O velho estava acabado, a barba por fazer, os fios brancos desgrenhados. Me recordo detalhadamente daquele momento único. Ele estava impactado ao me ver chegando em casa tranquilo, como se nada estivesse acontecendo. Enxergando.
- Eu não pude acreditar no que ouvi - ele disse enquanto se aproximava - Eles disseram que você não precisava mais da transferência porque estava de alta! Como isso é possível?
- Foi Jesus, pai! Ele me curou, e muitos outros foram curados também!
- Onde ele está?
Eu acho que foi uma pergunta retórica. Onde, em sã consciência, meu pai perguntaria algo assim?
- Ele quem?
- Jesus! - sua voz embargou e quase não saiu. Ele se recuperou e pôs a mão em meu ombro. - Onde ele está?
Suas emoções não poderiam mais ser contidas, seus olhos transformaram-se em duas cachoeiras sobre uma pele avermelhada.
Eu avancei para um abraço infinito, libertador, profundamente significativo. O apertei com todas as minhas forças e, quando me dei conta, estava soluçando e emitindo sons bizarros de risadas e berros.
- Pai! - as palavras mal saiam. - Jesus está aqui!
Ele chorou ainda mais alto, e só não se tornou mais um culto fora da igreja porque a rua estava deserta. Mas acho que senti alguns olhares curiosos bisbilhotarem pelas janelas da vizinhança, talvez por detrás das cortinas.
- Então peça desculpas por mim!
Meu pai está realmente falando isso? O que o Senhor fez com ele?
- Eu não posso fazer isso por você. Vai ter que sair de sua boca. - eu me afastei um pouco para olhar bem aquele velho chorão. Enxuguei suas lágrimas e pude ver a dor em sua alma, o estrago que o orgulho fez em sua história.
- Eu achei que te perderia! - seu nariz fungava e escorria. Seria nojento se eu ligasse pra isso. Mas era a primeira vez que ele se mostrava vulnerável. Desde a morte de Gabriel, era a primeira vez que eu via meu pai chorar.
- Achei que essa doença iria piorar e te levar embora! Isso eu não suportaria!
- O mais incrível foi que eu só me recuperei depois que Deus me usou pra falar dele para outras pessoas! Ele me fez entender que o que realmente importa não é a minha cura, mas se estou me aproximando dele independente disso.
Aquelas palavras fluíram como águas ao se abrirem as comportas de uma represa. Eu estava livre! Livre pra falar de Jesus com meu pai! E vê-lo interessado no que eu tinha pra dizer fazia meu discurso se aprofundar ainda mais.
- Eu sinto que tenho uma dívida com ele. - sua voz saiu num tom de vergonha e timidez.
- Pai, todos nós temos uma dívida com ele. O que Ele diz a respeito disso é o que importa. E ele escolheu nos tornar amigos dele.
As mãos dele cobriram seu rosto enrugado. O vento soprou e trouxe uma garoa fria. Minha mãe - como sempre - nos alertou sobre o perigo do resfriado, da gripe A, da garganta inflamada, da pneumonia e da tuberculose.
- Não passamos por isso tudo pra depois alguém morrer de tosse.
Abracei meu pai até entrarmos em casa, ele até se esqueceu do carro na rua.Vi minha sala novamente, as coisas no mesmo lugar, cada móvel transformando-a num lugar aconchegante. Quantas vezes sentei naquele sofá pra assistir futebol com meu pai e torcer pro meu timão. Quantos gritos da cozinha pra eu lavar a louça do almoço. Fiquei meio nostálgico, enquanto minha mãe olhava as atualizações no celular. Eu nem me lembrava mais de celular.
Uma bíblia pré-histórica repousava sobre a mesa de jantar, sempre aberta no salmo 23. Como um amuleto. Meu pai nunca tocava nela por respeito a minha mãe. Pela primeira vez eu folheei aquelas páginas, e achei o livro de Êxodo: 19. 5.
Agora, se ouvirdes a minha voz e obedecerdes à minha aliança, sereis como meu tesouro pessoal dentre todas as nações, ainda que toda a terra seja minha propriedade.
Ouvi a porta do banheiro se abrir e meu pai saiu de dentro, havia lavado o rosto e arrumado o cabelo.
- Você é o tesouro de Deus. - eu lhe disse, olhando-o fixamente.
- O que? - ele sabia que eu tentava continuar o que havia começado ali na rua, mas pelo que sei, tentaria seguir em frente, como se fosse apenas um momento de fraqueza. Eu não podia deixar isso acontecer.
- Você ouviu a voz de Deus através da minha vida, viu o que Ele pode fazer. Eu ouvi uma música que diz "Se Ele fizer, Ele é Deus, se não fizer, continua sendo Deus", ou seja, Ele está no comando de tudo! Não foi sua culpa se o rio levou o Gabriel, e nem de Deus, mas foi a vontade dEle. Agora eu vejo que Gabriel está num lugar muito melhor, Deus o recolheu como um jardineiro recolhe uma planta de um lugar e a coloca num jardim muito melhor. Sua vida, pai, não vai fazer sentido só porque eu continuo vivo. Eu sei que você sente esse vazio porque eu também sentia! Mas pensávamos que esse buraco era a falta do Gabriel. Pai, confie em mim, se o Gabriel ressuscitasse agora, você continuaria sentindo falta de alguma coisa. Antes de ser pai você já sentia esse espaço aí dentro. Tentou preenchê-lo com muitas coisas, até com a igreja, só que se decepcionou e cansou de procurar. Sua vida religiosa nunca satisfez essa fome da alma, porque você precisa de Deus muito mais que apenas num domingo! Você é especial pra Ele, e de várias formas isso está sendo dito. Deixe o que acha de lado, deixe toda essa culpa e raiva, deixe Ele te preencher agora!
Ele estava visivelmente abalado, imóvel. Minha mãe, do outro lado da cozinha não emitia som nem com a respiração.
- Eu-eu...
Fomos interrompidos então por um som irritante. O celular dele tocou.
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O dia em que eu pirei
EspiritualMeu nome é Joe e eu pirei de vez. Eu era só um cara de 16 anos nada especial. Tudo começa com ela, Natalia. Ela me levou a experimentar algo misterioso, algo que mudou tudo, abriu todos os meus poros. Agora não posso voltar atrás porque sinto coisa...