O pastor foi enviado de Deus pra me tirar daquela areia movediça. Cada centímetro de mim estava vivo novamente, estava desintoxicando. Mas ele não foi embora fácil assim, pensa que ficou tudo legal pro meu lado?
Amanda Sophia me delatou pra ele. Parece que ela também estava péssima em casa, e ele foi investigar o que estava acontecendo, até que conseguiu arrancar dela a verdade. Meu medo era: que verdade ela te contou, pastor? O medo foi embora quando ele falou com detalhes a versão dela, o que não fugiu muito da realidade. Ela não usou isso contra mim, entretanto continuava uma situação terrível.- Eu fiquei com muita vontade de vir aqui acertar as contas com você rapaz, só que temos o mesmo Espírito, e Ele foi acalmando meus ânimos, ministrando minha vida. Antes de chegar aqui eu já havia te perdoado.
Eu enxugava o rosto na própria camisa, enquanto ele retomava a conversa.
- Eu queria ver até que ponto você achava toda essa situação errada, se estava abalado, envergonhado, ou lidando como se fosse a coisa mais normal do mundo. E seus olhos disseram tudo. Quem sou eu para te convencer do erro se o próprio Espírito já o fez? O que ainda não estava claro na sua mente é que ainda havia perdão. Jesus estava esperando você se abrir de novo.
- Você não imagina, pastor. Minha esperança foi embora, eu me vi agindo como antigamente, me imaginei voltando a beber, a fumar, frequentar os mesmos lugares. Imaginei minha mãe decepcionada, meu pai esquecendo de vez a ideia de seguir a Cristo. Isso me arrasou completamente. Eu também pensei em como a Amanda devia estar mal com isso, e sinceramente nem me passou pela cabeça sobre encarar o senhor, estava quase planejando mudar de cidade.
Rimos juntos estava quase sendo a minha realidade mesmo, mas agora não passava de uma piada.
- Amanda também está num processo difícil de mudança, a história dela é bem diferente da sua, embora se pareçam tanto. Enfim, Deus não ia deixar isso passar batido, Ele nos ama demais.
Eu só conseguia acenar com a cabeça e olhar para o alto, como se Deus estivesse lá encima piscando pra mim.
- Pastor, eu nem te ofereci nada, entra aí pra tomar alguma coisa. - Me levantei, mas ele não aceitou, dizendo que precisava ir pra casa pois estava ajudando os pais de Natalia com a busca por alguém compatível.
- Eu fiz essa pesquisa, descobri que o sangue dela é muito raro, e infelizmente não é o mesmo tipo que o meu. - suspirei.
- Deus proverá, Jonas.
- Como você...?
- Deus me deu uma palavra essa noite, enquanto eu orava por você, ele me fez abrir no livro profeta Jonas e depois disse: Ensine o Jonas a pescar almas.
- Meu nome é Jonas. - meus olhos marejaram de novo.
- Por mais que você prefira apelidos, Deus te conhece pelo nome. Ele te chamou, vai te capacitar e nenhuma baleia vai precisar te engolir pra você cumprir seu ministério.
- Baleia?
- Isso é assunto pra outro dia. Agora você é meu discípulo, ainda temos muito o que conversar!
Dito isso, o pastor disse um "até logo" e sumiu pelo portão, enquanto eu tentava compreender o que significava ser um discípulo.
...
O domingo chegou mais rápido do que um trem bala, me fazendo atravessar alguns dias como se estivesse apenas de passagem. Foram dias difíceis, eu confesso. Estava exausto emocionalmente, mas com uma força sobrenatural me erguendo a cada manhã. Apesar de estar resolvido com Deus, ainda não tive coragem de pôr os pés na rua, encarar as pessoas, esbarrar com amigos da igreja nem pensar. Eu precisava me planejar. Precisava de uma resposta para aqueles que soubessem do que eu fiz, eu não poderia simplesmente dizer: "É eu caí, foi mal, é a vida. Agora estou de pé de novo." E abrir um sorrisão amarelo sem-vergonha. Cada passo mal bolado seria uma vida decepcionada comigo, principalmente dentro da minha casa. Meus pais. Foi um milagre não desconfiarem de nada. Meu coração palpitava fora do ritmo toda vez que minha mãe ameaçava perguntar alguma coisa sobre aquela noite. Me tornei mestre em mudar de assunto.
