era óbvio demais. Aquilo foi tão estranho quanto no dia em que ela chegou na sala e gritou comigo na frente da turma. Parecia haver duas pessoas totalmente diferentes no mesmo corpo.
William se encarregou de finalmente me explicar esse negocio de ceia. Com toda paciência do mundo ele falou do vinho que representava, apenas representava, o sangue de Jesus. O sangue que lava os pecados do nosso corpo. E o pão significava sua carne que foi machucada no meu lugar, quando eu deveria ter sido machucado. E por fim, Vinícius completou, que quando ceiamos, renovamos a aliança que temos com Jesus.

- Mas por que não podemos usar outras coisas pra representar o sangue e a carne?

- Porque Jesus ordenou que fosse assim. Nós obedecemos.

- Se eu soubesse, - suspirei - teria ceiado hoje.

- Você precisa se batizar primeiro. - Natalia interrompeu.

- Não é bem assim. - Vinicius replicou. - A bíblia não diz isso. Mas diz que precisamos entender o que é a ceia pra depois a gente ceiar. Senão traz condenação sobre você.

- Ok. Mas eu entendi agora. Posso ceiar da próxima vez?

William pôs a mão no meu ombro.

- Joe, você entendeu só uma parte de um conjunto de coisas que você ainda vai aprender. Nós costumamos dar a ceia somente aos batizados porque eles participam de uma classe que explica as bases do evangelho. Você não vai aprender só sobre a ceia, mas sobre a origem de tudo, sobre os profetas, os reis, sobre Jesus! Tudo vai se encaixar. Então, quando você ceiar, tudo fará sentido pra você, entende?

- É isso que acontece na ceia, então? Tudo faz sentido?

- Sim, meu mano! Toda vez que você ceia, tudo passa a fazer sentido.

O dia em que eu pireiOnde histórias criam vida. Descubra agora