Então estava eu, parado em frente ao guarda-roupa, pensando no que vestir para reaparecer na igreja aquele domingo. A noite estava perfeita, sem chuva, céu estrelado, tempo fresco, igreja provavelmente lotada.
"Ah Senhor, manda uma chuvinha, daquelas espanta-crente."
Puxei uma roupa bem comum, nada de "olhem pra mim, o garoto que era cego, agora vê todos vocês!". Não queria que ninguém me visse. Precisava ser quase invisível. E se tem uma coisa que eu aprendi é que, para ser invisível em qualquer lugar lotado, chegue atrasado e sente-se lá trás, perto da porta.
A igreja estava cada vez mais próxima. Meu pai dirigia o carro, outro milagre: ele estava indo ao culto com a gente. Minha mãe era de outra igreja, mas nem piscou quando meu pai se arrumou pra visitar a minha. Ela se transferiria para o Pólo Norte se soubesse que meu pai estava indo em alguma igreja por lá.
Viramos a esquina e eu já pude ver a rua lotada de carros estacionados. Meu pai deixou a gente na porta e foi procurar por alguma vaga. Meu corpo perdeu os movimentos, fiquei paralisado com o que vi. O carro da SBT, BAND, FANTÁSTICO, TV isso, TV aquilo, e um monte de gente com câmeras na mão e outros com microfones enormes. Puxei o casaco da bolsa da minha mãe num impulso, procurando fazer um capuz improvisado. Chamou mais a atenção ainda, eu ia ser entrevistado por estar ridículo. Desisti do casaco e me arrisquei a entrar rápido, fingindo que não era comigo. Algumas pessoas já estavam sendo abordadas, falando sobre o que viram no hospital, se ajeitando diante das câmeras e sorrindo. Eram estrelas por alguns minutos.
- Joe! - ouço uma voz familiar, alguma mulher, não deu tempo de procurar. Larguei minha mãe e corri para dentro da igreja, onde poderia me misturar com a multidão de pessoas louvando. Consegui ver meus pais entrando com dificuldade, sendo espremidos por repórteres obcecados. Eles não tinham autorização para entrar no templo, então aguardavam no portão ansiosos e quase carnívoros.
- Ei, cara! - agora era um rapaz. William. - Que saudade, brother! - ele me apertou quase estalando minhas costelas.
- Também estou, cara! - sorrio, ainda desconfiado das câmeras do portão.
- Eles chegaram cedo, querem falar com você. Não esquenta, aqui eles não podem entrar. Só não sei como vai ser no final do culto.
- Já liguei pro meu helicóptero.
William deu uma gargalhada e me puxou pelo ombro.
- Cara, meu pai veio hoje, eu preciso ficar com ele. - despisto minha vontade de continuar invisível.
- Ah, tudo bem! Depois nos falamos, então! - ele acenou e se misturou entre os bancos.
Procuro meus pais, eles deram azar. Só haviam bancos vagos na terceira fila, alguém estava zoando com a minha cara. Bufei de tanta raiva, esfreguei a testa com os dedos, não tinha saída.
Quanto mais próximo do altar eu chegava, mas sorrisos e acenos, mais cumprimentos calorosos e dolorosos pra mim. E um olhar em especial me congelou completamente.
Natalia.
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O dia em que eu pirei
SpiritualMeu nome é Joe e eu pirei de vez. Eu era só um cara de 16 anos nada especial. Tudo começa com ela, Natalia. Ela me levou a experimentar algo misterioso, algo que mudou tudo, abriu todos os meus poros. Agora não posso voltar atrás porque sinto coisa...